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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 44 / 2006

Recorrentes: A
B
C
Recorrida: D








1. Relatório
   A D intentou uma acção declarativa contra A, E, B, F e C, formulando os seguintes pedidos:
   a) Canceladas todas as escrituras públicas que tiveram por objecto a compra e venda das fracções que a autora havia prometido comprar à 1ª ré;
   b) Bem como o cancelamento dos respectivos registos na Conservatória do Registo Predial;
   c) Condenada a 1ª ré a restituir à autora a quantia de HK$11.584.947,90;
   d) Condenação solidária das rés a pagarem à autora uma indemnização nunca inferior a MOP$5.000.000,00;
   e) Quantias estas a que acrescem os juros à taxa legal desde a citação e até integral e efectivo pagamento.
   As 1ª, 3ªAe 5ª rés, ou seja, as ora recorrentes, apresentaram contestação.
   Por despacho do juiz do processo a fls. 593, foi proferida a seguinte decisão:
   - Declarar a nulidade de todo o processo no que diz respeito às 2ª a 5ª rés por ineptidão da petição inicial devido a falta de pedido e causa de pedir e absolvidas estas rés da instância;
   - Declarar a nulidade do processo, quanto à 1ª ré, sobre os pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas a), b) e d), por ininteligibilidade do pedido para as duas primeiras e falta de causa de pedir para a última, e absolvê-la da instância relativamente a tais pedidos;
   - Julgar procedente a excepção de litispendência e absolver a 1ª ré da instância.
   Inconformada com esta decisão, recorreu a autora para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.° 235/2006, foi julgado procedente o recurso, mandando a baixa do processo ao Tribunal Judicial de Base para, em substituição da decisão recorrida e ora revogada, se proferir a nova decisão.
   Deste acórdão vêm agora as 1ª, 3ª1e 5ª rés recorrerem para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O douto acórdão recorrido violou, salvo o devido respeito, o disposto no art.º 139.º, e nos n.ºs 1 e al. a) do n.º 2, todos do CPC, quando pugnou pela inteligibilidade mínima dos pedidos das al.s a) e b) do petitório;
   2. Não colhe a argumentação expedida no douto aresto recorrido no sentido de que as rés aprenderam o sentido dos pedidos uma vez que os impugnaram, já que essa defesa por impugnação tem de ser entendida como apresentada ad cautelam e por dever de patrocínio, tendo-se esse defesa confrontado com inúmeras dificuldades dadas as gritantes deficiências e contra-sensos do petitório;
   3. Salvo melhor entendimento, também não pode ser aceite a argumentação do acórdão recorrido segundo a qual é possível, apesar da redacção deficiente do pedido a) do petitório, perceber que a autora pretendia a declaração de nulidade dos negócios jurídicos sub judice, por simulação;
   4. É que quer no articulado da acção quer no seu petitório, a recorrida passa ao lado do facto de, para além da compra e venda, haver outros dois negócios formalizados nessa mesma escritura: é que esta titula, para além de compras e vendas, um contrato de facilidades bancárias com hipotecas, e nestes últimos interveio, como contratante, uma entidade bancária, o Banco Delta Ásia, que não foi sequer demandado como réu na lide;
   5. E assim temos que o pedido constante da al. a) do petitório – e, por arrastamento, o da al. b) – são totalmente absurdos e ininteligíveis, pois mesmo concedendo que a autora visava a declaração de nulidade dos negócios formalizados nas escrituras, teria de ter demandado para a lide, obrigatoriamente, o Banco Delta Ásia, que será afectado, e muito, se os negócios sub judice vierem a ser declarados nulos por simulação;
   6. A douta Sentença de 1ª instância foi assim salvo o incondicional respeito que merece o aresto ora recorrido, foi ilegalmente revogada no TSI, que postergou o comando legal do n.º 1 e da al. a) do n.º 2 do art.º 139.º do CPC;
   7. Acresce que o pedido da al. a) do petitório é ainda ininteligível porquanto a autora nem indica QUAIS as escrituras públicas que pretendia ver canceladas, ou QUAIS os negócios jurídicos titulados por escrituras públicas que almeja ver declarados nulos, aplicando já a tese do douto Acórdão recorrido, não bastando a fórmula genérica e incerta ‘todas as escrituras’ do pedido;
   8. O mesmo se diga quanto ao pedido da al. b) do petitório, mediante o qual se peticionou o ‘cancelamento dos respectivos registos na Conservatória do Registo Predial’, sem indicar quais os registos que se queria ver cancelados;
   9. Também por estas razões é inepta a petição inicial, atento o disposto na al. a) do n.º 2 do art.º 139.º do CPC, como bem se vislumbrou na decisão de 1ª instância, que no entender da recorrente, salvo o devido respeito, não poderia ter sido revogada no douto aresto ora posto em crise;
   10. Acresce que, ao contrário do decidido no douto Acórdão do TSI, há manifesta falta de causa de pedir no que tange à al. d) do petitório da acção, tendo o dito aresto violado o disposto no art.º 139.º, e nos n.ºs 1 e al.s a) e c) do n.º 2, todos do CPC;
   11. Recorde-se que no dito pedido d) da petição inicial a autora pugnou pela condenação das rés a pagar-lhe solidariamente uma indemnização nunca inferior a 5 milhões de patacas, pedido que foi – e bem – julgado destituído de causa de pedir na 1ª instância, pois na al. c) do petitório a autora já pediu a restituição (em singelo) daquilo que prestou ao abrigo dos contratos sub judice, porque – na sua tese – estes foram incumpridos por banda da contraparte;
   12. A restituição do sinal é assim a única indemnização que eventualmente pode caber à autora pelo alegado incumprimento contratual da contraparte, sendo tal pretensão impossível de cumular com pedido para receber 5 milhões de patacas, emergente da al. d) do petitório;
   13. Se causa de pedir é a resolução dos contratos promessa celebrados e a consequente restituição daquilo que foi prestado pela autora, não se vê de onde resulta o pedido de condenação solidária das rés, que tirando a A, não firam parte nos contratos, ao pagamento de uma indemnização;
   14. A al. d) do petitório contém mesmo um pedido destituído de causa de pedir, pois como bem se indica na sentença de 1ª instância falece-lhe qualquer causa (contratual ou extracontratual) que lhe sirva de suporte;
   15. Esse pedido da al. d) do petitório é mesmo, salvo melhor e mais douto entendimento, patentemente improcedente e incompatível com o pedido da al. c) tendo sido assim violado pelo acórdão do TSI o comando legal ínsito no n.º 4 do art.º 436.º do CPC, que não permite a cumulação de outras indemnizações com aquela que resulta das regras do sinal;
   16. Finalmente, diga-se ainda que semelhante pretensão indemnizatória, de raiz claramente extracontratual na configuração que lhe dá a autora é incompatível com a pretensão da al. c) do petitório, de raiz contratual, com o que a decisão recorrida violou, salvo o devido respeito, o disposto no n.º 4 do art.º 436.º, n.ºs 1 e al.s a) e c) do n.º 2 do art.º 139.º, todos do CPC;
   17. Finalmente, o Tribunal de recurso revogou, igualmente mal, a decisão da 1ª instância que julgara verificada a excepção da litispendência, invocada pela 1ª ré A, relativamente à presente causa e a outra acção, ainda em curso, também contra si iniciada pela autora;
   18. Diga-se desde logo que esta parte da decisão do Venerando TSI não satisfaz os requisitos mínimos de fundamentação a que terão sempre obedecer as decisões dos Tribunais, sendo assim nula, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC;
   19. Ora, no caso vertente verifica-se mesmo a excepção da litispendência deduzida pela 1ª ré e ora recorrente A, pelo menos no que tange ao pedido da al. c) do petitório;
   20. Como está provado documentalmente nos autos, e bem foi referido na decisão da 1ª instância, em relação à presente acção e a outra acção identificada pela dita ré as partes são as mesmas e ocupam a mesma posição processual: D é autora e A é ré (identidade de sujeitos), havendo igualmente identidade de causa de pedir (a celebração dos mesmos contratos promessa e o seu invocado incumprimento por parte da promitente vendedora, a ré A) e de pedidos;
   21. Inexplicavelmente, salvo o devido respeito, considerou a decisão ora impugnada que não há litispendência mesmo em relação a esta al. c) do petitório. Ao decidir tal violou frontalmente o disposto nos art.ºs 416.º e 417.º do CPC.”
   Pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e voltado a vigorar o julgado de primeira instância.
   
