Processo nº 343/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 22 de Junho de 2017
ASSUNTO:
- Recusa do registo
- Artº 60º do CRP
SUMÁRIO:
- O artº 60º do CRP confere simplesmente ao conservador do registo o poder de controlo formal e não substancial nos casos da recusa do registo nele previstos.
- Assim, ao recusar o pedido do registo com fundamento na falta da prova da verificação da condição suspensiva da cessão da posição contratual, o conservador excedeu os seus poderes de controlo formal legalmente conferidos.
O Relator
Processo nº 343/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 22 de Junho de 2017
Recorrente: Banco A, Limitada
Recorrida: Conservatória do Registo Predial
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 10/11/2016, julgou-se improcedente o recurso judicial interposto pela Recorrente Banco A, Limitada.
Dessa decisão vem recorrer a Recorrente, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. A cláusula 13ª do Contrato Tripartido foi estabelecida pelas partes para que o Banco pudesse accionar o mecanismo de cessão da posição contratual, a fim de solver a dívida do promitente-comprador.
B. Nos termos do disposto no artigo 399°, nº 1 do Código Civil, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir neste as cláusulas que lhes aprouver.
C. Subscrevendo-se o douto entendimento do Tribunal a quo, a cessão da posição contratual a favor do Banco, no quadro da convenção estabelecida no contrato tripartido, fica praticamente reduzida a inutilidade prática, porquanto a sua eficácia dependeria de decisão judicial sobre a verificação da condição.
D. As causas de recusa do registo são taxativas e estão previstas no artigo 60º do CRP, significando isto que só excepcionalmente o registo deve ser recusado. In casu, não está preenchido nenhum dos requisitos de recusa aí previstos.
E. A Exma. Sra. Conservadora recusou o registo com base na al. a) do artigo 60º do CRP.
F. Ora, o Contrato Tripartido (documento que já havia sido apresentado na Conservaória e que serviu de base a registo anterior) e o contrato apresentado celebrado com a promitente-vendedora titulam em conjunto a cessão da posição contratual a favor do Recorrente.
G. Não havendo motivos de recusa para o registo deveria o mesmo ter sido efectuado com carácter definitivo ou quanto muito, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, lavrado como provisório por dúvidas.
H. O incumprimento ou não da relação de mútuo por parte do cedente é matéria que, apenas, poderá ser discutida em juízo, e nesse caso sempre responderá o Banco pelas respecti vas consequências jurídicas, sem prejuízo do cancelamento do registo de transmissão do direito de aquisição do imóvel - neste sentido víde a douta sentença do Tribunal Judicial de Base proferida no processo nº CV2-16-0055-CRJ.
I. Em último caso, e antes da recusa sempre deveria a Exma. Sra Conservadora ter avisado o Banco para, se quizesse, suprir as deficiências que no seu entender existiam, de acordo com o artigo 64º, nº 2 do CRP - víde neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no Processo n.º 593/09.7TBAVR.C1 em 03/02/2010.
J. Pelo que violou a douta sentença o disposto nos artigos 399° e 400° do Código Civil bem como os artigos 59°, 60° e 64º do CRP.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1) Está registada na Conservatória do Registo Predial (CRP), com a natureza de inscrição provisória por natureza (artigo 10.° n.º 3 da Lei no. 7/2013), sob o número XXXX39G, a aquisição de um imóvel titulado por escrito particular de contrato-promessa de compra e venda, sendo o sujeito activo B, divorciado.
2) O imóvel em causa é uma fracção autónoma designada por “D-10”, do 10.° andar D, para habitação do prédio descrito sob o nº. XXX69-II (s/n Aterro XX e s/n Estrada de XX), sendo proprietária e promitente vendedora a C, S.A.
3) Está também registada na mesma Conservatória, a hipoteca do referido imóvel a favor do ora recorrente, mediante a inscrição provisória por natureza (artigo 10.° n.º 6 da Lei no. 7/2013) sob o no. XXXX80C, para garantia de reembolso de um empréstimo de HKD7.250.000,00 (Sete milhões, duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong).
4) O título que serviu de base para a inscrição da hipoteca é um escrito particular de promessa de oneração, entre o comprador, o vendedor e o banco, vulgarmente designado por Contrato Tripartido, datado de 04 de Novembro de 2014.
5) Consta da cláusula 13.ª do Contrato Tripartido que: “Enquanto a escritura de hipoteca não for outorgada, assiste à parte C (o Banco) o direito de ocupar a posição contratual da Parte B de promitente compradora do imóvel.
13.1. Para efectivação deste direito, basta à Parte C notificar, por simples escrito, a Parte A de que pretende ocupar a posição contratual de promitente comprador e invocar, sem necessidade de demonstração em virtude do sigilo bancário, o incumprimento da obrigação de pagamento pela Parte B.
