Processo n.º 272/2016
(Recurso Civil)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 8/Junho/2017
ASSUNTOS:
- Invalidade do casamento celebrado sem que o casamento anterior entre os mesmos consortes haja sido dissolvido
SUMÁRIO :
Para conhecer da invalidade do casamento celebrado em Hong Kong, entretanto dissolvido por divórcio, sem que o casamento anterior, celebrado segundo os usos e costumes chineses, em Macau, entre os mesmos consortes, haja sido dissolvido, torna-se necessário interpor a respectiva acção para o efeito e a declaração da respectiva anulabilidade e consequentes cancelamentos registrais não pode ser objecto de procedimento incidental em execução de alimentos subsequentes ao divórcio.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 272/2016
(Recurso Civil)
Data : 8/Junho/2017
Recorrente (Executado) : - A
Objecto do Recurso : - Despacho que não admitiu o incidente
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. A, ora executado dos aludidos autos, com os demais sinais constantes dos autos (adiante designado por “recorrente”), inconformado com o seguinte despacho
- “O executado, A, pediu a declarar a nulidade do casamento contraído com B em Hong Kong e a nulidade do acordo de alimentos celebrado aquando da dissolução do referido casamento, dado que se trata da acção executiva de alimentos, a questão da validade de casamento deve ser resolvida em outro processo comum declarativo e não ser resolvida incidentalmente no presente caso, assim, este Juízo decidiu indeferir o pedido por este padecer do vício da forma do processo, mandar retirar o respectivo documento e restituí-lo ao executado.” –
Dele vem recorrer, alegando, em síntese:
1. Do despacho recorrido consta que a validade de casamento deve ser declarada através do processo comum declarativo e não na presente acção a título de incidente, por consequência, este Juízo decide indeferir o respectivo requerimento por este ter enfermado do vício da forma do processo. Para isso, não é de acolher esta opinião.
2. Segundo o recorrente, o assunto que ele pediu a conhecer incidentalmente pretende-se com o vício da nulidade do casamento contraído entre o executado, A, e a exequente, B, por registo, em 5 de Novembro de 1987 na Conservatória de Registo de Casamentos de Hong Kong, o que conduz necessariamente ao vício da nulidade da “decisão da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau em 28 de Dezembro de 2000 sobre a dissolução da referida relação matrimonial e a confirmação do acordo de prestação de alimentos entre os cônjuges”.
3. Assim, entendemos que a apreciação e a declaração do aludido evento nulo é uma questão prévia para prosseguir o processo executivo ora recorrido.
4. Ao abrigo do art.º 279.º do Código Civil e do art.º 6.º n.º 3 do Código de Processo Civil, achamos que o Juízo a quo tem responsabilidade para conhecer da respectiva questão de nulidade.
5. Em termos processuais, o processo ora recorrido é um processo especial de execução por alimentos, cujo regime é regulado nos art.ºs 958.º a 962.º do Código de Processo Civil. Este regime distingue-se do processo comum de execução, mas segue os termos do processo comum de execução ou processo sumário de execução no âmbito de procedimento. (art.º 968.º n.º 1 do Código de Processo Civil).
6. No processo comum de execução ou no processo sumário de execução, não se afasta as circunstâncias da declaração através de processo comum declarativo, ao invés, o embargo no processo executivo segue muitas vezes os termos do processo comum declarativo.
7. Com certeza, considerando que o processo ora recorrido é classificado como processo de execução, pelo que não se pode apreciar ou declarar directamente a nulidade segundo os termos do processo executivo, por isso pediu a conhecer incidentalmente desta questão.
Ademais
8. Nos termos do art.º 29.º da Lei n.º 9/2004 (alterações e aditamentos à Lei de Bases da Organização Judiciária e ao Código de Processo Civil), entendemos que o Juízo a quo tem competência para declarar a nulidade do casamento.
9. Sendo assim, o assunto de nulidade invocado pelo recorrente é uma questão prévia da acção ora recorrida, assim, o Juízo a quo tem competência para apreciar tal assunto de nulidade.
10. Assim, entendemos que os dispostos nos art.ºs 11.º e 369.º n.º 1 do Código de Processo Civil nada prejudicam o julgamento incidental do Juízo a quo, no processo da execução por alimentos, dos pedidos da declaração de nulidade do casamento contraído entre o recorrente A e B em Hong Kong e da declaração da nulidade do acordo de prestação de alimentos celebrado aquando da dissolução deste casamento.
11. Ao contrário, nos termos do art.º 279.º do Código Civil e do art.º 6.º n.º 3 do Código de Processo Civil e atendendo aos princípios da economia e da eficácia processuais, o Juízo a quo tem competência para julgar oficiosamente da questão prejudicial da nulidade.
Requerimento de certidão de instrumento processual para junção aos autos de recurso
Ao abrigo do art.º 615.º do Código de Processo Civil, solicita-se ao MM.º Juiz que exare a certidão do teor das fls. 2 a 55, 89, 105 a 117, 122 a 128 dos autos do Processo n.º FM1-13-0200-CPE do Juízo de Família e de Menores para junção aos autos de recurso.