   Por sua vez, a autora, ora recorrida apresentou as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “A) Da ineptidão da petição inicial
   1. Não obstante a exactidão do raciocínio logico-formal presente na sentença da 1ª Instância, os seus pressupostos careciam de solidez, não havendo motivos para a ineptidão da petição inicial com base na ininteligibilidade dos pedidos formulados sob as al.s a) e b), como considerou o Venerando Tribunal de Segunda Instância no acórdão ora em recurso.
   2. Quanto ao pedido da al. a), não pode a ininteligibilidade decorrer do termo usado ‘cancelamento’ (de contratos), dado que todas as rés ao contestarem e impugnarem os factos e a pretensão da autora, evidenciaram que interpretaram conveniente e suficientemente a petição inicial, o que deveria ter bastado para a improcedência da arguição de tal vício apontado à petição inicial.
   3. De outro modo, não seria referido no dito despacho-sentença da 1ª Instância que ‘A autora poderia, como bem observam as rés, formular um pedido de declaração de nulidade dos negócios celebrados através de escritura pública.’.
   4. O art.º 139.º, n.º 3 do CPC é imperativo, sendo irrelevante, como bem sabem as ora recorrentes, se a contestação / impugnação foi ad cautelam ou para, meramente, ‘tentar a sorte’...
   5. Assim, se as rés, ora recorrentes, contestaram e impugnaram os factos e a pretensão da autora, manda a Lei (e é ainda pela Lei que os Tribunais se regem) que ‘(...) não se julga procedente a arguição, quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.’ – art.º 139.º, n.º 3, CPC, comando legal a que o TJB estava vinculado.
   6. Por sua vez, o pedido da al. b) funda-se naquele primeiro, nele assentando e a ele se reportando, pois ao pedir-se a nulidade (‘cancelamento’) dos negócios que servem de base àqueles registos, então pede-se o reconhecimento de um direito que colide com os factos registados.
   7. Ou seja, limita-se a autora, neste segundo pedido, a dar cumprimento ao art.º 8.º do Código do Registo Predial.
   8. Por outro lado, não sendo de considerar ininteligível o pedido da al. a), nada havia a fundamentar a ininteligibilidade do pedido da al. b).
   9. Nestes temos, bem andou o Venerando Tribunal de Segunda Instância ao revogar a decisão do Tribunal Judicial de Base (TJB), por este não ter verificado que todas as rés interpretaram convenientemente a petição inicial, violando o disposto no n.º 3 do art.º 139.º do CPCM, cuja interpretação, conjugada com o n.º 2, e correcta aplicação ao caso em análise resultaria na inexistência de ineptidão da PI no que toca aso pedidos formulados sob as al.s a) e b).
   B) Da alegada falta de causa de pedir da al. d) do pedido
   10. O Venerando TSI ao considerar os art.ºs 32.º e 33.º da petição inicial como causa de pedir desta alínea do petitório, foca elementos que não foram ponderados na decisão da 1ª Instância.
   11. Ao contrário do defendido pelas recorrentes, o disposto nesse preceito não impede a cumulação do pedido da al. c) com o da al. d), pois o Código Civil de Macau (art.º 436.º, n.º 4) prevê e permite a indemnização pelo dano excedente, quando este for consideravelmente superior.
   12. In casu, e salvo melhor opinião, ultrapassando o dano sofrido pelo promitente não faltoso (a ora recorrida) de forma significativa o valor do sinal, este é indemnizável.
   13. Deste modo, nunca a decisão tomada no acórdão da 2ª Instância pode conter alguma ilegalidade ou desconformidade, decaindo os argumentos apontados pelas ora recorrentes.
   C) Da litispendência e da alegada falta de fundamentação da decisão do acórdão do TSI
   14. Em consequência, não se pode afirmar que existe litispendência, pois não sendo de manter as nulidades apontadas ao processo, como concluiu o TSI, falece in totum a argumentação da 1ª Instância quanto a esta excepção.
   15. O Venerando TSI, veio revogar a decisão, que declarara a existência de diversas nulidades no processo, absolvendo as 2ª, 3ª, 4ª e 5ª rés da instância, bem como absolvendo a 1ª ré dos pedidos das al.s a), b) e d).
