Processo nº 367/2017 Data: 08.06.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acidente de viação.
Crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
Produção de prova.
Princípio da investigação ou da oficialidade.
Visionamento de gravação.
SUMÁRIO
1. O art. 321° do C.P.P.M. estabelece os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, consagrando o princípio da investigação ou da oficialidade: serão produzidos os meios de provas não proibidos por lei, cuja indispensabilidade e utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa se confirmem em função do objecto do processo, e daí que nos números 3 e 4 do preceito se estipulem os pressupostos da rejeição da produção de prova (ou do respectivo meio), da sua ponderação como irrelevante ou supérflua, da sua inadequação notória, da impossibilidade ou discutibilidade da sua obtenção ou da finalidade meramente dilatória do respectivo pedido.
2. O “princípio da investigação e oficialidade” em questão exige que o Tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais, (principalmente, o Ministério Público, assistente e o arguido) lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.
3. A prova (apenas) deve ser considerada “irrelevante” quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; “supérflua” quando é inútil para a decisão da causa; “inadequada” quando é imprópria, nada permitindo demonstrar ou, de nada servindo para a decisão da causa; de “obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa” quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com “finalidade meramente dilatória” quando apenas visa protelar ou demorar a audiência.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 367/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se absolver o arguido A, com os sinais dos autos, da imputada prática de 1 crime de “ofensa à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 do C.P.M.; (cfr., fls. 460 a 467 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, do assim decidido vem B, assistente e demandante civil, recorrer, ; (cfr., fls. 504 a 518).
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Responderam o arguido e a demandada seguradora, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 524 a 531 e 532 a 539-v).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., neles subindo um outro recurso, pelo mesmo assistente antes interposto.
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Nestes autos, o assistente interpôs sucessivamente dois recursos do despacho da MMa presidente do colectivo de fls.418 verso, e do acórdão final de fls.460 a 467 dos autos.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explanações da ilustre Colega nas doutas Respostas (cfr. fls.476 a 477 e 522 a 523 verso), no sentido do não provimento dos dois recursos.
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Na Motivação de fls.440 a 450 dos autos, o assistente/recorrente imputou a nulidade contemplada na alínea d) n.°2 do art.107° do CPP por se verifica a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, ao sobredito despacho recorrido que decide: «關於觀看光碟之申請,法庭認為卷宗第79至84頁之筆錄經已足夠詳細,至目前為止未見有現場播放光碟之需要。法庭認為觀看光碟為重複行為,故此觀看光碟之申請,予以駁回。»
Neste ponto, sufragamos inteiramente as prudentes conclusões 2 e 3 da Resposta de fls.476 a 477 dos autos, pelo que se dão por reproduzidas aqui para os devidos efeitos. Frisa-se que a exactidão das conclusões está corroborada pela douta Resposta do arguido/recorrido (cfr. fls.478 a 482 dos autos).
Tudo isto torna concludente que o visionamento do vídeo pedido pelo assistente/recorrente não se podia nem pode reputar como diligência essencial para descoberta da verdade, mas se trata duma diligência sensivelmente dilatória e supérflua.
À luz do preceito na alínea a) n.°4 do art.321° do CPP, o pedido da referida diligência devia ser indeferido. Daí decorre naturalmente que o despacho em questão é legal e racional, e deste modo, não se descortina qualquer omissão posterior de diligência essencial.
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Na Motivação de fls.504 a 518 dos autos, o assistente/recorrente assacou, ao acórdão final do tribunal a quo, a ofensa do disposto no n.°1 do art.336° do CPP por valoração e utilização da prova proibida bem como erro notório na apreciação de prova.
Transparente na realidade que embora fosse indeferido o pedido de visionamento do vídeo requerido pelo recorrente, o auto de visionamento e as fotografias se encontram constantes de fls.79 a 85 dos autos e eram sempre acessíveis pelo assistente/recorrente, e também viram examinados na audiência de julgamentos pelo tribunal a quo.
Tudo isto assegura, sem margem para dúvida, a indisputável legalidade da valoração destas provas, em harmoniosa conjunção com outras provas, para a formação da convicção. Nestes termos, a 11ª conclusão da Motivação de fls.504 a 518 não faz sentido e tem de cair por terra, não existindo decerto a utilização de prova proibida.
Sopesando a desenvolvida e judiciosa a fundamentação processada pelo tribunal a quo à luz da doutrina e jurisprudência autorizadas no que dizem respeito ao erro notório na apreciação de prova consignado na c) do n.°2 do art.400° do CPP, estamos convictos de que o acórdão recorrido não eiva deste vício, pelo contrário, mostra-se inatacável.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 566 a 567).
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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 462 a 463-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Como se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..
Um, (o primeiro), de uma “decisão (interlocutória)” pelo Tribunal a quo proferida em audiência de julgamento, com a qual “indeferiu o pedido de visionamento do vídeo onde se encontravam registadas as imagens do local e momento do acidente de viação” matéria dos autos, e, o outro, (o segundo), do “Acórdão” a final do julgamento prolatado.
–– Considerando as “questões” colocadas em sede dos ditos recursos, mostra-se de começar pelo “recurso interlocutório”, (até porque, com a sua procedência, prejudicado fica o conhecimento do recurso do Acórdão).
