Processo nº 428/2017 Data: 15.06.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla informática”.
“Burla qualificada” e “burla simples”.
Queixa.
Legitimidade do Ministério Público.
Arquivamento dos autos.
Recurso.
Âmbito de recurso.
SUMÁRIO
1. Verificando-se, após audiência de julgamento, que o crime cometido não é o de “burla (informática) qualificada”, mas sim o de “burla (informática) simples”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009, cujo procedimento penal depende de “queixa” do titular do direito respectivo, (cfr., n.° 4), e constatando-se da sua falta, deve o Tribunal – após contraditório sobre a questão e mantendo-se tal situação – decretar o arquivamento dos autos.
2. Não o tendo feito, e colocada estando a questão em sede do recurso por um arguido trazido a este T.S.I., impõe-se sanar tal omissão, sendo a decisão de “arquivamento dos autos” extensiva aos restantes co-arguidos; (cfr., art. 392°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.P.M.).
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 428/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A e B, (1° e 4°) arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B., vindo a ser condenados como co-autores materiais da prática de 1 crime de “burla informática (simples)”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009, na pena (individual) de 1 ano de prisão.
Em cúmulo jurídico com as penas que ao (4°) arguido B tinham sido aplicadas no âmbito dos Processos CR3-14-0096-PCS e CR2-15-0054-PCC, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 8 anos e 1 mês de prisão; (cfr., fls. 1713 a 1726 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, os (1° e 4°) arguidos recorreram.
O (1°) arguido A, é de opinião que o Ministério Público padece de “falta de legitimidade para deduzir acusação”, pedindo, também, a suspensão da execução da pena, e a devolução do montante de MOP$130.000,00 por si depositado à ordem dos autos; (cfr., fls. 1792 a 1808).
O (4°) arguido B, considera (apenas) que excessiva é pena única; (cfr., fls. 1768 a 1772-v).
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Respondendo, diz o Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 1856 a 1860 e 1861 a 1863).
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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Nestes autos, emergiram-sena realidade, dois recursos do douto Acórdão do Tribunal a quo (cfr. fls.1713 a 1726 dos autos), interpostos pelos 1° e 4° arguidos, de nome respectivamente A e B.
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1. Do recurso do arguido A
Na Motivação de fls.1792 a 1808 dos autos, o 1° arguido/recorrente arrogou a nulidade derivada do excesso de pronúncia e, subsidiariamente a ofensa do disposto no art.48° do Código Penal de Macau, e ainda em cumulação, a restituição da quantia de MOP$130,000.00 depositada por si a título de (eventual) indemnização à ofendida.
1.1. Convém ter presente que na Acusação (cfr. fls.1713 a 1726 dos autos), a ilustre colega imputou, ao 1° arguido/recorrente a prática, na co-autoria material, de um crime de associação criminosa p.p. pelo n.°1 do art.288° do CPM e, em concurso real, de um crime de burla informática de valor consideravelmente elevado p.p. pelas disposições no n.°1 e na alínea 2) do n.°3 do art.11° da Lei n.°11/2009.
Sucede que no Acórdão em escrutínio, o Tribunal a quo absolveu todos os arguidos da Acusação no que concerne ao crime de associação criminosa, e convolou a acusação quanto ao crime de burla informática de valor consideravelmente elevado para o de burla informática simples p. p. pelo preceito no n.°1 do art.11° da Lei n.°11/2009.
Considerando que são públicos ambos os dois crimes indicados na dita Acusação pela ilustre colega, colhemos tranquilamente que o M.°P.° tinha detido plena legitimidade até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento (art.37° bem como arts.38° e 39°, a contrario sensu, do CPP).
Pois bem, é a convolação operada pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido que implica que a legitimidade do M.°P.° passaria a depender da queixa da ofendida do referido crime de burla informática simples (art.11°, n.°4, da citada Lei), imputado pelo Tribunal a quo ao 1° arguido/recorrente e aos demais co-autores aí identificados.