   16. Assim, o TSI, percorrendo o mesmo raciocínio logico-formal do TJB quanto a este ponto (e que merecera elogios por parte das agora recorrentes), concluiu que não era possível reduzir a lide aos pedidos das al.s c) e e) contra a 1ª ré, impedindo, então, a tripla identidade de elementos (art.º 416.º do CPCM) que fundamentou, na 1ª Instância, a procedência da litispendência da instância relativamente à acção ordinária CAO-025-03-3 (actualmente com o n.º CV3-03-0017-CAO, do 3º Juízo Cível).
   17. Também no que se refere a este item, o acórdão do TSI será merecedor de confirmação por V. Exas., improcedendo totalmente a argumentação aduzida pelas recorrentes.”
   Pedindo que seja julgado improcedente o recurso e confirmado o acórdão do Tribunal de Segunda Instância.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foi considerado pelo Tribunal de Segunda Instância o seguinte despacho de primeira instância objecto do primitivo recurso:
   “(...)
   Quanto à eventual ineptidão da petição inicial.
   A 1ª, 3ª e 5ª rés vieram alegar a ineptidão da petição inicial pelos motivos seguintes: 1. São inteligíveis os pedidos constantes das alíneas A) e B) do pedido; 2. Falta causa de pedir no que toca aos pedidos constantes das alíneas A), B) e D); 3. Os pedidos constantes das alíneas A) e C) são incompatíveis; e 4. São incompatíveis os pedidos constantes das alíneas C) e D).
   Cumpre decidir.
   A petição inicial é o articulado pelo qual o autor introduz em juízo a sua pretensão.
   A ineptidão é um vício muito grave da petição inicial que não permite que se aprecie o mérito da pretensão do autor. Esses vícios estão previstos nas três alíneas do n.º 2 do art.° 139.° do CPC.
   O primeiro deles é a ausência de pedido ou de causa de pedir. A petição inicial não contém a formulação de nenhum pedido, ou não contém os factos donde resulta o pedido formulado. Equivalente a este vício é o de o pedido e a causa de pedir serem ininteligíveis. Ou seja, da racionalidade imanente ao discurso jurídico da petição inicial não resultar uma pretensão, ou uma fundamentação de facto e de direito, coerente em si mesma.
   No segundo caso a ineptidão existe por a pretensão do autor ser fundada em factos que, necessariamente, conduzem a outro pedido. Neste caso o autor alega factos que conduzem a uma conclusão jurídica diferente daquela que o pedido formulado consubstancia. Aqui existe uma contradição entre o pedido e a causa de pedir.
   No último caso o autor formula diversos pedidos, sendo que uns excluem outros.
   O mesmo poderá suceder com os fundamentos da pretensão do autor.
   Em todos estes casos, a petição inicial é inepta, pelo que o Tribunal tem que a declarar como tal e extrair a conclusão legal: a nulidade processual resultante desta ineptidão (art.° 139.°, n.º 1 do CPC).
   Vamos, então, analisar a petição inicial para ver se este articulado padece dos vícios apontados pelas rés.
   Comecemos por analisar a petição inicial na perspectiva dos pedidos.
   O primeiro pedido formulado pela autora é o seguinte: que o Tribunal determine que ‘sejam canceladas todas as escrituras públicas que tiveram por objecto a compra e venda das fracções que a autora havia prometido comprar à 1ª ré.’ Este pedido é, em si mesmo, ininteligível. O pedido existe, mas tal como se encontra formulado não corresponde a nenhuma pretensão que possa ser feita valer em juízo. A autora poderia, como bem observam as rés, formular um pedido de declaração de nulidade dos negócios celebrados através da escritura pública. É, porém, impossível pedir o cancelamento (terminologia que é privativa dos registos por oposição à abertura de um registo) da forma pela qual foi celebrado um contrato. Para se aquilatar da impossibilidade apontada, tome-se como exemplo um contrato sem exigências de forma celebrado oralmente. Poder-se-ia pedir o cancelamento da palavra oralmente expressa? É evidente que não. Poder-se-ia objectar que a escritura pública serve de suporte à abertura de um registo, e as palavras proferidas não. Esta objecção, porém, só reforça o argumento de que apenas podem ser cancelados os registos, e não os documentos em que se baseiam.
   O pedido constante da alínea a) do petitório é, pelo exposto, ininteligível.