Ao recorrente já foi concedido o apoio judiciário nos termos da Lei n.º 13/2012 (Regime Geral de Apoio Judiciário) (cfr. fls. 89 dos autos), pelo que solicita que as taxas de certidões passadas sejam dispensadas.
Pedidos:
Face ao exposto, solicita-se ao Tribunal que:
1) Admita as alegações do recurso; e
2) Por o despacho recorrido ter incorrido no erro na interpretação dos dispostos nos art.ºs 11.º e 369.º do Código de Processo Civil, com a aplicação correcta da lei e ao abrigo do art.ºs 279.º do Código Civil e do art.º 6.º n.º 3 do Código de Processo Civil, bem como tendo em conta os princípios da economia e da eficácia processuais, deve-se revogar o despacho ora recorrido e decidir o Juízo a quo a admitir e julgar incidentalmente os requerimentos do recorrente.
3) Ao recorrente já foi concedido o apoio judiciário nos termos da Lei 13/2012 (Regime Geral de Apoio Judiciário) no processo ora recorrido, pelo que o apoio judiciário subsiste no recurso à luz do art.º 2.º n.º 2 da mesma Lei.
2. Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
O executado e a exequente contraíram casamento conforme os costumes tradicionais chineses em 20 de Setembro de 1973. (está a pedir os respectivos documentos comprovativos e vai entregá-los posteriormente).
Mas os mesmos nunca registaram o referido casamento celebrado conforme os costumes tradicionais chineses junto da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau.
O executado e a exequente contraíram casamento por formal legal de registo junto da Conservatória do Registo de Casamentos de Hong Kong em 5 de Novembro de 1987, sem que tivesse sido dissolvido o casamento celebrado conforme os costumes tradicionais chineses em Macau em 20 de Setembro de 1973.
Em 28 de Dezembro de 2000, o conservador da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau decretou a dissolução do casamento celebrado entre o executado e a exequente em 5 de Novembro de 1987 em Hong Kong, tendo sido homologado o acordo de prestação de alimentos entre os cônjuges e o acordo de pertença de residência da família.
Do registo de divórcio da Conservatória do Registo Civil de Macau n.º ... consta que por decisão da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau em 28 de Dezembro de 2000 que transitou em julgado no mesmo dia, foi dissolvido, por meio de divórcio, o casamento contraído em Hong Kong em 15 de Novembro de 1987(a data correcta será 5 de Novembro) entre A (…), nascido na RPC e residente em Macau, e B (…), residente em Macau.
III – FUNDAMENTOS
O objecto do presente recurso passa por saber se na execução de alimentos devidos na sequência de divórcio de casamento celebrado em Hong Kong devia ou não o juiz ter conhecido incidentalmente da questão concernente à nulidade desse casamento por ter sido celebrado sem que o divórcio entre os mesmos nubentes celebrado anteriormente em Macau, segundo os usos e costumes chineses, houvesse sido celebrado.
A Mma Juíza remeteu as partes para a acção própria e autónoma para esse efeito, pronunciando-se no sentido de que não podia conhecer dessa questão em termos incidentais naquela execução.
Afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente.
A celebração de um casamento na pendência de casamento validamente celebrado anteriormente acarreta a sua invalidade.
Que tipo de invalidade?
Como se sabe, o regime das invalidades no Direito da Família tem um regime particular que se aparta do regime geral, não assistindo razão ao recorrente quando a todo o passo apela ao regime do art. 279º do CC. As particularidades e os efeitos naturais e de facto gerados pelas relações familiares não se compadecem com um regime gerador do apagamento genérico de todos os seus efeitos. Na verdade, a ordem jurídica não pode apagar aí o que a própria natureza criou.
O que se observa no caso vertente é que o recorrente casou por duas vezes com a mesma mulher. Segundo os usos e costumes em Macau, em 1973 e em Hong Kong, em 1987, segundo as regras do registo, casamento registado na respectiva Conservatória, casamento este dissolvido por divórcio, em 2000.
É na sequência deste divórcio e fixação dos respectivos alimentos que se abre a presente execução, onde se suscita a questão da pretensa nulidade do segundo casamento celebrado.
A considerarmos a lei de Macau como aplicável, a situação presente, em bom rigor, não se encaixa em qualquer das hipóteses contempladas seja de inexistência jurídica seja de anulabilidades do casamento, em conformidade com o que dispõem os artigos 1501º e 1504º. No âmbito do casamento não se prevêem causas próprias de nulidade.
Se bem atentarmos não nos deparamos com uma situação de bigamia, pois o recorrente casou sempre com a mesma pessoa, podendo até dizer-se, em jeito de graça, que o casamento saiu reforçado. A este propósito não se deixa de anotar que, por estranho, que possa parecer, a lei civil não deixa de contemporizar com uma situação de binuvez enquanto o primeiro casamento do bígamo não for anulado (art. 1506º, n.º 1, c) do CC.1
O mesmo se passará, se a lei aplicável for a de Hong Kong, na certeza de que não teremos de tomar posição sobre a questão de DIP que se coloca. Pela razão simples da sua desnecessidade para a decisão do presente caso.