1.2. O nosso ordenamento jurídico rege-se pela regra geral de que a queixa de ofendido de qualquer crime semipúblico não só constitui conditio sine qua non da legitimidade do M.°P.° para impulsionar respectivo processo penal, mas também pressuposto processual do exercício do jus puniendi pelo tribunal. (cfr. Acórdão do TSI no processo n.°132/2002)
Ora, na medida em constituir pressuposto processual, a queixa é do conhecimento oficioso do tribunal. Daí decorre que perante a convolação dum crime público para semipúblico no aresto final do julgamento, cabe ao tribunal indagar oficiosamente se existir queixa válida e eficaz?
A leitura do douto Acórdão em questão deixa-nos impressão de que a matéria de facto provada não dá mínima referência à queixa da ofendida do sobredito crime de burla informática simples, e o tribunal a quo não averiguou se a ofendida tivesse apresentado queixa.
Nesta ordem de consideração, e ressalvado respeito pela opinião diferente, afigura-se-nos que se verifica in casu a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenar o 1° arguido/recorrente na prática, na co-autoria material, dum crime de o de burla informática simples p. p. pelo preceito no n.°1 do art.11° da Lei n.°11/2009.
De outro lado, avaliando os dados nos autos em harmonia com as sagazes jurisprudências do venerando TSI no sentido de que a denúncia criminal em relação a crimes particulares ou semipúblicos tem carácter pessoal (vide. acórdão do TSI no processo n.°210/2005), inclinamos a entender que não existe in casu queixa virtuosa de suportar a decisão condenatória.
Tudo isto conduz necessariamente a procedência do argumento (do recorrente) em análise.
1.3. A elevada probabilidade da procedência do argumento supra analisado torna prejudica a apreciação do pedido subsidiário do recorrente de lhe ser concedida a suspensão de execução nos termos do disposto no art.48° do Código Penal de Macau.
Atendendo à inexistência do pedido de indemnização pela parte da ofendida, entendemos ser procedente o último pedido do recorrente, no sentido de lhe restituir aquela quantia de $130,000.00 patacas.
2. Do recurso do arguido B
Na Motivação de fls.1768 a 1772 v. dos autos, o 4° arguido criticou a gravidade da pena única cominada no Acórdão recorrido, no qual o tribunal a quo procedeu ao cúmulo jurídico e, afinal, condenou-lhe a pene de prisão de oito anos e um mês.
Ora, é patente e concludente que a omissão de queixa pela ofendida e a consequente falta de pressuposto processual da condenação operada no Acórdão em causa não são fundamento pessoal do 1° arguido, embora sejam alegadas apenas por este arguido.
Assim que seja, e nos termos do preceituado na alínea a) do n.°2 do art.392° do CPP, o recurso do 1° arguido aproveita ao 4° arguido. Daí resulta que a procedência do recurso do 1° arguido trará mesma sorte ao recurso do 4° arguido, e prejudica a apreciação daquela razão invocada por este arguido.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência dos dois recursos acima apreciados”; (cfr., fls. 1906 a 1907-v).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 1716-v a 1719-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem os (1° e 4°) arguidos A e B recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores da prática de 1 crime de “burla informática”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009, na pena individual de 1 ano de prisão, sendo que em cúmulo jurídico com outras penas foi o (4°) arguido B condenado na pena única de 8 anos e 1 mês de prisão.
Considera o (1°) arguido A que o Ministério Público padece de “falta de legitimidade para deduzir acusação”, entendendo também que excessiva é a pena, pedindo ainda a devolução do montante de MOP$130.000,00 que depositou nos autos.
Por sua vez, é o (4°) arguido B de opinião que “excessiva é a pena única” que lhe foi aplicada.
–– E, começando pelo “recurso do (1°) arguido A”, e assim, pela alegada “falta de legitimidade do Ministério Público”, cremos que tem razão.