   O segundo pedido formulado reporta-se ao primeiro e nele se pede o ‘cancelamento dos respectivos registos na Conservatória do Registo Predial.’ O pedido aqui é o cancelamento dos registos efectuados com base nos negócios celebrados pelas escrituras de compra e venda a que alude o primeiro pedido. Ora, este segundo pedido só é compreensível, no âmbito de uma acção declarativa (ou seja fora das acções de registo), quando acompanhe um pedido principal em que se peça a nulidade do negócio que lhe deu causa. Daí que o art.° 8.º do Código do Registo Predial estipule que ‘os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em tribunal sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo.’ Ora, no nosso caso, já vimos que não existe qualquer pedido pelo qual se peça o reconhecimento de um direito que colida com os factos registados.
   Assim e nesta medida o pedido constante da alínea b) é também ele ininteligível.
   Já o terceiro pedido em que se pede a condenação da ‘1ª ré a restituir à autora a quantia de HKD$11.584.947,00’ é em si mesmo compreensível. Importa, porém, apurar se ele tem uma causa, ou seja, quais os factos alegados e as razões de direito invocadas ou possíveis que o sustentam. Vejamos.
   A autora invoca celebração de 38 contratos promessa com a 1ª ré, cujo objecto eram várias fracções autónomas do mesmo imóvel. A autora pagou à 1ª ré, a título de sinal, de 5% do preço total acordado, no montante de HK$11.584.947,90. A partir da data da celebração dos contratos promessa a autora nunca mais teve qualquer contacto com a 1ª ré. A 1ª ré vendeu, na qualidade de procuradora da 5ª ré, que por sua vez representava a 4ª ré, à 3ª ré parte das fracções objecto dos aludidos contratos.
   A causa de pedir do terceiro pedido existe e é compatível com a causa de pedir invocada. No fundo a autora alega o incumprimento dos contratos promessa celebrados com a 1ª ré e pede a restituição, em singelo do sinal que prestou.
   Não existe relativamente ao pedido formulado na alínea c), qualquer vício da petição inicial.
   Quanto ao pedido formulado na alínea d) - condenação solidária das rés a pagarem à autora uma indemnização nunca inferior a MOP$5.000.000,00 – ele existe e é inteligível. Não tem, contudo, causa de pedir.
   Na verdade, se a causa de pedir é a resolução dos contratos promessa celebrados e consequente restituição daquilo que foi prestado pela autora, não se vê de onde resulta o pedido de condenação solidária das rés ao pagamento de uma indemnização. Relativamente à 1ª ré os casos de sanção pelo incumprimento dos contratos promessa celebrados estão expressamente previstos na lei. Ora, a autora não alega sequer que o incumprimento desses contratos é imputável à primeira ré, sendo que nem sequer extrai a consequência normal e típica do incumprimento da primeira ré: Restituição em dobro do sinal prestado. Também, não se vislumbra que exista qualquer responsabilidade extra-contratual da 1ª ré. No que toca às demais rés não existe qualquer responsabilidade contratual pois nenhum contrato foi por elas celebrado com a autora, e muito menos qualquer responsabilidade extra-contratual.
   Este pedido da alínea d) não tem, por isso causa de pedir.
   A autora a partir do artigo 10° da petição inicial alega factos que visam colocar em crise o negócio de compra e venda celebrado entre as rés. Alegando que tal negócio é nulo por simulação e que (art. 22°) foi realizado ‘com vista a inviabilizar a execução específica dos contratos promessa de compra e venda.’
   A autora, porém, não pede a execução específica dos contratos promessa celebrados. Assim, para este efeito, carece de interesse (na perspectiva da autora) saber se o negócio efectuado é nulo. É que mesmo que se entenda que o negócio celebrado entre as rés é nulo, nenhuma consequência resulta para a autora, pois as fracções continuariam na titularidade da 1 ª ré, e não seriam forçadamente transmitidas à autora (que aliás não pretende o cumprimento dos contratos promessa).
   Por outro lado, poder-se-ia pensar que a autora pretende invocar a impugnação pauliana visando a restituição dos bens vendidos à titularidade da 1ª ré para garantir o seu crédito resultante do incumprimento dos contratos promessa. No entanto, para além de não invocar expressamente a impugnação pauliana (o que não seria necessário) não alega factos indispensáveis à apreciação da impugnação pauliana: a saber, que o negócio celebrado entre as rés diminua o património da 1ª ré de tal forma que coloque em perigo a satisfação do direito de crédito da autora. Sobre este requisito indispensável da impugnação pauliana, não foram alegados quaisquer factos.
