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--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). ----------
--- Data: 20/6/2017 ----------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Dias Azedo -----------------------------------------------------------------------------

Processo nº 402/2017
(Autos de recurso penal)

(Decisão sumária – art. 407°, n.° 6, al. b) do C.P.P.M.)

Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se absolver o arguido A, com os sinais dos autos, da imputada prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 do C.P.M. e art. 93° e 94° da Lei n.° 3/2007, julgando-se também improcedente o pedido de indemnização civil enxertado nos autos; (cfr., fls. 334 a 340-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a assistente e demandante civil, B, recorreu.

Em síntese, diz que o Acórdão recorrido padece de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a condenação do arguido pelo imputado crime, assim como da demandada seguradora “COMPANHIA DE SEGUROS DA X (MACAU), S.A.”, (X保險(澳門)股份有限公司), a lhe pagar a quantia total de MOP$1.018.324,00; (cfr., fls. 351 a 359).

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Responderam o arguido, o Ministério Público e a demandada seguradora, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 368 a 389, 391 a 396 e 397 a 405).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Recorre a assistente B do acórdão de 17 de Janeiro de 2017, do 2.° Juízo Criminal, que absolveu o arguido A do crime de ofensa corporal negligente agravada de que estava acusado.
Imputa ao acórdão o vício de erro notório na apreciação da prova, no que é rebatida pelas contraminutas do Ministério Público, do arguido e da seguradora demandada civil.
Acompanhamos a resposta do Ministério Público em primeira instância, dada a pertinência da abordagem que faz às questões suscitadas no recurso.
Acrescentaremos apenas duas ou três achegas à forma como a recorrente tenta fazer vingar a sua perspectiva.
Ela traça a sua própria leitura da prova, mas fá-lo assumindo uma postura tão marcadamente parcial no desfecho do caso, que o pensamento lhe sai obnubilado, ao ponto de recorrer a distorções e conjecturas que nenhum suporte têm na prova produzida.
Não há dúvida de que a assistente começou a atravessar a rua acobertada pela cabine de uma camioneta estacionada, o que impedia a sua imediata visibilidade pelos condutores que circulavam no mesmo sentido em que se encontrava essa camioneta estacionada, incluindo o arguido. De acordo com os testemunhos colhidos e com a prova documental constituída pelas fotografias e pelo croquis junto ao processo, o atravessamento da rua pela assistente verificou-se vários metros antes da paragem de autocarros, que também é visível nas fotografias e está referenciada no croquis. Contra toda esta prova, pretende a assistente impor a sua versão de que estava a atravessar a rua na zona de paragem de autocarros, para daí concluir que o arguido, condutor de um autocarro que tinha que parar ali, a colheu com excesso de velocidade. Toda a prova produzida aponta para uma versão contrária à da recorrente, pelo que nenhuma razão lhe assiste neste argumento.
Depois, há que ter presente que, ao atravessar uma via destinada ao tráfego automóvel têm os peões que se certificar de que o fazem sem perigo, para si próprios e para o tráfego automóvel, como resulta do artigo 70.° da Lei do Trânsito Rodoviário. Ora, a alegação de que, apesar de ter olhado primeiro para a esquerda, conforme está habituada a proceder na China Continental, logo de seguida olhou para a direita na fracção de segundos imediata, não é argumento que possa favorecer a sua tese da culpabilidade do arguido. Se, na verdade, logo olhou para a direita, como diz, de duas uma: ou não viu o autocarro que circulava na via, pois de contrário não avançaria e teria evitado o embate, ou, quando olhou e o viu, já tinha avançado e invadido a trajectória do autocarro. Em qualquer dos casos, não procedeu com a diligência que lhe era exigível.
Pois bem, o erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015. Em bom rigor, nada disto vem posto em causa, limitando-se a recorrente a contrapor a sua própria e ostensivamente parcial visão da prova à legítima e livre apreciação da prova feita pelo tribunal, o que é manifestamente inepto para caracterizar o imputado erro notório.
Soçobra a argumentação da recorrente e improcede manifestamente o invocado erro notório na apreciação da prova, pelo que deve rejeitar-se o recurso ou negar-se-lhe provimento”; (cfr., fls. 482 a 483).

