Processo nº 286/2017 Data: 08.06.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “dano”.
Alteração da matéria de facto.
Factos novos.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
A mera “clarificação” (concretização) da matéria de facto não constitui alteração da matéria de facto, (com introdução de factos novos).
O relator,
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Processo nº 286/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenada como autora material da prática de 1 crime de “dano”, p. e p. pelo art. 206°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de MOP$100,00, perfazendo a multa de MOP$4.500,00 ou 30 dias de prisão subsidiária, assim como no pagamento de MOP$300,00 de indemnização à ofendida; (cfr., fls. 147 a 149 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu para, em síntese, assacar à sentença recorrida a nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M., e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 159 a 170).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 177 a 179-v).
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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Submetida a julgamento em processo comum perante tribunal singular, acusada da prática de um crime de dano, viria a ora recorrente A a ser condenada na pena de 45 dias de multa à taxa diária de MOP $100.00, convertível em 30 dias de prisão.
Inconformada com a condenação, vem recorrer da sentença, à qual imputa a nulidade prevista no artigo 360.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal, erro na apreciação da prova e erros de direito na integração dos factos provados no tipo de ilícito de dano e na avaliação da ilicitude, por desconsideração do direito de necessidade.
Vejamos, começando naturalmente pela questão da nulidade.
Diz a recorrente que estava acusada por ter danificado uma calha plástica que contornava uma canalização de água e que acabou condenada por ter danificado as braçadeiras plásticas que acoplavam a calha plástica à canalização, o que configura uma alteração não substancial de factos, que, não lhe tendo sido comunicada, importa uma violação do princípio do contraditório que a impediu de reorganizar a sua defesa. Teria, assim, sido cometida a nulidade prevista no artigo 360.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
Não creio que esteja em causa qualquer alteração de factos, tão pouco uma alteração não substancial, tal como nota o Ministério Público na sua resposta.
A arguida estava acusada de um crime de dano, por, em 7 de Janeiro de 2013, ter “demolido” uma calha plástica que protegia uma canalização de água, actuando contra a vontade, em prejuízo e sem autorização do dono, a ofendida B. Ficou provado que a arguida, ora recorrente, sem a necessária autorização, mediante corte das braçadeiras que acoplavam a calha à canalização, provocou a desmontagem da calha. Pois bem, demolir é derrubar, deitar abaixo, desfazer, desconjuntar, separar, desmantelar, enfim, desmontar. Não há, pois, diferença relevante, ao ponto de se poder falar de alteração de factos, entre a acusação e aquilo que resultou provado. Digamos que, em julgamento, resultou apurado o processo concreto através do qual se materializou o dano imputado à arguida. Mas o dano continua a ser o mesmo, ou seja, a inutilização funcional da calha, através do seu derrube, da sua “demolição”, mediante o corte das braçadeiras que a mantinham acoplada à canalização. Ou seja, a recorrente derrubou um dispositivo que estava destinado a resguardar a canalização, para evitar a queda directa de pingos no corredor, tornando-o assim não utilizável.
Não se detecta a invocada alteração pelo que não ocorreu a arguida nulidade.
Seguidamente, a recorrente sustenta que a sentença padece de erro na apreciação da prova, pois o tribunal não podia ter dado como provado que a recorrente cortou a braçadeira plástica.
Constata-se, todavia, que, ao explicitar a formação da sua convicção, o tribunal esclareceu a razão que o levou a dar por assente que as braçadeiras foram cortadas pela recorrente. Assim, tendo apurado que fora a recorrente quem retirara a calha e tendo apurado que a calha estava anteriormente segura ou acoplada à canalização por braçadeiras em tensão, a extracção da calha [sem afectação da canalização] apenas era possível mediante o corte das braçadeiras. Juízo lógico, escorado na prova produzida e com ela condizente.
A alegação da recorrente releva de uma visão esparsa da prova, quando é sabido que a prova tem que ser considerada e avaliada numa lógica de globalidade. Além de que o raciocínio que utiliza assenta em factos totalmente estranhos ao processo, que não foram, nem podiam ter sido, considerados e valorados na elaboração da sentença, e que, de igual modo, não podem agora ser considerados.
Nenhum erro de apreciação de prova se detecta no processo de formação da convicção do juiz, muito menos aquele erro notório exigido pelo artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código do Processo Penal, que possa pôr em xeque o veredicto a que chegou a sentença na matéria em causa.
