打印全文
Proc. nº 516/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Junho de 2017
Descritores:
-Acção de impugnação de paternidade
-Acção declarativa de simples apreciação negativa

SUMÁRIO:

I. Numa impugnação de paternidade o autor intenta provar que, de acordo com as circunstâncias, “a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável” (art. 1697º, nº2, do CC). Ou seja, quem quer que seja o autor, o que ele procura demonstrar é que, num determinado casamento, o filho nascido na sua constância não tem como pai o marido da mãe. Portanto, parte-se de uma realidade pressuposta que é a existência efectiva, e não controvertida, de uma relação conjugal.

II. Não é de impugnação de paternidade a acção declarativa de simples apreciação negativa em que a autora – casada que foi com um indivíduo já falecido - invoca na causa de pedir factos que procuram demonstrar que o casamento entre a ré e o falecido não existiu na RPC.

III. E não é de impugnação, mesmo que, na sequência da procedência do primeiro pedido principal – declaração de inexistência daquele casamento – a mesma autora tenha também pedido que se mande cancelar o registo na Conservatória do Registo Civil de Macau das 2ª e 3ª rés como filhas do falecido.















Proc. Nº 516/2016

Acordam no tribunal de segunda instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, do sexo feminino, nacionalidade chinesa, portadora do BIRHK n.º RXXXXX0(A), emitido pelo governo da RAEHK, residente em Hong Kong, XX, Edifício “XX”, bloco XX, XX (doravante designada simplesmente por “autora”), instaurou no TJB (Proc. nº FM1-15-0030-CAO) acção declarativa de simples apreciação negativa com processo comum contra:
1. B, do sexo feminino, maior, portadora do bilhete de identidade de residente não permanente da RAEM n.º 1XXXXX7(7) e do bilhete de identidade da RPC n.º 6XXXXX2543, residente em Macau, Taipa, na Rua de XX Edifício XX, bloco XX, XXº andar XX (doravante designada por “1ª autora”);
2. C, do sexo feminino, solteira, menor, com registo de nascimento n.º 16XX/20XX/RC na Conservatória do Registo Civil de Macau, desconhecidas outras informações da sua identidade, residente em Macau, Taipa, na Rua de XX Edifício XX, bloco XX, XXº andar XX (doravante designada por “2ª autora”, representada na presente acção pela sua mãe ou seja B);
3. D, do sexo feminino, solteira, menor, com registo de nascimento n.º XX5/20XX/RC na Conservatória do Registo Civil de Macau, desconhecidas outras informações da sua identidade, residente em Macau, Taipa, na Rua de XX Edifício XX, bloco XX, XXº andar XX (doravante designada por “3ª autora”, representada na presente acção pela sua mãe ou seja B).
Na petição pediu que:
1. A acção fosse julgada procedente, com fundamento na circunstância de os conteúdos da escritura pública de casamento e do certificado de casamento apresentados à Conservatória do Registo Civil de Macau pela 1ª ré sucessivamente em 14 de Julho de 2004 e 31 de Janeiro de 2007, não corresponderem à verdade, pelo que, deve ser declarado que E não se casou com a 1ª ré;
2. Fosse cancelado o registo de E como pai das 2a e 3a rés constante dos assentos de nascimento das mesmas (n.ºs 1675/2004/RC e 405/2007/RC) emitidos pela Conservatória do Registo Civil de Macau, nos termos do art.º 3.º, n.º2 do Código do Registo Civil, conjugado com o art.º 70.º do mesmo código (Por E não se ter casado com a 1ª ré, a presunção da paternidade prevista no art.º 1685.º, n.º 1 do Código Civil não é aplicável ao registo de nascimento das 2ª e 3ª rés);
3. Nos termos do art.º 455.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, seja ordenado à 1ª ré que apresente a V. Ex.ª a “escritura pública de casamento” n.º 681, da série de “F (2004) emitida em 24 de Março de 2004 pelo Cartório Notarial do G, Cidade de Guangzhou e o “certificado de casamento” n.º 0098, da série de “XX” emitido em 18 de Setembro de 1998 pelo governo popular da Cidade de XX, que tinham sido exibidos e apresentados à Conservatória do Registo Civil de Macau em 14 de Julho de 2004 e 31 de Janeiro de 2007 pela 1ª ré, a fim de ser feito o exame pericial sobre os dois documentos, para efeitos de confirmação de sua veracidade.
*
Após a contestação de B, 1ª ré, por si e em representação das 2ª e 3ª rés, foi lavrado despacho judicial que rejeitou a petição inicial, “devido a ineptidão de ilegitimidade passiva”.
*
Contra esse despacho foi interposto recurso jurisdicional por A, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem como objecto o despacho constante de fls. 338 e verso dos autos, que rejeitou a petição inicial.
2. Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com o entendimento do despacho, uma vez que, a recorrente considera que deve o despacho recorrido ser revogado por ter erradamente aplicado a lei.