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Em sede de exame preliminar constatou-se da “manifesta improcedência” do presente recurso, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., (redacção dada pela Lei n.° 9/2013, aplicável aos presentes autos nos termos do seu art. 6°, n.° 1 e 2, al. 2), e tendo-se presente que a possibilidade de “rejeição do recurso por manifesta improcedência” destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, visando, também, moralizar o uso (abusivo) do recurso, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 336 a 337-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Insurge-se a assistente e demandante civil contra o decidido no Acórdão do Colectivo do T.J.B. que absolveu o arguido da imputada prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 do C.P.M. e art. 93° e 94° da Lei n.° 3/2007, assim como os demandados civis do pedido de indemnização que enxertou nos autos.

É de opinião que incorreu o Tribunal a quo no vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Porém, não se lhe pode reconhecer razão, sendo, dada a sua “manifesta improcedência”, de se rejeitar o recurso, muito não se mostrando necessário consignar, valendo-nos aqui das doutas considerações pelo Exmo. Representante do Ministério Público explanadas no seu douto Parecer que dão clara e cabal resposta ao recurso em questão e que aqui se dão como reproduzidas para todos os efeitos legais.

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

Como temos repetidamente entendido “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.02.2017, Proc. n.° 341/2016, de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016 e de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016, de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017 e 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017).

No caso dos autos, no que se mostra relevante, e agora está em causa, deu o Colectivo a quo como “provado” que:

“2) Quando chegou à via em frente ao Supermercado “Royal” na Avenida de Venceslau de Morais acima referida, a transeunte B (a vítima, identificada a fls. 45 ou 70 dos autos), não tendo prestado atenção à situação do trânsito, saiu da parte em frente ao camião estacionado à margem da via à esquerda, e atravessava a Avenida de Venceslau de Morais do lado esquerdo ao direito da direcção na qual o autocarro estava a ir. Então visto isto, o arguido travou imediatamente o autocarro. No entanto, o espelho retrovisor na parte frontal esquerda do “autocarro da Nova Era” (MP-XX-XX) que conduzia abalroou na mesma a fronte esquerda da peã B”.

Por sua vez, deu como “não provado” que:

“O arguido não conduziu com prudência, e não fez caso aos assuntos aos quais devia ter prestado atenção; não ajustou a velocidade segundo as características e a situação, a carga transportada, e as outras situações especiais da via e do veículo, de maneira que o autocarro pudesse travar no espaço em frente disponível e visível, e evitar qualquer obstáculo previsível nas situações normais.
O arguido não prestou atenção quando devia ter prestado atenção e podia ter prestado atenção; em consequência, o acidente em causa aconteceu e colidiu com a vítima. E provocou danos graves à integridade física da vítima de forma directa e necessária”.

Fundamentando esta sua “convicção” e “decisão”, consignou o Colectivo do T.J.B. o que segue:

“O arguido afirmou que, no dia em causa, conduzia o autocarro da linha 28B; quando estava a preparar-se para aproximar-se da paragem, de repente a vítima saiu da parte em frente ao camião estacionado à esquerda. Na altura o arguido já travou imediatamente; no entanto, o espelho retrovisor na parte frontal esquerda do autocarro abalroou na mesma a cabeça da vítima. Ele não sabia como é que o pé da vítima tinha ficado ferido, talvez a roda do autocarro tivesse passado por cima. A velocidade do autocarro, segundo afirmou o arguido, era de 20 a 30 km por hora. Além disso, o arguido afirmou que, se fosse proibido de conduzir, ficaria desempregado.
(Da parte de defesa) A testemunha C afirmou que na altura era passageiro no autocarro conduzido pelo arguido. Só sentiu que o arguido tinha travado de repente. A testemunha afirmou que a velocidade do autocarro conduzido pelo arguido estava normal, não estava muito depressa. E sentiu que na altura o arguido estava a preparar-se a aproximar-se da paragem.
A vítima (a requerente cível / a assistente) B afirmou que na altura acabava de sair do trabalho. Como não se sentiu fisicamente bem, tinha o plano de ir ao outro lado da via, apanhar um autocarro e voltar a casa. Vivia então no Interior da China, portanto precisava de atravessar a fronteira no posto fronteiriço das Portas do Cerco. A vítima afirmou que no Interior da China, estava habituada a olhar para o lado esquerdo; por isso, no dia do acontecimento do acidente, também olhou em primeiro lugar o lado esquerdo para ver se havia veículo vindo para ela. Depois de ir para a frente por mais um passo, foi imediatamente chocada pelo autocarro na cabeça. Mas não sabia que parte do autocarro lhe tinha dado o encontrão.
(Da parte da acusação e cível) A testemunha D afirmou que era colega da vítima. Na altura acabava de sair do trabalho. A testemunha não viu como é que a vítima foi chocada, nem prestou atenção à velocidade do autocarro. Quando se apercebeu, a vítima já tinha sido chocada. A testemunha afirmou que tinha visto com os olhos que, depois da colisão, o autocarro ainda avançou adiante por um pouco. A vítima vivia na altura em Zhuhai; só em Maio do ano seguinte é que a vítima voltou ao trabalho.
A testemunha, o agente policial n.° … relatou a situação da investigação no local. E afirmou que, dentro do âmbito de 50m no local, não havia qualquer instalação para os peões atravessarem a via. Não se deixou marca de pneus no local. Na altura o arguido afirmou que o espelho retrovisor na parte frontal esquerda do autocarro abalroou a vítima; mas no próprio autocarro não havia marcas óbvias de colisão.
O agente policial n.° … relatou a investigação na qual tinha participado numa fase mais tarde.
(Da parte cível) A testemunha E (o marido da vítima) contou sobre a situação do ferimento da vítima, a mudança da mobilidade dela, as suas reacções emocionais; e o facto de que, pela caída de dedos do pé da vítima, precisou de fazer a cirurgia de amputação.
(Da parte cível) A testemunha F (irmã da vítima) contou sobre a situação do ferimento da vítima, a mudança da mobilidade dela, as suas reacções emocionais.
(Da parte cível) A testemunha G (colega da vítima) contou sobre as reacções emocionais negativas da vítima depois de esta ficar ferida”; (cfr., fls. 337-v a 338).

Perante isto, não vemos como considerar que se incorreu em “erro”, muito menos “notório”.

Com efeito, a transcrita “fundamentação” apresenta-se lógica, dando perfeitamente a entender os “motivos da convicção do Tribunal”, e espelhando, de forma clara a sua decisão no sentido de ter considerado que o arguido conduzia o autocarro em aproximação de uma paragem, (portanto) junto da faixa da rodagem da esquerda, e que a ofendida, ora recorrente, introduziu-se na via por detrás de um camião, de forma súbita e olhando para o lado esquerdo, (o contrário), tendo sofrido o embate com o espelho retrovisor do lado esquerdo após 1 (só) passo, o que deixa transparecer que já se encontrava muito perto do autocarro conduzido pelo arguido quando se coloca na via, impossibilitando uma travagem a tempo de evitar o acidente.

Motivos não havendo para que a decisão recorrida não mereça a nossa (inteira) concordância, e verificando-se assim que mais não faz a ora recorrente que tentar controverter a matéria de facto, à vista está a solução.

Com efeito, o Colectivo a quo apreciou a prova produzida em total conformidade com o princípio da livre apreciação da prova, em respeito da lógica das coisas e regras de experiência, não tendo violado qualquer regra sobre o valor da prova tarifada ou legis artis, sendo, tanto quanto resulta da factualidade que deu como provada, a ora recorrente a “única e exclusiva culpada pelo acidente de viação dos autos”, e, inexistindo assim (qualquer) culpa – “negligência” – do arguido, correcta foi a decisão da sua absolvição em relação ao crime de “ofensa grave à integridade física por negligência” que lhe era imputado.

Por sua vez, inexistindo culpa do arguido, e atento o estatuído no art. 498° do C.C.M. – onde, em matéria de “exclusão da responsabilidade pelo risco” prevê que assim sucede quando o “acidente por imputável ao próprio lesado” – censura também não merece a decisão que julgou improcedente o pedido de indemnização civil pela recorrente enxertado nos autos.

Dest’arte, e tudo visto, resta decidir

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, decide-se rejeitar o recurso.

Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e pela rejeição, o equivalente a 3 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido A no montante de MOP$2.000,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 20 de Junho de 2017
José Maria Dias Azedo
Proc. 402/2017 Pág. 16

Proc. 402/2017 Pág. 15