Processo nº 268/2017 Data: 15.06.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Audiência de julgamento.
Falta de testemunha.
Mandado de detenção.
SUMÁRIO
Verificando-se que uma testemunha – de cujo depoimento não se prescinde – repete, sem (adequada) justificação, a sua falta à audiência de julgamento para a qual foi pessoal e regularmente notificada, adequada é a emissão de mandados para a sua detenção e condução ao Tribunal a fim de ser inquirida.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 268/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 13.01.2017, decidiu-se absolver A, arguido com os sinais dos autos, da imputada prática de 1 crime de “usura para jogo”, (no qual era ofendida B), p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., condenando-se porém o mesmo arguido como autor de 1 (outro e) idêntico crime de “usura para jogo” (tendo como ofendido C), fixando-se-lhe a pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 2 anos.
Em cúmulo jurídico com as penas que lhe tinham sido aplicadas no âmbito do Processo CR2-16-0170-PCS e CR3-16-0195-PCS, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 2 anos; (cfr., fls. 286 a 291-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com a decretada absolvição, o Ministério Público recorreu, alegando – em síntese – que o Colectivo do T.J.B. incorreu em “erro de direito” por violação do art. 103°, 104°, 304°, 309°, 312° e 321° do C.P.P.M. e em consequente “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pedindo o reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., fls. 299 a 301-v).
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Sem resposta, e, admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., neles subindo um outro recurso antes também pelo Ministério Público interposto de uma decisão pelo Tribunal proferida em audiência de julgamento; (cfr., fls. 280 a 283-v).
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“O Ministério Público interpôs dois recursos, no âmbito do processo CR3-15-0368-PCC, trazendo a escrutínio o despacho de 29 de Novembro de 2016, da presidente do tribunal colectivo do 3.° juízo criminal, proferido na audiência de julgamento e exarado em acta, e o acórdão de 13 de Janeiro de 2017.
Não houve resposta às motivações dos recursos.
Vejamos o recurso do despacho de 29 de Novembro.
Está em causa o seguinte:
Na primeira sessão da audiência de julgamento, que teve lugar em 8 de Novembro de 2016, a testemunha B, apesar de estar devidamente notificada, não compareceu. Na oportunidade, o Ministério Público nada opôs ao começo da audiência, reservando para momento posterior a pronúncia sobre a necessidade de ouvir tal testemunha. A audiência prosseguiu, mas o tribunal agendou, de imediato, a data de 29 de Novembro para audição da testemunha faltosa, pelas 17:00 horas.
A testemunha faltosa não justificou a falta.
Em 29 de Novembro, na retoma da audiência, constatou-se que, apesar de se encontrar também devidamente notificada, a referida testemunha voltou a não comparecer. Conforme exarado em acta, o sr. funcionário deu conhecimento de que, mediante telefonema efectuado pela secção antes do início da audiência, a testemunha informara que não estava bem disposta e que não ia comparecer.
O Ministério Público, argumentando que a testemunha já havia faltado em 8 de Novembro e que também não comparecera nesse dia 29, requereu que ela fosse feita comparecer mediante detenção, para poder ser inquirida.
Segue-se, então, o despacho objecto de recurso, através do qual a Mm.a presidente do colectivo ponderou que, tendo sido obtida telefonicamente a informação segundo a qual a testemunha não estava bem disposta e não podia comparecer, não era aplicável à situação o artigo 103.° do Código de Processo Penal, pelo que não havia lugar a detenção e condução ao tribunal. Além disso, porque a testemunha já faltara anteriormente, o que motivara o adiamento da audiência, e dado que esta não podia ser adiada mais do que uma vez com tal fundamento, foi rejeitado o requerimento do Ministério Público em vista da inquirição da testemunha.
Na sua motivação de recurso, o Ministério Público imputa a este despacho a violação, entre outras, das normas dos artigos 103.°, n.° 2, 104.°, n.° 8, 304.°, alínea b), e 321.°, n.° 1, do Código de Processo Penal.