   Assim, os factos alegados pela autora a partir do artigo 10° não são relevantes para a apreciação de quaisquer dos pedidos formulados.
*
   Em conclusão:
   A petição inicial é totalmente inepta por falta de pedido e de causa de pedir relativamente à 2ª, 3ª, 4ª e 5ª rés.
   A petição inicial é parcialmente inepta por falta de pedido e de causa de pedir no que diz respeito aos pedidos formulados nas alíneas a), b) e d), relativamente à 1ª ré.
   A nulidade resultante da ineptidão da petição inicial (art.° 139.°, n.º 1 do CPC) é uma excepção dilatória que dá lugar à absolvição da instância (art.° 412.°, n.ºs 1 e 2 e 413.° al. b) do CPC).
   Assim, e pelo exposto, o tribunal decide:
   - Declarar a nulidade de todo o processo no que diz respeito às 2ª, 3ª e, 4ª e 5ª rés e, consequentemente, absolvê-las da instância.
   - Declarar a nulidade do processo, quanto à 1ª ré, e no que toca aos pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas a), b) e d) e consequentemente absolvê-la da instância relativa a tais pedidos.
*
   Quanto à invocada excepção dilatória de litispendência.
   Vem a 1ª ré arguir a excepção de litispendência por entender que a presente acção repete a acção CAO-025-03-3 quanto aos sujeitos, à causa de pedir e ao pedido, sendo que esta está ainda em curso.
   Cumpre decidir.
   A litispendência é uma excepção dilatória (art.° 413.°, al. j) do CPC), que determina absolvição da instância (art.° 412.°, n.º 1 e 2 do CPC).
   A litispendência consiste na repetição de uma causa estando a anterior ainda em curso (art.° 416.°, n.º 1 do CPC). A causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, nos termos do disposto no art.° 417.º do CPC.
   A excepção de litispendência coloca-se nos presentes autos relativamente à acção ordinária CAO-O25-03-3. Esta acção encontra-se, actualmente, pendente no 3º Juízo Cível sob o número CV3-03-0017-CAO.
   Atenta a decisão supre proferida, a instância resume-se à apreciação dos pedidos formulados contra a lª ré sob as alíneas c) e e) do pedido.
   Vejamos então se a presente causa repete a daqueles autos.
   A presente acção foi proposta pela ‘D’ contra a ‘A’. Na acção CV3-03-0017 as partes são as mesmas e ocupam a mesma posição processual.
   Existe, portanto, identidade de sujeitos.
   Na presente acção a causa de pedir consiste no seguinte:
   A autora invoca celebração de 38 contratos promessa com a lª ré, cujo objecto eram várias fracções autónomas do mesmo imóvel. A autora pagou à 1 ª ré, a título de sinal, de 5% do preço total acordado, no montante de HK$11.584.947,90. A partir da data da celebração dos contratos promessa a autora nunca mais teve qualquer contacto com a 1 ª ré. A 1 ª ré vendeu, na qualidade de procuradora da 5ª ré, que por sua vez representava a 4ª ré, à 3ª ré parte das fracções objecto dos aludidos contratos.
   Na acção CV3-03-0017-CAO a causa de pedir é a mesma: a celebração dos mesmos contratos promessa e o incumprimento da parte da ré. Nas duas causas a pretensão deduzida procede do mesmo facto jurídico.
   Existe, assim, identidade de causas de pedir.
   Por fim quanto aos pedidos numa e noutra causa. Os pedidos são idênticos também. Na presente acção o pedido é mais restritivo pois pretende-se apenas a restituição, em singelo, do sinal já prestado. Na acção que corre termos no terceiro Juízo Cível pretende-se a devolução do sinal em dobro. Assim, a segunda causa repete a primeira quanto ao pedido formulado embora vá mais longe nas consequências jurídicas que extrai do incumprimento.
   Existe, portanto, identidade de pedidos.
   Em conclusão, podemos afirmar que a presente acção repete a acção CV3-03-0017-CAO, a qual se encontra pendente, pois repete a anterior quanto aos sujeitos, à causa de pedir, e ao pedido.
   Verifica-se, por isso, a excepção de litispendência.
   Nesta conformidade, e pelo exposto, o Tribunal decide:
   - Julgar procedente a invocada excepção de litispendência e, consequentemente, absolver a 1ª ré da instância.
   Custas pela autora.
   Registe e notifique.
   (...).”
   
