Proc. nº 261/2016
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 25 de Maio de 2017
ASSUNTO:
- Erros materiais
- Rectificação da sentença/acórdão
SUMÁRIO:
- O Tribunal, após proferir a sua decisão, apenas está autorizado para rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas provocadas pela sentença e reformá-la quanto a custas e multa – cfr. nº 2 do artº 569º do CPCM.
- Somente quando se escreveu coisa diversa do que se queira escrever é que se verifica um erro ou inexactidão ao material susceptível de rectificação.
O Relator,
Ho Wai Neng
Proc. nº 261/2016
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 25 de Maio de 2017
Requerente: A Ltd.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I. Relatório
A Ltd., melhor identificada nos autos, vem nos termos do artº 572º do CPCM, requerer “a correcção do aludido lapso e a prolação de novo Acórdão”, com fundamentos seguintes:
“...
A LTD., Recorrente nos autos acima referenciados, tendo sido notificada do Acórdão proferido nos referidos autos (doravante o "Acórdão"), vem, ao abrigo do disposto no artigo 572.º do Código de Processo Civil, expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
1. O Acórdão julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa invocada pela entidade recorrida, com base no entendimento de que, com o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal de Última Instância ("TUI") proferido no âmbito do processo n.º 76/2015, a Recorrente deixou de ser concessionária dos terrenos em causa e, portanto, "...deix[ou] de ser titular de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que tivesse sido lesado pelo acto recorrido, não tendo, por isso, qualquer interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do presente recurso".
Ora,
2. Afigura-se-nos que o Acórdão incorre, salvo o devido respeito, em lapso manifesto, por duas razões:
3. Por um lado, porque a Recorrente deixou de ser concessionária dos terrenos em causa, não em virtude do trânsito em julgado do Acórdão do TUI supra referido, mas antes por efeito do acto do Chefe do Executivo que declarou a nulidade dos actos que haviam autorizado a transmissão dos direitos resultantes da concessão sobre os terrenos para a Recorrente, publicado em 15.08.2012 (adiante o "Despacho do CE de 15.8.12"),
4. Conforme resulta, inter alia:
1) Da aplicação da lei, designadamente do artigo 22.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, nos termos do qual "O recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia do acto recorrido", de onde resulta que a interposição e pendência do recurso interposto do Despacho do CE de 15.8.12 em nada afectou a validade e eficácia do mesmo;
2) Do facto de, no mesmo dia da publicação do Despacho do CE de 15.8.12, a Administração ter procedido ao averbamento no registo predial da nulidade da transmissão para a Recorrente dos direitos resultantes da concessão por arrendamento dos Lotes, o que determinou o cancelamento da inscrição de tais direitos a favor da Recorrente, voltando os referidos direitos a estar inscritos a favor das sociedades que os haviam transmitido à Recorrente (as "Sociedades Transmitentes"); e ainda
3) Do facto de a própria Administração ter afirmado, de forma expressa e em diversos fóruns, mas desde logo na Informação n.º 149/DSODEP/2012, de 12/06/2012, que foi objecto de despacho de concordância do Chefe do Executivo e faz parte integrante do Despacho do CE de 8.8.12, o seguinte:
"O objecto dos despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n. ºs 48/2006, 49/2006, 50/2006, 51/2006 e 52/2006 inclui a autorização das transmissões onerosas a favor da sociedade A Ltd., dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, dos respectivos terrenos e a alteração dos respectivos contratos de concessão. Quando forem declarados nulos os tais despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, os direitos resultantes da concessão dos terrenos reverterão às originais concessionárias.".
5. É, pois, inequívoco que a Recorrente deixou de ser concessionária dos terrenos em causa na data da publicação do Despacho do CE de 15.8.12, ou seja, em momento muito anterior à interposição do presente recurso.
6. Por outro lado, e uma vez que, à data da interposição do presente recurso, a Recorrente já não era concessionária dos terrenos em causa - já não o era, como vimos, desde 15.08.2012 -, a mesma invocou, como fundamento da sua legitimidade processual no âmbito do presente recurso (cf artigos a 17.º da petição de recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidos), o facto de a declaração de caducidade poder obstar à execução de uma eventual decisão que julgasse procedente o recurso interposto do Despacho do CE de 15.8.12 (o que não veio a verificar-se, uma vez que, entretanto, foi proferido o Acórdão do TUI supra referido que negou provimento ao aludido recurso).
Ou seja,
7. A legitimidade processual da Recorrente para a interposição do presente recurso nunca repousou no seu estatuto de concessionária dos terrenos - uma vez que, à data da interposição do recurso, a Recorrente já deixara de ser concessionária dos terrenos há cerca de três anos e meio -,
8. Mas antes, como se referiu supra, no interesse processual da Recorrente no desfecho do presente recurso, na medida em que o acto recorrido poderia configurar um obstáculo à execução plena do Acórdão a proferir no âmbito do processo n.º 76/2015, pelas razões expostas nos artigos 9.º a 17.º da petição de recurso que aqui se reproduzem por facilidade de leitura:
9º
A Recorrente interpôs recurso contencioso do acto do CE de 08.08.12, no qual pediu a declaração de nulidade ou a anulação desse acto.
10º
O referido recurso encontra-se actualmente pendente de decisão no Tribunal de Última Instância, sob o n.º 755/2012.