3. O despacho recorrido rejeitou a petição deduzida pela autora/recorrente invocando a falta de legitimidade passiva na acção. Contudo, ao considerar se existe ou não a falta de legitimidade passiva, deve fazer-se a partir da forma do processo a utilizar pela autora, mas não a partir do ponto de vista do Tribunal a quo.
4. Tendo em consideração que a acção intentada pela autora/recorrente é de “simples apreciação negativa”, pelo que, deve o despacho recorrido considerar a legitimidade passiva a partir do ponto de vista de “simples apreciação negativa”, tendo, contudo, o despacho recorrido considerá-la a partir de acção de “impugnação da paternidade”, invocando isso corno fundamento para rejeitar a petição deduzida pela autora/recorrente. Evidentemente, o despacho recorrido errou na interpretação do disposto nos art.ºs 230.º, n.º 1, al. d), 414.º e 413.º, al. e) do Código de Processo Civil, quanto à ilegitimidade.
5. Além do mais, nos termos dos art.ºs 6.º, 230.º, n.º 3, primeira parte e 427.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, quando verifique a existência da falta de pressupostos processuais, deve o tribunal recorrido providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, convidando as partes a praticar certos actos necessários para o suprimento. A decisão de rejeição da petição inicial só pode ter lugar, quando o suprimento da falta seja impossível ou as partes convidadas não procedam ao suprimento por sua iniciativa.
6. É de salientar que, nos termos do disposto no art.º 6.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, deve o juiz providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais: “A preocupação da lei com a realização da função processual mediante a pronúncia de decisão de mérito, leva a estabelecer o deve do juiz de providenciar pela sanção da falta de pressupostos processuais (...) que seja sanável (...) ” (o sublinhado e o negrito são nossos) (quanto ao seu pormenor, vd. «Código de Processo Civil Anotado», volume II, fls. 377, de José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto)
7. Nos termos do art.º 6.º, n.º 2, primeira parte do Código de Processo Civil, a eventual falta de pressuposto processual existente na presente acção não é insanável, assim o Tribunal Recorrido deve, em primeiro lugar, nos termos dos art.ºs 6.º, n.º 2, 230.º, n.º 3, primeira parte e 427.º, n.º 1, al. a) do supracitado Código de Processo Civil, convidar a autora/recorrente para induzir as rés quem devem intervir na acção mas não intervêm nela para intervir na acção em causa. Caso a autora/recorrente não proceda ao acto de suprimento (induzir a intervenção), pode então o Tribunal Recorrido rejeitar a petição inicial, nos termos das supracitadas disposições legais.
8. Tendo, contudo, o Tribunal Recorrido, directamente proferido a decisão de rejeição da petição sem que tivesse convidado a autora para induzir a intervenção no sentido de suprir a eventual falta de pressuposto processual, pelo que, evidentemente, o despacho recorrido violou os art.ºs 6.º, n.º 2, 230.º, n.º 3, primeira parte e 427.º, n.º l, al. a) do supracitado Código de Processo Civil, devendo ser revogado nos termos da lei.
9. Finalmente é de salientar que a recorrente considera que não é correcto o entendimento do despacho recorrido “por qualquer razão que seja ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade” nos termos do art.º 1697.º do Código Civil de Macau”, uma vez que o despacho recorrido erradamente interpretou as disposições quanto à “acção de impugnação da paternidade”.
10. De facto, nos termos do art.º 1685.º, n.º 1 do Código Civil, “Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe. (o sublinhado e o negrito são nossos), mas o Código Civil dispõe no art.º 1697.º, n.º 2 que, quanto ao ónus da prova na acção de impugnação da paternidade, “Na acção o autor deve provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável.”
11. Mas a presunção de respectiva filiação e a acção de impugnação de paternidade só devem limitar-se à existência efectivada relação conjugal.
12. O presente caso é diferente da “acção de impugnação da paternidade” prevista no art.º 1697.º e seguinte do Código Civil, uma vez que na acção de impugnação da paternidade, o que está em causa é o marido da mãe que não é o verdadeiro pai do filho (está em discussão o facto presumido). Mas na presente o que a autora/recorrente impugna é o “chamado pai” que, na realidade, não é o marido da mãe, estando em discussão agora o facto que serve de base à presunção ou base de presunção.
13. Em suma, na acção de impugnação da paternidade, o que se pretende refutar é o “facto presumido”, mas na presente acção o que a autora/recorrente pretende refutar é o “facto que serve de base à presunção ou base de presunção”. Uma vez que na presente acção o que a autora/recorrente pretende refutar não é o “facto presumido” mais sim o “facto que serve de base de presunção”, ao presente caso não é aplicável a “acção da impugnação da paternidade”.