   
   2.2 Ininteligibilidade do pedido das alíneas a) e b) da petição inicial
   As recorrentes continuam a entender que os pedidos das al.s a) e b) da petição inicial são ininteligíveis por a escritura pública de compra e venda de 13 de Março de 2003 (doc. 46 junto com a petição) conter ainda uma parte relativa a concessão de facilidades bancárias com hipoteca, que não foi referida pela recorrida na sua petição inicial, e não ter especificado quais as escrituras públicas e registos que pretendia ver cancelados.
   
   No despacho de primeira instância, julgou o pedido da al. a) da petição inicial ininteligível por este não corresponder a nenhuma pretensão que possa ser feita valer em juízo e do mesmo modo o da al. b) por não existir qualquer pedido pelo qual se peça o reconhecimento de um direito que colida com os factos registados.
   O Tribunal de Segunda Instância interpreta a expressão “cancelar” como declaração de nulidade, atendendo o alegado pela recorrida na sua petição inicial. Tal pedido, assim entendido, serve também pressuposto para o pedido da al. b) sobre o cancelamento dos registos. Daí decidiu revogar a decisão de primeira instância nesta parte.
   
   Sobre a questão nada a censurar a decisão do acórdão recorrido.
   Entende-se por ininteligibilidade do pedido a impossibilidade de conhecer qual é a providência judicial que o autor pretende com a acção. A utilização de linguagem defeituosa, a expressão deficiente do pensamento do autor ou a qualificação jurídica inadequada do pedido podem não determinar a ininteligibilidade do pedido desde que seja compreensível e determinável a pretensão do autor, designadamente com o apoio no conteúdo do articulado petitório.
   Por outro lado, a ininteligibilidade não equivale a inviabilidade do pedido ou falta de causa de pedir.
   Portanto, desde que seja compreensível o sentido do pedido, não há ininteligibilidade deste, independentemente de o pedido ser bem ou mal formulado.
   
