Processo n.º 438/2017 Data do acórdão: 2017-6-8 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– convicções pessoais da testemunha
– art.º 117.º, n.º 2, do Código de Processo Penal
– arbitramento oficioso de reparação
– vontade do ofendido
– art.º 74.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Como após vistos todos os elementos probatórios indicados na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se vislumbra que seja patente que o tribunal a quo tenha violado, em sede da formação da sua convicção sobre os factos, quaisquer normas jurídicas sobre o valor das provas, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento de factos, não pode ter existido o vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
2. Como do teor da fundamentação probatória do acórdão recorrido não resulta que a comprovação dos factos pronunciados se fundou na alegada valoração de algumas pretensas “convicções pessoais” das duas testemunhas de acusação ouvidas na audiência de julgamento, e, ao invés, dessa fundamentação probatória se retira que o tribunal a quo procedeu à sua própria análise das coisas, tendo formado a sua livre convicção sobre os factos pronunciados, com base no visionamento, feito pelo próprio tribunal, do disco compacto contentor da gravação das imagens, não pode ter havido violação, por parte do tribunal sentenciador, do disposto no art.º 117.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não sendo já, pois, mister apurar se os dizeres das ditas testemunhas (na parte em que disseram que “conforme a experiência deles, ……”) constituem convicções pessoais sobre factos ou a sua interpretação.
3. Tendo o ofendido declarado expressamente, em sede de prestação das declarações em memória futura dos autos, que não pretendia procedimento civil contra o agente do crime, a decisão de arbitramento oficioso de reparação tomada no acórdão impugnado está a contrariar a vontade do ofendido, pelo que essa decisão, por não estar em sintonia com o art.º 74.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, tem que ser revogada.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 438/2017
(Recurso em processo penal)
Arguido recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 240 a 248 do Processo Comum Colectivo n.º CR1-16-0326-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como co-autor material de um crime consumado de furto qualificado (furto de valor elevado), p. e p. pelos art.os 198.º, n.º 1, alínea a), 197.º e 196.º, alínea a), do Código Penal, na pena de um ano e nove meses de prisão efectiva, e no pagamento da quantia de $101.100,00 dólares de Hong Kong (com juros legais), arbitrada oficiosamente, para a reparação do dano do ofendido dos autos.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) através da motivação de fls. 274 a 277 dos presentes autos correspondentes, para rogar a sua absolvição do dito crime, e, por conseguinte, também do pagamento da quantia de reparação, tendo alegado, na sua essência, que a decisão condenatória recorrida sofria do erro notório na apreciação da prova (como vício previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP)) com violação do princípio de in dubio pro reo (no tocante à indagação da parte final do facto imputado n.º 5 e do facto imputado n.º 11) e do disposto no art.º 117.º, n.º 2, deste Código (deste preceito legal, no respeitante aos depoimentos dos dois investigadores da Polícia Judiciária ouvidos na audiência de julgamento), não podendo, pois, ele próprio ser prejudicado nos termos dos art.os 50.º, n.º 1, alínea c), e 324.º, n.º 1, do CPP.