Pois bem, aqui, em causa está saber se adequada foi a referida decisão que indeferiu o pedido do assistente no sentido de, em audiência de julgamento, se proceder ao visionamento de um vídeo que registou o local e momento do acidente de viação matéria dos autos.
E, da reflexão a que se procedeu, cremos que tem o recorrente razão.
Vejamos.
O Tribunal a quo justificou a sua decisão de indeferimento do aludido pedido alegando que os autos continham fotografias extraídas do vídeo em questão, e que, assim, justificado ou necessário não era o dito visionamento.
Em nossa opinião, adequado não se mostra o assim decidido.
Com efeito, e reconhecendo, (sem dúvidas), que “cada caso é um caso”, evidente se nos apresenta que na apreciação para decisão da (eventual) responsabilidade criminal e/ou civil de quem quer que seja (e em especial) em relação a um acidente de viação, essencial, (imprescindível), é a “compreensão” da(s) sua(s) causa(s) e circunstâncias, para a qual, (como é óbvio), necessária é a uma (boa) “análise e percepção do evento”, com a sua dinâmica (própria e) específica, não se podendo olhar para o mesmo como um “facto instantâneo” (ou “estático”).
Dest’arte, admitindo-se que “outros elementos probatórios” podem contribuir ou (mesmo) permitir tal percepção – nomeadamente, os “croquis” elaborados pelos agentes de autoridade que se deslocam ao local do acidente e descrevem o que apuram e verificam no local e momento, as “declarações”, “depoimentos”, “perícias” e até mesmo “fotografias” – afigura-se-nos claro e inegável que a visualização de uma gravação com as imagens do (próprio) evento não deixarão de viabilizar a referida (e desejada) “percepção dinâmica do evento”.
Com efeito, indiscutível se nos apresenta que por melhor e mais pormenorizada que seja ou possa ser a “descrição de um evento”, a mesma não se compara à sua “visualização”, pois que há sempre “aspectos” de difícil (senão impossível) descrição (e compreensão).
Aliás, não é por mero acaso que em investigação criminal se recorre à técnica da “reconstituição do crime”, com o(s) seu(s) autor(es) a reproduzir, no local, (e com o máximo de rigor), toda a conduta que desenvolveram, sendo esta gravada para posterior visionamento.
E dito isto, cremos que à vista está a solução.
De facto, constatando-se que as invocadas fotografias dos autos, (ainda que extraídas da gravação cujo visionamento se pretende), não abrangem toda a gravação, (cobrindo, todo o evento e sendo, digamos, incompleta), e, como se referiu, evidente sendo que uma coisa é “ver as fotografias (de determinados momentos) de um acontecimento”, e outra é “ver o desenrolar do mesmo acontecimento, no exacto ritmo e sequência factual em que ocorreu”, há pois que reconhecer que não se pode manter a decisão recorrida, (notando-se, também, que, a final, se veio a proferir uma decisão absolutória).
Importa ter em conta que nos termos do art. 321°, n.° 3 do C.P.P.M.: “Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 309.º” – quanto à questão da “continuidade da audiência de julgamento”, o que não está em causa na situação dos autos – “os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis”, o que, de forma manifesta, não é o caso; (cfr., art. 113° onde se regula a matéria dos “métodos proibidos de prova”).
Por sua vez, há igualmente que atentar que nos termos do n.° 4 deste mesmo art. 321° do C.P.P.M.:
“Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado ou de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória”.
E, no caso, sem esforço se mostra de concluir que verificada não está nenhuma das “situações” assim previstas.
Com efeito, o comando legal em questão estabelece os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, consagrando o princípio da investigação ou da oficialidade: serão produzidos os meios de provas não proibidos por lei, cuja indispensabilidade e utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa se confirmem em função do objecto do processo, e daí que nos números 3 e 4 do preceito se estipulem os pressupostos da rejeição da produção de prova (ou do respectivo meio), da sua ponderação como irrelevante ou supérflua, da sua inadequação notória, da impossibilidade ou discutibilidade da sua obtenção ou da finalidade meramente dilatória do respectivo pedido; (nesse sentido, cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Guimarães de 07.11.2016, Proc. n.° 121/15, in “www.dgsi.pt”).
De facto, o “princípio da investigação e oficialidade” em questão exige que o Tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais, (principalmente, o Ministério Público, assistente e o arguido) lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.
E, como cremos ser de entender, a prova (apenas) deve ser considerada “irrelevante” quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; “supérflua” quando é inútil para a decisão da causa; “inadequada” quando é imprópria, nada permitindo demonstrar ou, de nada servindo para a decisão da causa; de “obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa” quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com “finalidade meramente dilatória” quando apenas visa protelar ou demorar a audiência.
Não sendo o caso dos autos, imperativa é a procedência do recurso em apreciação, prejudicado ficando o conhecimento do recurso do Acórdão a final prolatado, (no qual se assacava ao aí decidido, “erro” em consequência do não visionamento da gravação do acidente)
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso da “decisão interlocutória que indeferiu o pedido de visionamento da gravação do acidente”, não se conhecendo do “recurso do Acórdão” porque prejudicado.
Custas pelo arguido, que respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Registe e notifique.
Após trânsito, devolvam-se os presentes autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 08 de Junho de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 367/2017 Pág. 16
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