Crê-se que lhe assiste razão.
O Ministério Público não prescindiu da testemunha nem desistiu da sua inquirição, aliás previsivelmente importante e decisiva para a prova de parte dos factos da acusação, dado o teor desta, o tipo de ilícito que estava em causa e a forma indocumentada como se processavam em regra os empréstimos e devoluções.
Também a circunstância de o tribunal, na primeira sessão, haver logo agendado, motu proprio, uma nova data, para inquirição da testemunha faltosa, aponta para a importância do depoimento.
Haveria, pois, que esgotar todas as hipóteses possíveis para viabilizar a inquirição da testemunha.
É verdade que, por norma, a audiência não pode ser adiada mais do que uma vez por falta de testemunhas e outros intervenientes mencionados no artigo 312.°, conforme ponderou o despacho recorrido.
Mas, no caso, não parece que só restasse, como única alternativa à emissão de mandados de detenção para comparência, o adiamento da audiência. Como o Ministério Público nota, na sua minuta de recurso, se o tribunal pressupôs, como parece, que a testemunha estava impedida de comparecer, então podia/devia providenciar pela audição da testemunha faltosa no local onde ela se encontrasse, por força das normas dos artigos 104.°, n.° 8, 304.°, alínea b), e 321.°, n.° 1, do Código de Processo Penal. É provável que, dada a hora a que foi retomada a audiência (17:50), não pudesse proceder-se de imediato à inquirição, no local onde estivesse a testemunha. Mas isso não implicava o adiamento da audiência, mas tão só a sua interrupção, para prosseguir no dia útil imediato, como permitido pelo artigo 309.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
E se a inquirição no local se coloca como uma solução possível do caso, ante a hipótese de impossibilidade de comparência da testemunha, crê-se que, em rigor, essa impossibilidade não é verosímil, muito menos resultando evidenciada ou demonstrada, pelo que se deveria ter lançado mão dos mandados de detenção para comparência.
Repare-se que não foi a testemunha quem tomou a iniciativa de comunicar a impossibilidade de comparência, como devia, nos termos do artigo 104.°, n.° 2, do Código de Processo Penal. Foi o tribunal, por intermédio da secção, quem a contactou, tal como já tinha sucedido da primeira vez em que faltou. Em ambos os casos, a razão avançada foi uma indisposição. E em nenhum dos casos justificou as faltas.
De acordo com o artigo 103.° do Código de Processo Penal, no caso de falta injustificada de comparência, como sucedera em 8 de Novembro de 2016, há, ou pode haver, lugar à detenção para possibilitar a comparência para realização da diligência. Tendo a testemunha faltado injustificadamente em 8 de Novembro, o Ministério Público requereu, pela primeira vez em que teve oportunidade de o fazer no processo, ou seja, em 29 de Novembro, a detenção da testemunha faltosa. É claro que, se o processo lhe tivesse sido presente anteriormente, logo que findou o prazo para justificação da falta, poderia ter requerido previamente essa detenção, com base na anterior falta injustificada, detenção que assim poderia ser efectuada num timing compatível com a apresentação na hora da retoma do julgamento em 29 de Novembro. Como não teve anteriormente vista do processo, requereu a detenção para comparência na primeira oportunidade que se lhe deparou.