13.2 A Parte A não pode recusar, sob qualquer fundamento ou pretexto, a efectivação do direito da Parte C à cessão da posição contratual, não podendo exigir cobrança de comissão ou remuneração de qualquer natureza ou ainda alegar a falta de pagamento do condomínio pela Parte B.
13.3 Para a cessão da posição contratual bastará a assinatura do respectivo contrato entre a Parte A e a Parte C, declarando desde já a Parte B, através deste contrato, a sua concordância com a referida cessão.
13.4 A Parte C retransmitirá livremente a posição contratual de promitente-comprador a terceiro pelo preço que melhor entender, obrigando-se a entregar à Parte B o saldo depois de deduzido o montante da dívida e demais despesas incorridas para efeitos de cobrança do crédito e retransmissão atrás referida. Na eventualidade do preço de transmissão obtido pela Parte C não ser suficiente para o pagamento do crédito devido, deverá a Parte B pagar a diferença, quer a título de capital quer como juros, nos termos e condições acordados neste contrato.”.
6) O pedido de transmissão do direito de aquisição requerido pelo Banco A foi recusado pela Exmª Conservadora.
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III – Fundamentação
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“...
Dos factos dados como assentes, verifica-se que estamos perante um caso de cessão posição contratual da fracção autónoma “D-10”, melhor identificado nos autos, em que é cedente, o compromitente-comprador, e cessionário, o mutuante, do contrato tripartido (em que intervieram o compromitente vendedor, o compromitente comprador/ mutuário e o mutuante).
O recorrente alega nas suas alegações de recurso que tem interesse legítimo de ocupar a posição contratual de promitente comprador do imóvel acima identificado, a fim de poder mais rapidamente obter a liquidação do seu crédito com a revenda do bem em causa, alegando em suma que está perante um caso de dação pro solvendo.
Mas essa tal cessão de posição contratual está condicionada a um facto futuro e incerto: o incumprimento por parte do compromitente-cornprador do contrato de mútuo em que é credor hipotecário o ora recorrente.
O Código do Registo Predial no disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 2.° estipula que estão sujeitos a registo...... a promessa de alienação ou oneração .... bem como a cessão contratual emergente destes factos, se lhes tiver sido atribuída eficácia real.
Por seu turno, a Lei n.º 7/2013 que consagra o Regime jurídico da promessa de transmissão de edificios em construção dispõe que no artigo 10.º n.º 5 que as cessões de posição contratual subsequentes são registadas com base no respectivo contrato de cessão da posição contratual, mediante novo averbamento.
Como se vê, a lei prevê a sujeição ao registo das cessões de posição contratual de transmissões de edifício em construção.
Na qualificação do pedido de registo, o conservador está sujeito ao princípio da legalidade (artigo 59.º do CRP), competindo-lhe apreciar a viabilidade do pedido de registo em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos dispositivos nele contidos.
Como se vê, para efeitos da feitura do registo, cabe ao conservador verificar a existência do título bem como a validade dos actos dispositivos nele contidos.
In casu, o que levou a Exma Conservadora recusar o pedido de registo consiste em, no seu entender, a invocada cessão de posição contratual não se afigura como provada, mediante um alegado incumprimento unilateral invocado pelo Banco. Ou seja, a Exma Conservadora recusou o pedido de registo, porque se entende que a verificação da condição suspensiva não se encontra comprovada, não munindo o título bastante para a feitura do registo.
Quid juris?
É o próprio recorrente que nas suas doutas alegações de recurso vem referir que a cessão de posição contratual em causa e para efeitos de registo está condicionada a um facto futuro e incerto: o incumprimento da obrigação de reembolso do capital mutuado ao recorrente (cfr. n.º 5 das conclusões a fls. 10).
Efectivamente, fazendo uma interpretação global de todo o disposto na cláusula 13.ª, é exactamente a verificação desse facto futuro e incerto que condiciona a cessão da posição contratual.
Em termos jurídicos, fala-se em condição. Pois se trata de um facto essencial para que uma vez verificada faz iniciar a produção de efeitos do negócio jurídico (in casu a cessão posição contratual). Ora, se é esse facto que condiciona a eficácia da cessão posição contratual, parece-nos que, nos termos gerais do ónus de prova, cabe ao interessado demonstrá-lo.
Dos elementos carreados nos autos, apenas se verifica a invocação (unilateral) da tal condição pela recorrente, mas sem a sua comprovação. Ora, se nos termos acima expostos, concluímos que cabe ao conservador, na feitura do registo, verificar a existência do título e a validade dos actos dispositivos nele contidos, e por outro lado, constituindo a tal mencionada condição como condição sine qua non para a produção dos efeitos da alegada cessão da posição contratual, não tendo o recorrente comprovado a verificação da tal condição (alegar uma coisa não é o mesmo que comprovar a tal coisa), parece-nos nenhuma censura poderá assacar à recusa da Exma Conservadora.