De qualquer modo não deixaremos de referir que a Lei do Casamento de Hong Kong, Cap 181 Marriage Ordinance, nos artigos 27º e 39º e Cap 179 Matrimonial Causes Ordinance, Section 20 Grounds for decree of nullity, parece apontar para a mesma causa de invalidade, até na modalidade de nulidade.
O certo, porém, é que a ou as ordens jurídicas não podem contemporizar com a coexistência de dois ou mais casamentos, ainda que entre as mesmas pessoas, facilmente se compreendendo que assim se abriria a porta à escolha e dificuldade de determinação dos regimes de bens e do próprio regime geral matrimonial, fossem os casamentos no seio do mesmo ordenamento ou em ordenamentos diferentes.
Trata-se de matéria que, pelo melindre que comporta, não deverá deixar de ser apreciada na acção própria, onde se apurará a matéria de facto pertinente à dilucidação do caso.
Esta situação, parecendo estranha, não o é de todo. Já se colocava aquando dos casamentos celebrados no âmbito do Direito Canónico, casamentos que não tinham sido transcritos no Registo civil, como a lei portuguesa consentia e que devia obstar a que o oficial de registo celebrasse e lavrasse o registo de casamento civil celebrado sobre um casamento canónico anterior.
Se assim é, onde integrar esta invalidade que se afigura como apodíctica?
Pensamos que a situação não deixa de cair na previsão do impedimento dirimente absoluto do art. 1479º/c do CC, gerador de anulabilidade, nos termos do art.1504º/1/a do CC.
Face a este enquadramento, somos a considerar que essa invalidade, na modalidade de anulabilidade matrimonial, só por via de acção especial intentada para esse efeito pode ser conhecida e decidida, como determina expressamente o art. 1505º do CC.
Atente-se até no pedido que a pretexto de questão incidental vem formulado na dita execução:
“Face ao exposto, solicita-se ao MM.º juiz que:
1) Admita este incidente; e
2) Declare nulo “o casamento celebrado entre o executado e a exequente na Conservatória do Registo de Hong Kong em 5 de Novembro de 1987; e
3) Declare nula “a decisão do conservador da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau em 28 de Dezembro de 2000 sobre a dissolução do casamento, por divórcio, celebrado entre o executado e a exequente em 5 de Novembro de 1987 em Hong Kong e os acordos de prestação de alimentos entre os cônjuges e de pertença da residência da família”. E
4) Cancele o registo de divórcio da Conservatória do Registo Civil de Macau n.º ..., com o teor de “por decisão da Conservatória do Registo de Casamentos e Óbitos de Macau em 28 de Dezembro de 2000 que transitou em julgado no mesmo dia, foi dissolvido, por meio de divórcio, o casamento contraído em Hong Kong em 15 de Novembro de 1987 entre A (…), nascido na RPC e residente em Macau, e B (…), residente em Macau.” E
5) Dada a nulidade do título executivo do Processo n.º FM1-13-0200-CPE – acordo de prestação de alimentos, os pedidos da exequente também devem ser indeferidos. E
6) A A já foi concedido o apoio judiciário no Processo n.º FM1-13-0200-CPE, pelo que este apoio judiciário é extensivo ao presente incidente ao abrigo do art.º 2.º n.º 3 da Lei n.º 13/2012, ora Regime Geral de Apoio Judiciário.”
Daqui resulta haver algo mais do que o conhecimento de uma mera questão incidental que seja pressuposto da acção executiva em presença. Em boa verdade, estar-se-ia a enxertar uma verdadeira acção declarativa neste processo executivo.
Os termos em que o pedido vem formulado são completamente diferentes dos usados pela Mma Juíza e pelo TSI aquando do processo de inventário para aferirem da legitimidade para o inventário e para a consideração do regime de bens aplicável, não estando em causa um pedido de anulação de um casamento, antes a aferição da validade de um deles e erecção dos seus efeitos.
Também pelo facto de noutra acção, no Processo n.º FM1-13-0003-CIV, do Juízo de Família e de Menores do TJB de Macau, e até neste TSI já se ter perspectivado, afirmado até, em sede de fundamentação, a a nulidade do segundo casamento, de modo algum essas posições constituem caso julgado formal nesta acção e constituem fundamento para que tanto sirva ao conhecimento da questão que se pretende seja incidentalmente conhecida na referida execução por alimentos.
Bem andou a Mma Juíza, ainda que com outra fundamentação, mas que apontava já para a necessidade de interposição de uma acção própria para esse efeito, acção que poderá ter ou não repercussão sobre os alimentos cuja execução se requer no processo em curso, questão que aqui não se coloca e só ao Juiz do processo caberá analisar oportunamente.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 8 de Junho de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Cfr. Pires de Lima e A. Varela, CCA, IV. 2ª ed., 1992, 85 in fine
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272/2016 13/13