Pois bem, aqui chegados, afigura-se que uma simples indisposição – não foi invocada doença ou qualquer impedimento, físico ou outro – não é motivo que deva sobrepor-se ao interesse da justiça e da procura da verdade material, para desonerar uma testemunha de comparecer. Tanto mais que idêntica indisposição fora invocada para faltar à sessão de 8 de Novembro, sem que, como se disse, o faltoso viesse a justificar a falta. Haveria, em nosso critério, que expedir os mandados para detenção, para assegurar a comparência da testemunha. Como se referiu supra, é provável que, dada a hora a que foi retomada a audiência (17:50), não houvesse possibilidade de executar de imediato os mandados para se proceder logo à inquirição. Mas nada impedia, como se aludiu, a interrupção da audiência, para prosseguir no dia útil imediato, para audição da pessoa a apresentar, como permitido pelo artigo 309.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
Procedem, pois, os argumentos dirigidos contra o recorrido despacho de 29 de Novembro, pelo que, no provimento do recurso, deve mandar-se proceder à omitida inquirição da testemunha, anulando-se o processado posterior ao requerimento do Ministério Público nesse sentido, com o que fica prejudicado o conhecimento do recurso interposto do acórdão”; (cfr., fls. 381 a 383).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 287 a 288, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Dois são os recursos pelo Ministério Público trazidos à apreciação deste T.S.I..
Um “interlocutório”, tendo como objecto uma decisão proferida em sede de audiência de julgamento, e o segundo, do Acórdão pelo T.J.B. a final proferido.
–– Ponderando nas questões colocadas, mostra-se de começar pelo aludido “recurso interlocutório”.
Pois bem, com relevo para a decisão a proferir importa atentar no que segue:
- o Ministério Público deduziu “acusação” imputando ao arguido dos autos a prática de 2 crimes de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., arrolando como testemunhas as pessoas aí indicadas, (cfr., fls. 198);
- o processo seguiu os seus termos, com a remessa dos autos para julgamento no T.J.B., onde foi designado o dia 08.11.2016 para a audiência;
- nesta data, e não obstante devidamente notificada, a ofendida e testemunha B não compareceu;
- perante a referida falta, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu que se desse início à audiência de julgamento e que, oportunamente, se voltasse a apreciar a situação;
- o Tribunal entendeu designar o dia 29.11.2016, pelas 17H00, para a inquirição de B, e prosseguiu com a audiência;
- chegado ao dia 29.11.2016, e não obstante regularmente notificada, veio-se a constatar nova falta de B, que em conversa telefónica efectuada por funcionário judicial alegou estar indisposta, afirmando que não iria comparecer.
- em face de tal situação, e dada a palavra ao Ministério Público, promoveu o Digno Magistrado que de imediato fossem passados mandados para a detenção e condução de B ao Tribunal para efeitos da sua inquirição;
- pronunciando-se sobre tal promoção, (que não teve oposição do Exmo. Defensor do arguido), decidiu o Tribunal pelo seu de indeferimento, e outra diligência não havendo a realizar, designou o dia 13.01.2017 para a leitura do Acórdão.
Sendo esta “decisão de indeferimento” a decisão objecto do presente “recurso interlocutório”, vejamos.
Nos termos do art. 103° do C.P.P.M. (e sob a epígrafe “Falta injustificada de comparecimento”):
“1. Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 1 UC e meia e 8 UC.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente, pelo tempo indispensável à realização da diligência, e, bem assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas.
3. Se a falta for cometida pelo arguido, pode ainda ser-lhe aplicada medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível.
4. Se a falta for cometida pelo Ministério Público ou por advogado constituído ou nomeado no processo, dela é dado conhecimento, respectivamente, ao superior hierárquico ou ao organismo representativo da profissão”.
Por sua vez, (e tratando da “Justificação da falta de comparecimento”) prescreve o art. 104° do mesmo C.P.P.M. que:
“1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.
2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada:
a) Se for previsível, com pelo menos 5 dias de antecedência ou, não sendo isso possível, com a maior antecedência possível; e
b) Se for imprevisível, no dia e hora designados para a prática do acto.
3. Da comunicação referida no número anterior consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.
4. Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no n.º 2, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora do acto processual, caso em que podem ser apresentados no prazo de 5 dias.
5. Para efeitos do disposto no número anterior, sempre que haja lugar a produção da prova testemunhal, não podem ser indicadas mais de 3 testemunhas.
6. Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável da duração do impedimento, podendo, porém, o valor probatório do atestado ser abalado ou contrariado por qualquer outro meio de prova admissível.
7. Se for impossível obter atestado médico, é admissível qualquer outro meio de prova.
8. Provada a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento, pode o faltoso ser ouvido no local onde se encontrar, sem prejuízo da realização do contraditório legalmente admissível no caso”.
No caso dos presentes autos, a testemunha em questão foi regularmente notificada para a audiência de julgamento que teve lugar no dia 08.11.2016 e, perante a sua falta, designou-se nova data, (o dia 29.11.2016), para a qual, não obstante também regularmente notificada, voltou a faltar.
Tanto quanto resulta dos autos, em relação à sua falta do dia 08.11.2016, nenhuma justificação apresentou, limitando-se a dizer, no dia 29.11.2016, e apenas quando telefonicamente contactada pelo Tribunal, que “estava indisposta e que não iria comparecer”.
Ora, perante isto, cremos que adequada não foi a decisão proferida e ora recorrida.
É verdade que o requerido “mandado de detenção” iria implicar a restrição de um direito fundamental, (a liberdade individual), e que o Tribunal a quo não deixou de ponderar na (alegada) “indisposição da testemunha”, tendo também invocado o estatuído no art. 312°, n.° 3 do C.P.P.M., que tratando da “Falta do assistente, da parte civil, de testemunhas ou de peritos”, estatui o que segue:
“1. Sem prejuízo do disposto no artigo 103.º, a falta do assistente, da parte civil, de testemunhas ou de peritos não dá lugar ao adiamento da audiência, sendo o assistente e a parte civil representados para todos os efeitos legais pelos respectivos advogados constituídos.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, decidir, por despacho, que a presença de algumas pessoas ali mencionadas é indispensável à boa decisão da causa e não ser previsível que se possa obter o seu comparecimento com a simples interrupção da audiência.
3. Por falta das pessoas mencionadas no n.º 1 não pode haver mais do que um adiamento.
4. Na situação prevista no n.º 2, são inquiridas as testemunhas e ouvidos o assistente, os peritos ou a parte civil presentes, mesmo que tal implique a alteração da ordem de produção da prova referida no artigo 322.º”.
Todavia, outro é o nosso ponto de vista.
Com efeito, inquestionável parece ser que a todos cabe um “dever de cooperar com os Tribunais”, não bastando uma (mera) alegação de “súbita indisposição” para se justificar uma falta de comparência a uma diligência judicial para a qual se foi tempestiva e regularmente notificado.
Não é pois por mero acaso que o art. 104° do C.P.P.M. impõe ao faltoso o “dever de justificar a falta”, estatuindo os termos e o modo desta mesma justificação.
E, no caso, sendo a “2ª falta”, e “sem justificação”, tendo o Ministério Público requerido o que requereu, (a sua detenção e condução ao Tribunal) – o que leva a concluir da utilidade e necessidade da inquirição da testemunha em causa, (e nenhuma oposição havendo por parte do Defensor do arguido) – cremos pois que outra solução se devia adoptar, ou seja, devia o Tribunal acolher a promoção que lhe foi apresentada, apresentando-se-nos também a decisão em questão pouco compatível com o princípio da investigação consagrado no art. 321° do C.P.P.M, que, como sabido é, exige que o Tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais, (principalmente, o Ministério Público, assistente e o arguido) lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.
–– Perante isto, e constatando-se da procedência do recurso interlocutório, prejudicado fica o conhecimento do recurso do Acórdão a final prolatado.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso interlocutório pelo Ministério Público interposto da decisão que não acolheu a sua promoção apresentada em audiência de julgamento, prejudicado ficando o conhecimento do recurso do Acórdão a final prolatado.
Sem custas dado que a decisão recorrida é alheia ao arguido que também não respondeu ao recurso.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 15 de Junho de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 268/2017 Pág. 20
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