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Processo nº 249/2017 Data: 15.06.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “difamação”.
Erro notório.



SUMÁRIO

1. O “erro notório na apreciação da prova” existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 249/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada pela prática como autora material e em concurso real de 2 crimes de “difamação”, p. e p. pelo art. 174°, n.° 1 e 177°, n.° 1, al. a) do C.P.M., nas penas parcelares de 4 meses e 1 mês e 15 dias de prisão, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e no pagamento da indemnização de MOP$30.000,00 à assistente C e de MOP$5.000,00 à assistente D; (cfr., fls. 1168 a 1192 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu para imputar à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição; (cfr., fls. 1200 a 1210-v).

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Responderam o Ministério Público e as assistentes, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 1219 a 1222 e 1227 a 1230).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Submetida a julgamento em processo comum perante tribunal singular, foi a ora recorrente B condenada, pela prática de dois crimes de difamação, na pena global de 5 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 4 meses e um mês e 15 dias de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo período de dois anos.
Interpõe recurso da sentença condenatória, imputando-lhe a utilização de prova nula, por violação de sigilo profissional de advogado, e erro notório na apreciação da prova, no que é rebatida pelas contraminutas do Ministério Público e das assistentes.
Temos por bem acompanhar a resposta do Ministério Público em primeira instância, dado o acerto com que aborda e desmonta a peça alegatória da recorrente.
Não se vislumbra, na verdade, qualquer violação de sigilo profissional, pelo que a prova sai incólume da aventada nulidade.
O que releva, em matéria de sigilo profissional do advogado, é a preservação dos segredos e informações confidenciais dos clientes. E a condição de cliente não advém a alguém pelo facto de distribuir, ou fazer distribuir, por vários escritórios de advogados, via internet ou outra, um “panfleto” manifestamente difamatório e injurioso de outrem, ainda que deixe subentendida a ideia de que irá precisar de um advogado. Não foi solicitado qualquer serviço, de qualquer advogado; não foi constituída, sugerida ou aventada qualquer relação de representação; não foi exposta ou esboçada seriamente qualquer situação concreta que carecesse de patrocínio; enfim, o que se nos depara é uma forma astuciosa de ofender a consideração de alguém, fazendo-o, também, num meio, o dos advogados, onde esse alguém é conhecido e considerado. De resto, idêntica divulgação foi dirigida a outros destinatários, que não advogados, nenhum sentido fazendo a invocada violação de sigilo profissional de advogado.
Não se verifica qualquer nulidade de prova, não se mostrando violada nenhuma das normas esgrimidas pela recorrente a esse propósito.
Debrucemo-nos agora brevemente sobre a problemática relativa à apreciação da prova.
A recorrente traça a sua própria leitura da prova, adoptando uma visão típica de quem tem interesse directo no desfecho do caso. Para isso, e à medida das suas conveniências, lida com uma apreciação estanque e espartilhada da prova, através da selecção cirúrgica de algumas passagens descontextualizadas de depoimentos, sem levar em conta as regras da lógica, globalidade e coerência que devem presidir à sua apreciação. Quem lesse a alegação da recorrente, sem atentar no conjunto das muitas provas produzidas, ficaria com a ideia de que apenas e só a recorrente fala a verdade, todos os outros mentem… assistentes, testemunhas, polícia…
O erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015. Em bom rigor, nada disto vem posto em causa, limitando-se a recorrente a contrapor a sua própria e ostensivamente parcial visão da prova à legítima e livre apreciação da prova feita pelo tribunal, o que é manifestamente inepto para caracterizar o imputado erro notório.
Soçobra a argumentação da recorrente e improcedem os vícios imputados à sentença recorrida, pelo que deve negar-se provimento ao recurso”; (cfr., fls. 1420 a 1421).

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Colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 1181 a 1186, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, vem a arguida recorrer da sentença que a condenou como autora da prática em concurso real de 2 crimes de “difamação”, p. e p. pelo art. 174°, n.° 1 e 177°, n.° 1, al. a) do C.P.M., nas penas parcelares de 4 meses e 1 mês e 15 dias de prisão, e, em cúmulo jurídico, a pena única de 5 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, e no pagamento da indemnização de MOP$30.000,00 e MOP$5.000,00 às assistentes dos autos.