   De acordo com o alegado na petição inicial, nomeadamente nos seus artigos 15 a 22, a autora, ora recorrida, alegou expressamente a simulação dos negócios celebrados entre a 1ª e 3ª rés, conduzível à declaração da sua nulidade e o consequente cancelamento dos respectivos registos. As rés contestantes também interpretaram os pedidos da autora neste sentido, sendo irrelevante a intenção de contestar ser apenas por cautela de patrocínio. Assim, embora a formulação dos pedidos constantes da petição inicial não é satisfatória, não há ininteligibilidade do pedido como concluiu pela primeira instância e deve manter a respectiva decisão da segunda instância, ficando improcedente o recurso nesta parte.
   
   De qualquer maneira, embora não exista ininteligibilidade dos pedidos das al.s a) e c) da petição inicial, isso não implica que não pode haver outros vícios da petição que conduzam ao mesmo resultado. Na verdade, o despacho de primeira instância não conheceu de todas as questões que poderiam conduzir à ineptidão da petição inicial.
   As rés contestantes alegaram que na escritura pública celebrada em 13 de Março de 2003, que tinha por objecto apenas 23 fracções das 38 que a 1ª ré havia prometido vender à autora, englobava ainda a concessão de facilidades bancárias e a respectiva hipoteca, e falta causa de pedir nos pedidos das al.s a) e b) em relação às 15 fracções não incluídas na referida escritura pública. Sustentaram ainda a incompatibilidade dos pedidos das al.s a) e c), porque o pedido de declaração de nulidade das transmissões das fracções para terceiros é incompatível com o de restituição da importância que a autora pagou.
   São estas as questões suscitadas nas contestações e cumpre à primeira instância conhecer delas.
   
   
   2.3 Falta da causa de pedir do pedido da al. d) da petição inicial
   As recorrentes consideram que o pedido constante da al. d) da petição inicial é destituído de causa de pedir e violou o disposto no art.º 436.º, n.º 4 do Código Civil que não permite a cumulação de outras indemnizações, como o pedido da al. d), com aquela que resulta das regras do sinal, como o pedido da al. c) da petição, afirmando que são pedidos incompatíveis ao pretender uma responsabilidade contratual da 1ª ré e uma responsabilidade solidária de todas as rés de cariz extracontratual.
   