11º
A eventual procedência deste recurso terá por efeito, nos termos do artigo 174.º, n.º 3, do CPAC, a reconstituição da situação actual hipotética, i.e., a colocação da recorrente na situação em que estaria caso não tivessem sido praticados os actos recorridos.
12º
Ora, sem prejuízo de a Recorrente entender que a declaração de caducidade da concessão não constituiu uma "impossibilidade absoluta e definitiva de execução da sentença", nos termos do artigo 175º, n.º 1, do CPAC, e que, ainda que constituísse, outras formas haveria de executar uma sentença que julgasse procedente o recurso em apreço,
13º
A verdade é que o Chefe do Executivo veio sustentar entendimento diverso no referido recurso, tendo inclusivamente pedido a sua absolvição da instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide por força da caducidade da concessão,
14º
De onde resulta a legitimidade da Recorrente para a interposição do presente recurso, na medida em que os seus direitos e interesses eventualmente resultantes de uma sentença que declare o provimento do recurso poderão ser afectados caso se sufrague o entendimento manifestado pelo Chefe do Executivo acerca dos efeitos da declaração de caducidade da concessão nesse recurso - nos termos da alínea a) do artigo 33.º do CPAC.
15º
Aliás, o Acto Recorrido poderá sempre configurar uma dificuldade acrescida na execução de uma eventual sentença que julgue procedente o recurso em apreço, podendo mesmo, em tese, impedir a colocação da Recorrente na situação fáctico-jurídica que estaria caso não tivesse sido praticado o acto do CE de 08.08.12 - neste cenário declarado nulo ou anulado -, caso em que teria de encontrar-se outra forma de reconstituição da situação actual hipotética, no limite através da fixação de uma indemnização,
16º
O que reforça a conclusão de que o Acto Recorrido poderá afectar os direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente e, em consequência, de que a Recorrente tem legitimidade para a interposição do presente recurso.
17º
Refira-se, aliás, a terminar, que no sentido desta conclusão milita também o facto de a DSSOPT ter enviado para a Recorrente cópia das notificações do acto recorrido às actuais concessionárias. Ou seja, tal conhecimento foi seguramente dado pelo facto de os direitos e interesses da Recorrente poderem, em tese, ser afectados pela declaração de caducidade da concessão, o que, repete-se, fundamenta e determina a legitimidade da Recorrente para interpor o presente recurso.
Assim, e para concluir,
9. Crê-se o Acórdão incorreu num manifesto lapso, ao ter fundamentado a ilegitimidade processual da Recorrente no facto de a Recorrente (supostamente) ter deixado de ser concessionária dos terrenos em causa com o trânsito em julgado do Acórdão do TU I supra referido, uma vez que (i) já o não era na data da interposição do recurso e (ii) a fonte da sua legitimidade advém (ou advinha) do facto de a declaração de caducidade da concessão poder obstar à execução de uma eventual decisão favorável no âmbito do recurso interposto do Despacho do CE de 15.8.12,
10. Pelo que se requer a V. Exas. a correcção do aludido lapso e a prolação de novo Acórdão, tendo em consideração o que se deixou exposto supra ...”.
*
Devidamente notificada, a Entidade Recorrida pronunciou-se nos termos constantes a fls. 342 a 345 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do pedido.
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O Ministério Público é de parecer do indeferimento do pedido.
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II. Fundamentação
A Recorrente, invocando a norma do artº 572º do CPCM e com fundamento na existência de lapso manifesto, veio pedir “a correcção do aludido lapso e a prolação de novo Acórdão”.
Adiantamos desde já que se trata de um pedido manifestamente ilegal, cuja formulação, se não for de má fé, é certamente feita com mau interpretação do citado artº 572º do CPCM.
Dispõe o artº 572º do CPCM que:
Artigo 572º
Pode qualquer das partes requerer no tribunal que proferiu a sentença:
a) O esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha;
b) A sua reforma quanto a custas e multa.
Como se vê, o preceito em causa não prevê a possibilidade da prolação de novo acórdão, alterando desta forma a decisão anterior.
Aliás, esta possibilidade é expressamente afastada pelo legislador, pois, o nº 1 do artº 569º do CPCM estabelece que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juíz quanto à matéria de causa”.
O Tribunal, após proferir a sua decisão, apenas está autorizado para rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas provocadas pela sentença e reformá-la quanto a custas e multa – cfr. nº 2 do artº 569º do CPCM.
No caso em apreço, o “lapso” que a Recorrente alegou, caso existisse, traduz-se num erro de julgamento e não um mero lapso material, susceptível de rectificação nos termos do artº 570º do CPCM.
“Somente quando se escreveu coisa diversa do que se queira escrever é que se verifica um erro ou inexactidão ao material susceptível de rectificação nos termos do disposto no artº 667º do CPC”1 (correspondente ao artº 570º do CPCM).
A Recorrente, a pretexto da correcção do “lapso”, está a atacar o mérito da decisão com vista a obter outra que lhe é favorável.
Ora, a via correcta e própria para o efeito é a interposição do recurso jurisdicional para o TUI e nunca o instituto da rectificação prevista no artº 570º, muito menos os institutos da aclaração e da reforma da sentença previstos no artº 572º do CPCM.
Face ao expendido, é de indeferir a pretensão formulada.
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III. Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em indeferir o pedido.
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Custas do incidente pela Requerente, com 6UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 25 de Maio de 2017.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
1 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Abílio Neto, Ediforum, 21ª Edição, pág. 945.
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