No prosseguimento da sua motivação, a recorrente assevera que, não tendo ficado provado quem cortou as braçadeiras, desconhece-se se estas foram ou não danificadas, pelo que, na dúvida, não se pode ter por realizado o ilícito típico do artigo 206.°, n.° 1, do Código Penal.
Já tínhamos visto que o corte das braçadeiras fez parte do processo de inutilização funcional da calha, o que afastava a hipótese de alteração do objecto do dano. E acabámos de ver que o tribunal apurou, sustentadamente, ter sido a recorrente quem cortou as braçadeiras.
Soçobram, assim, as dúvidas em que a recorrente estribava a censura da sentença por ter dado como provado o ilícito de dano.
Finalmente, para o caso de vingar a tese de que o dano foi produzido pela recorrente, contrapõe esta que o fez numa situação de direito de necessidade, o que convoca uma causa de exclusão da ilicitude.
Torna-se despiciendo aprofundar a questão da verificação do direito de necessidade, pois é manifesto que, na tentativa de o caracterizar, a recorrente chamou a terreiro um conjunto de factos totalmente estranhos ao objecto do processo, tais como aqueles que se referem a perigo de vida e impedimento de acesso a casa, que obviamente não podem ser tidos em conta.
Também este argumento improcede.
Termos em que, na improcedência dos vícios e erros suscitados, deve ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 256 a 257-v).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 147-v a 148, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a arguida recorrer da sentença que a condenou como autora material da prática de 1 crime de “dano”, p. e p. pelo art. 206°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de MOP$100,00, perfazendo a multa de MOP$4.500,00 ou 30 dias de prisão subsidiária, assim como no pagamento de MOP$300,00 de indemnização à ofendida.
É de opinião que a decisão recorrida está inquinada com a nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M. e “erro notório na apreciação da prova”. Si Ut Ieng
Cremos que o recurso não merece provimento, como, aliás, de forma clara e cabal se demonstra no Parecer do Ministério Público que se deixou transcrito e que aqui se adopta como solução para o presente recurso.
Seja como for, sempre se dirá ainda o que segue.
Vejamos.
–– Nos termos do art. 360° do C.P.P.M.:
“1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 355.º; ou
b) Que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 339.º e 340.º
2. As nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso, podendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 404.º”.
No caso diz a arguida que o Tribunal a quo “alterou a matéria de facto”, introduzindo na sua decisão (quanto aos “factos provados”) “factos novos” que não constavam da acusação.
Ora, há evidente equívoco, pois que em bom rigor, não se pode falar de “facto novo”.
Com efeito, o que sucedeu foi que o Tribunal a quo procedeu tão só a um “clarificação” da matéria constante da acusação, concretizando (de forma objectiva) a conduta da arguida ora recorrente.
De facto, enquanto na acusação se dizia que a arguida tinha “destruído a calha de plástico”, após o julgamento, e na sua decisão da matéria de facto, deu o Tribunal como provado que a arguida “danificou os fixadores da (mesma) calha”.
Como se vê, o que sucedeu foi ter o Tribunal efectuado uma (mera) “clarificação”, concretização, da conduta da arguida, adequado não sendo considerar-se que introduziu “factos novos”.
–– Quanto ao assacado “erro”, idêntica é a solução.
Com efeito, temos considerado que “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.02.2017, Proc. n.° 341/2016, de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016 e de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016, de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017 e 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017).
No caso não se vislumbra que tenha o Tribunal a quo violado qualquer “regra sobre o valor das provas tarifadas”, “regra de experiência” ou “legis artis”, limitando-se a arguida a tentar controverter o decidido, afrontando o “princípio de livre apreciação da prova”, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), em conformidade com o qual se decidiu a factualidade em questão.
Assim, não padecendo a decisão da matéria de facto de qualquer maleita, inexistindo qualquer “estado de necessidade”, já que, aqui sim, a matéria (agora) alegada é “nova”, (não constituindo também a pretendida “causa de exclusão da ilicitude” do art. 33° do C.P.M.), e integrando a factualidade provada os elementos objectivos e subjectivos do crime de “dano” pelo qual foi a arguida condenada, resta decidir pela confirmação do decidido.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará a arguida a taxa de justiça de 5 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 08 de Junho de 2017
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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Proc. 286/2017 Pág. 15