   O tribunal recorrido não confirmou a decisão de primeira instância, entendendo que existe causa de pedir para o pedido da al. d), nomeadamente segundo o alegado nos artigos 32 e 33 da petição inicial em que afirma que as rés simularam os negócios para enganar a autora e frustrar a celebração dos contratos prometidos entre a autora e a 1ª ré.
   Também entendemos que há realmente causa de pedir para o pedido da al. d) sobre as indemnizações a pedir contra as rés. Pois a partir do artigo 7 da petição, a autora começou a alegar um conjunto de factos que descreve a forma como as rés celebraram os contratos simulados no intuito de enganarem a autora e a enriquecerem à custa alheia, com vista ao incumprimento definitivo dos aludidos contratos de promessa de compra e venda.
   Daí pode resultar o dever de indemnizar da primeira ré, que contratou com a autora e também das restantes rés, pois actualmente não é pacífico que um terceiro não possa ser responsabilizado por concluio com uma parte do contrato que provocou prejuízos à outra parte. É o chamado efeito externo das obrigações.1
   Simplesmente, a autora não alegou qualquer facto donde resulte um dano.
   Então, tem de se entender que a petição não é inepta, já que a causa de pedir está suficientemente identificada, mas que o pedido poderá estar condenado ao insucesso por inviabilidade, a decidir no saneador-sentença, se se entender que não é possível a correcção do vício e se for caso disso, isto é, se não for procedente a pretendida ineptidão da petição, que atinja o pedido da al. d).
   Improcede o recurso nesta parte.
   
   
   2.4 Falta de fundamentação e litispendência
   As recorrentes começaram por imputar a nulidade ao acórdão recorrido por falta de fundamentação com base na omissão de razões que levaram a revogar a decisão de primeira instância sobre a verificação da litispendência, continuam a sustentar a verificação da excepção da litispendência quanto ao pedido da al. c) da petição que é idêntico ao pedido principal da acção de n.º CV3-03-0017-CAO (CAO-025-03-3), proposta em momento anterior ao da presente.
   
   Não há falta de fundamentação no acórdão recorrido em relação à decisão sobre a litispendência, pois existe realmente uma exposição de fundamentos sobre a questão, embora bastante sintética e tudo indica que as recorrentes não estão de acordo com os mesmos. Independentemente da sua adequação jurídica, a existência da exposição de fundamentos exclui logo o vício de falta de fundamentação do acórdão recorrido.
   
   Segundo o art.º 416.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa.
   E dispõe o art.º 417.º do mesmo Código:
   “1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
   2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
   3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
   4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, considerando-se como causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real e, nas acções constitutivas e de anulação, o facto concreto ou a nulidade específica que a parte invoca para obter o efeito pretendido.”
   
   São mesmos os sujeitos e as causas de pedir das duas acções. Ou seja, ocupam as mesmas posições de autor e réu a D e a A. Ambas as acções se fundam nos contratos promessa celebrados entre a autora e a ré que têm por objecto as mesmas 38 fracções autónomas e o incumprimento da promessa por parte da ré.
   A discórdia reside na identidade dos pedidos. Vejamos.
   Na primeira acção, um dos pedidos consiste precisamente no pagamento da indemnização correspondente ao dobro do sinal pago pela autora, e a título subsidiário, pede a restituição do sinal pago em singelo e juros legais. Na presente acção, a autora pede, através dos pedidos das al.s c) e e), a restituição do sinal em singelo e juros legais.
   É manifesto que o pedido constante das alíneas c) e e) da presente acção está consumido pelo da primeira acção.
   
   O Tribunal de Segunda Instância julgou mal porque atendeu aos outros pedidos da presente acção que não relevam para a questão da litispendência, por falta de correspondência na primitiva acção.
   Em caso de cumulação de pedidos, a litispendência deve ser examinada em relação a cada pedido por si, sendo irrelevante que não se apresentem numa das acções todos os pedidos da outra.
   Procede o recurso nesta parte.
   
   Uma nota final, o juiz de primeira instância não se pronunciou quanto à reconvenção da 1ª ré, que não se mostra prejudicada pela absolvição da instância dos pedidos das al.s c) e e), ao abrigo do art.º 218.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, nem se mostrava prejudicada pela absolvição da instância dos pedidos das al.s a) e b), entretanto revogada.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, baixando os autos à primeira instância para proferir nova decisão de acordo com o agora decidido.
   Custas pelas recorrentes e recorrida na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.


   
   
   
   Aos 17 de Dezembro de 2007.




Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Rita Amaral Cabral, A Tutela Delitual do Direito de Crédito, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, distribuição de Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 1025.
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Processo n.° 44 / 2006 25