Ao recurso, respondeu a fls. 279 a 285v dos autos o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribinal recorrido, no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 296 a 297, pugnando pela não verificação do erro notório na apreciação da prova na decisão condenatória recorrida, mas já opinando pela revogação da decisão de arbitramento oficioso de reparação (por o ofendido ter declarado a fl. 30v dos autos, em sede de prestação das declarações para memória futura, que não pretendia procedimento civil contra o agente do crime).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos e com pertinência à decisão, sabe-se que:
– segundo o teor da acta, de fls. 238 a 239v dos autos, da audiência de julgamento realizada perante o Tribunal recorrido: o arguido negou a prática dos factos; foram ouvidos dois investigadores da Polícia Judiciária como testemunhas da acusação; e foi visionado o disco compacto contentor da gravação de imagens;
– a fundamentação fáctica e probatória do acórdão ora recorrido consta de fls. 242 a 244v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido, tendo o Tribunal recorrido referido nessa fundamentação probatória do acórdão que:
– os dois investigadores da Polícia Judiciária ouvidos na audiência de julgamento prestaram aí declarações, dizendo que chegaram a ver o disco compacto contentor da gravação das imagens do casino em questão, e que conforme a experiência deles o arguido, aquando da prática do acto de subtracção, por outro agente do crime de furto, da mala do ofendido, fingia que estava a ver os jogos na mesa de jogos em causa, mas na realidade estava a vigiar o ambiente à volta da mesa, para proteger a actuação do outro agente do crime;
– a convicção do próprio Tribunal sobre os factos provados se baseou na análise das declarações do arguido na audiência, das declarações prestadas pelo ofendido para memória futura e lidas na audiência, dos depoimentos dos dois investigadores da Polícia Judiciária, dos documentos juntos aos autos, do conteúdo dos autos de apreensão e do disco compacto da gravação das imagens visionado;
– os factos pronunciados n.º 5 e n.º 11 foram inclusivamente julgados como provados pelo Tribunal recorrido;
– o ofendido declarou a fl. 30v dos autos, em sede de prestação das declarações para memória futura, que não pretendia procedimento criminal e civil contra o agente do crime, declaração de vontade essa do ofendido que não chegou a ser invocada pelo arguido na sua motivação do recurso para sustentar o seu pedido de revogação da decisão, tomada no acórdão recorrido, de arbitramento oficioso de reparação a favor do ofendido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Sempre se diz que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido ora recorrente assaca principalmente ao aresto impugnado o erro notório na apreciação da prova dos factos conducentes à incriminação dele como co-autor de um crime de furto qualificado.
Entretanto, ao presente Tribunal de recurso, após vistos todos os elementos probatórios indicados na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se vislumbra que seja patente que o Tribunal recorrido tenha violado, em sede da formação da sua convicção sobre os factos, quaisquer normas jurídicas sobre o valor das provas, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento de factos, e sendo, pois, ainda razoável o resultado de julgamento de factos a que chegou o Tribunal ora recorrido, não pode o recorrente, sob pretexto da alegada verificação do vício do art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do CPP, vir sindicar a livre convicção desse Ente Julgador, permitida pelo art.º 114.º deste Código.
Sendo de frisar o seguinte:
– ao arguido é descabida a invocação, na motivação do recurso, do disposto nos art.os 50.º, n.º 1, alínea c), e 324.º, n.º 1, do CPP, porquanto independentemente da demais indagação por ociosa, ele não usou do seu direito ao silêncio na audiência de julgamento, mas sim negou expressamente, aí, a prática dos factos imputados;
– do teor da fundamentação probatória da decisão recorrida, não resulta que a comprovação dos factos pronunciados n.º 5 (parte final) e n.º 11 se fundou na alegada valoração de algumas pretensas “convicções pessoais” dos dois investigadores da Polícia Judiciária ouvidos como testemunhas de acusação na audiência de julgamento; ao invés, dessa fundamentação probatória se retira que o Tribunal recorrido procedeu à sua própria análise das coisas, tendo formado a sua livre convicção sobre os factos inclusivamente pronunciados n.os 5 (parte final) e 11, com base no visionamento, feito pelo próprio Tribunal sentenciador, do disco compacto contentor da gravação das imagens do casino em causa. Por isso, independentemente do demais (não sendo já, pois, mister apurar se os dizeres dos dois investigadores da Polícia Judiciária na parte em que disseram que “conforme a experiência deles, ……” constituem convicções pessoais sobre factos ou a sua interpretação), não pode ter havido violação, por parte do Tribunal recorrido, do disposto no art.º 117.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, já procede a pretensão da revogação da decisão de arbitramento oficioso de reparação, embora com fundamentação diversa da sustentada pelo recorrente (o qual, para suportar essa pretensão, defendeu que não tinha ele praticado o crime de furto qualificado em co-autoria com o outro agente do crime): tendo o ofendido declarado expressamente, em sede de prestação das declarações em memória futura, que não pretendia procedimento civil contra o agente do crime, a decisão de arbitramento oficioso de reparação tomada no acórdão impugnado está a contrariar a vontade do ofendido, pelo que essa decisão, por não estar em sintonia com o art.º 74.º, n.º 1, alínea b), do CPP, tem que ser revogada.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogando apenas o acórdão recorrido na parte respeitante à decisão de arbitramento oficioso de reparação.
Pagará o recorrente as custas do recurso na sua parte penal, com duas UC de taxa de justiça.
Fixam em três mil patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa do arguido, 2/3 das quais ficam a cargo do recorrente, enquanto o restante 1/3 irá ser pago pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 8 de Junho de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Ajunto)
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