Por outro lado, a decisão da recusa do registo dada pela Exma Conservadora, não teve por base a desconsideração do documento particular em causa, nem está a pôr em causa a liberdade contratual e a eficácia dos contratos, foi pura e simplesmente com base na não comprovação da verificação da tal condição, pelo que se não verifica a assacada violação do disposto no artigo 367.°, 369.°, 370.° e 399.°, todos do Código Civil.
Mais entende o recorrente que o mecanismo implantado com a cláusula contratual 13.ª, se enquadra na dação pro solvendo.
A dação pro solvendo é uma dação em cumprimento condicional, nele há uma efectiva substituição da prestação no cumprimento, mas a extinção da obrigação só opera caso o credor realize o valor correspondente ao montante da prestação a que tinha direito.
Só que tanto a Lei n.º 7/2013 que regula o Regime Jurídico da Promessa de Transmissão de Edifícios em Construção como o CRP também se não prevêem a sujeição ao registo para os casos de dação pro solvendo.
Mesmo que, tal como alegado pelo recorrente, o mecanismo implantado na clausula contratual 13.ª é o de dação pro solvendo, a lei também não prevê que o tal facto seja sujeito a registo.
Face o exposto, e não havendo censurabilidade sobre a decisão recorrida, o presente recurso deve ser julgado improcedente.
V - Decisão
Nestes termos e nos demais de direito, deve julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Registe e notifique. ”.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar a posição do Tribunal a quo.
Em primeiro lugar, não está em causa o registo da dação pro solvendo, mas sim a própria cessão da posição contratual do contrato promessa de compra e venda, que é um facto sujeito ao registo ao abrigo do disposto do nº 5 do artº 10º da Lei nº 7/2013, nos termos do qual “As cessões de posição contratual subsequentes são registadas com base no respectivo contrato de cessão da posição contratual, mediante novo averbamento”.
Em segundo lugar, dispõe o artº 60º do Código do Registo Predial (CRP) que:
“1. O registo deve ser recusado nos seguintes casos:
a) Quando for manifesto que o documento apresentado não titula qualquer facto sujeito a registo predial ou titula facto já registado;
b) Quando for minifesta a nulidade do facto;
c) Quando o registo já tiver sido lavrado como provisório por dúvidas e estas não se mostrem removidas.
2. Não pode ser recusado o registo que seja titulado por decisão judicial transitada em julgado e que tenha sido notificada ao Ministério Público, salvo se dele resultar manifesta desarmonia com a situação jurídica do prédio resultante de registos anteriores.
3. Fora dos casos previstos nos números anteriores, o registo só pode ser recusado se, por falta de elementos ou pela natureza do acto, não puder ser feito como provisório por dúvidas.
4. A recusa é mencionada com referência ao número e data da apresentação, sob o número de ordem correspondente ao registo e com indicação sumária do acto recusado.”
Como se vê, o legislador utilizou várias vezes a palavra “manifesta” para os seguintes casos de recusa do registo:
a) o documento apresentado não titula o facto sujeito ao registo ou titula o facto já registado;
b) nulidade do facto; e
c) desarmonia com a situação jurídica do prédio resultante de registos anteriores.
A intenção legislativa é clara no sentido de conferir simplesmente ao conservador do registo o poder de controlo formal e não substancial naqueles casos da recusa do registo.
Por exemplo, o conservador do registo não pode, perante uma escritura pública de compra e venda de imóvel, questionar se existir vício da declaração da vontade das partes susceptível de determinar a nulidade do negócio, se tal não resulta de forma manifesta nos documentos apresentados.
Por outro lado, ainda que não se verifique a condição suspensiva da cessão da posição contratual, tal não determina a invalidade do negócio, mas sim apenas a ineficácia do mesmo.
Repare-se, o legislador não prevê que os vícios da anulabilidade constituem como causas de recusa oficiosa do registo.
É fácil de compreender esta opção legislativa, pois, segundo o regime jurídico geral da anulabilidade previsto no artº. 280º do C.C., a anulabilidade só se opera perante a arguição em tempo da parte interessada.
Ora, se o conservador não poder recusar o registo com fundamento na existência do vício de anulabilidade, muito menos poder fazer nos casos de ineficácia do negócio, já que neste último, o negócio é válido só que não se produz efeitos entre as partes.
Portanto, no caso em apreço, ao recusar o pedido do registo do Banco requerente com fundamento na falta da prova da verificação da condição suspensiva da cessão da posição contratual, o conservador excedeu os seus poderes de controlo formal legalmente conferidos.
Afastada a questão da eventual não verificação da condição suspensiva da cessão da posição contratual, afigura-se que os documentos apresentados pelo Banco requerente titulam o facto sujeito ao registo, isto é, demonstram que a posição contratual de promitente-comprador foi transmitida para o Banco requerente nos termos acordados.
Face ao exposto e sem necessidade de mais delongas, o recurso não deixará de se julgar provido.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida e determinando o registo da cessão da posição contratual pelo Banco A, Limitada, caso não existir outras causas impeditivas que a tal obstem.
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Sem custas.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 22 de Junho de 2017.
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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