Com efeito, e como – bem – observa o Ilustre Procurador Adjunto, o arguido ora recorrente foi (inicialmente) acusado da prática, em concurso real, de 1 crime de “associação criminosa”, p. e p. pelo art. 288° do C.P.M. e de 1 outro de “burla informática de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 e 3, al. 2) da Lei n.° 11/2009.
Porém, o Colectivo a quo decidiu pela sua absolvição quanto ao crime de “associação criminosa”, convolando o crime de “burla qualificada” para o de “burla simples”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da dita Lei n.° 11/2009.
Nesta conformidade, e se em relação àqueles crimes, (dada a sua natureza de “crimes públicos”), tinha o Ministério Público legitimidade para promover o respectivo procedimento criminal, evidente é que assim não sucede em relação ao crime de “burla simples”, (pelo qual foi o ora recorrente condenado), necessária sendo a “queixa do ofendido”.
De facto, nos termos do art. 11° da Lei n.° 11/2009:
“1. É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro, causando prejuízo patrimonial a outrem:
1) Introduzir, alterar, suprimir ou eliminar dados informáticos;
2) Interferir no resultado de tratamento de dados informáticos;
3) Estruturar incorrectamente programa informático; ou
4) Intervier no funcionamento de sistema informático.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial causado for:
1) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos;
2) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
4. Nos casos previstos nos n.os 1 e 2, o procedimento penal depende de queixa”; (sub. nosso).
E, nos termos do art. 38° do C.P.P.M.:
“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais”; (sub. nosso).
No caso, e como adequadamente salienta o Ilustre Procurador Adjunto, não foi apresentada “queixa” pelo titular do direito respectivo, e, assim, deveria o Tribunal a quo decidir em conformidade, ou seja, pelo “arquivamento dos autos”.
Não o tendo feito, evidente é que o recurso procede, havendo que se revogar a decisão de condenação recorrida, procedendo também o pedido de devolução da quantia pelo recorrente depositada à ordem dos autos.
–– Passemos agora ao recurso do (4°) arguido B.
Aqui, idêntica sendo a situação, e atento o estatuído no art. 392°, n.° 1, 2, al. a) do C.P.P.M. – onde se preceitua que “salvo se fundado por motivos estritamente pessoais, o recurso interposto por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes” – a mesma terá que ser a solução.
Com efeito, por falta de queixa e consequente legitimidade do Ministério Público, não podia o Tribunal a quo proferir a decisão condenatória que proferiu, e consequentemente, o mesmo sucedendo com a que operou o cúmulo jurídico, pois que motivos não existem para a sua feitura no âmbito destes autos.
Há pois que se revogar igualmente o decidido em relação a este (4°) arguido.
–– Aqui chegados, uma última questão importa resolver.
Verifica-se que com o Acórdão recorrido decidiu-se condenar também os (2ª, 3°, 5°, 6ª, 7ª, 8°, 9°, 10° e 11°) arguidos, C, D, E, F, G, H, I, J e K, como co-autores do mesmo crime de “burla” do art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 11/2009.
Pelos mesmos motivos, e em conformidade com o citado art. 392°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.P.M., há que revogar a decidida condenação.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso do (1°) arguido A, revogando-se a decisão condenatória recorrida, e decretando-se a devolução ao recorrente da quantia que depositou à ordem dos autos e o seu oportuno arquivamento.
Por aplicação do art. 392°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.P.M. a decretada “revogação da decisão condenatória recorrida” e o “arquivamento dos autos” produz também efeitos em relação aos restantes (2ª, 3°, 4°, 5°, 6ª, 7ª, 8°, 9°, 10° e 11°) arguidos, C, D, B, E, F, G, H, I, J e K.
Sem tributação.
Verificando-se que a (2a) arguida C encontra-se em cumprimento da pena de 1 ano decretada com o Acórdão recorrido, passem-se de imediato os competentes mandados de soltura.
Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso do (4°) arguido B no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 15 de Junho de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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