Assaca à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição.

Porém, não tem razão, totalmente inviável sendo a sua pretensão, como – bem – se nota do douto Parecer que dá clara e cabal resposta as questões da recorrente, e que aqui se dá como reproduzido como solução a dar ao presente recurso.

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

De facto, e como temos repetidamente afirmado, “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.02.2017, Proc. n.° 341/2016, de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016 e de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016, de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017 e 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017).

No caso – e como bem se vê da extensa e cuidada fundamentação pelo Tribunal a quo exposta na sentença ora recorrida, (cfr., fls. 530-v a 532-v) – a apreciação da prova apresenta-se-nos equilibrada e sensata, explicitando-se, de forma clara e lógica, os motivos que levaram à convicção e decisão em questão, não se vislumbrando qualquer desrespeito a (qualquer) regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, mostrando-se de concluir que mais não faz a recorrente que afrontar a (livre) convicção do Tribunal, formada em conformidade com o estatuído no art. 114° do C.P.P.M., o que, como é óbvio, não colhe.

Entende a recorrente que o decidido não está em sintonia com alegadas “passagens”, (“excertos”) de depoimentos prestados em audiência.

Ora, em nada se mostra de alterar a solução que se deixou adiantada.

Como em sede de apreciação de idêntica questão já tivemos oportunidade de ponderar, importa não olvidar que os fundamentos pelos quais o Tribunal de julgamento (T.J.B.), confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem, sempre, de um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o Juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador (em primeira instância) os meios de apreciação da prova pessoal de que o Tribunal de recurso não dispõe.

Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias, insusceptíveis ou de difícil captação pelo Tribunal de recurso, constituindo indicadores importantes e eventualmente reveladores da sua postura processual, e assim, (possívelmente) reveladores de desconforto, predisposição para a efabulação, etc…

Como temos realçado repetidamente, ao Tribunal cabe determinar como os factos se passaram, exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações.

O convencimento da entidade a quem compete julgar, depende assim de uma conjugação de elementos tão diversos como (v.g.), a espontaneidade e rapidez das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção ou expressão exteriorizada, a extensão e consistência do depoimento assim como da “matéria seu objecto”, (factos recentes, pessoais, …), havendo, sempre, de se ter ainda em conta a sua compatibilidade com a demais prova relevante.

A circunstância de alguém, por erro ou propositadamente, produzir uma ou outra declaração desconforme com a realidade, não significa, necessariamente, que seja falsa toda a sua narrativa, não estando o Tribunal “obrigado” à inutilização de todo um depoimento por uma contradição com outros elementos probatórios. Desde que nessa parte o raciocínio seja compreensível, o Tribunal poderá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade porque consentâneo com outros elementos de prova, do que lhe surge como mera efabulação emocional ou, mesmo, como mero erro de percepção.

Por sua vez, há que ter presente que as declarações da ofendida, só por si, podem ser suficientes para criar nos julgadores a convicção de que determinados factos aconteceram e que deles foi o arguido seu autor; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Guimarães de 02.05.2016, Proc. n.° 92/15, in “www.dgsi.pt”).

Com efeito, mostra-se pois adequado o entendimento no sentido de que para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto, (os fundamentos da convicção), e, por outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão; (cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Coimbra de 09.03.2016, Proc. n.° 436/14).

Dest’arte, e em nossa apreciação, revela-se perfeitamente justificada a opção e decisão do T.J.B., apresentando-se esta clara e lógica, aliás, como bem se vê da fundamentação que deixou exposta, não se vislumbrando o imputado vício decisório por erro notório e ou ostensivo.

Por fim, uma nota.

Não se olvida que diz (ainda) a recorrente que o Tribunal se socorreu de uma “prova nula”, por alegada “violação ao segredo profissional”.

Ora, como é evidente, há manifesto equívoco.

Os documentos em questão não estão cobertos por qualquer tipo de “segredo profissional”, até porque nenhuma “relação”, (profissional ou outra), havia entre a pessoa que os emitiu, (a recorrente), e a que os recebeu, (e que é um dos mandatários da assistente).

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Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face do exposto, acordam negar provimento ao presente recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça de 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 15 de Junho de 2017

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 249/2017 Pág. 16

Proc. 249/2017 Pág. 17