14.Quanto à relação existente entre a “acção de impugnação da paternidade” e a “presunção da paternidade”, podemos consultar o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o processo n.º XXXX87: “A acção de impugnação de paternidade pressupõe que a presunção de paternidade do marido da mãe existia e operou legitimamente” (o sublinhado e o negrito são nossos), mas na presente acção o que está em causa é justamente que tal presunção não deve operar legitimamente, pelo que a “acção de impugnação da paternidade não é a forma de acção que se deve adoptar na presente acção.
15. É incompreensível o entendimento do despacho recorrido “por qualquer razão que seja ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade” nos termos do art.º 1697.º do Código Civil de Macau”, uma vez que tal entendimento pode causar inversão do ónus da prova. É de saber que, nos termos do art.º 1657.º, n.2 do Código Civil, “a paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento.”. Mas nos termos do art.º 343.º, n.º 2 do Código Civil, o presumido pai só pode ilidir, mediante prova em contrário, a presunção da filiação prevista no art.º 1685.º, n.º 1 do mesmo código.
16. Segundo o entendimento do despacho recorrido, se uma mãe, através do certificado de casamento falsificado, conseguir enganar o pessoal da Conservatória do Registo Civil que presumisse a existência de filiação, então essa mãe já não precisa de confirmar a eventual existência da relação de filiação entre o pai e o filho, mediante a “acção de confirmação da paternidade”. Ao contrário, o presumido pai deve, nos termos do art.º 1697.º do Código Civil, intentar “acção de impugnação da paternidade”, bem como provar na acção que ele próprio não é pai do filho, de modo a refutar tal filiação presumida, cabendo ao presumido pai o ónus da prova.
17. Tudo acima exposto mostra que é incompreensível o entendimento do despacho recorrido, pelo que deve o despacho recorrido ser revogado por ter erradamente aplicado a lei.
Pelo acima exposto, vem pedir aos meritíssimos juízes do Tribunal de Segunda Instância que julguem procedente o presente recurso, revogando o despacho recorrido.”
*
A 1ª ré respondeu ao recurso, cujas alegações sintetizou pela forma seguinte:
“1. Embora a recorrente tenha intentado a “acção de simples apreciação negativa”, a forma de processo não restringe a apreciação dos autos por parte de juiz.
2. Tal como indicado no art.º 394.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, “Se a forma de processo escolhida pelo autor não corresponder à natureza ou ao valor da acção, manda-se seguir a forma adequada; mas quando não possa ser utilizada para essa forma, a petição é indeferida.” Segundo a supracitada disposição legal, pode-se verificar que, evidentemente a lei atribui poderes ao juiz para tomar decisão sobre a forma de processo do caso. Quando o juiz considere que a forma de processo não corresponde à acção, pode mandar a utilização de forma adequada de processo.
3. Mas se se considera se existe ou não a falta de pressuposto processual na acção, a partir da forma de processo utilizada tal como alegada pela recorrente, então não é aplicável o disposto no art.º 394.º, n. 3 do Código de Processo Civil, também fica restrita a jurisdição do juiz sobre o caso.
4. Pelo que, a decisão do despacho recorrido (que considera se existe ou não a falta de pressuposto processual na acção, a partir do seu ponto de vista de qual a forma de processo deve ser utilizada) não violou o disposto nos art.ºs 230.º, n.º 1, al. d), 414.º e 413.º. al. e), quanto à legitimidade.
5. Considera a recorrente que “nos termos dos art.ºs 6.º, 230.º, n.º 3, primeira parte e 427.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, quando verifique a existência da falta de pressupostos processuais, deve o tribunal recorrido providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, convidando as partes a praticar certos actos necessários para o suprimento. A decisão de rejeição da petição inicial só pode ter lugar, quando o suprimento da falta seja impossível ou as partes convidadas não procedam ao suprimento por sua iniciativa.
6. Nos termos do art.º 427.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 6.º.
7. As três rés consideram que a supracitada disposição legal atribui ao juiz o poder discricionário para determinar se é necessário providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 6.º.
8. Pelo que, as três rés consideram que não é inadequada nem viola a lei a decisão de rejeição da petição inicial tomada pelo Tribunal, após o meritíssimo juiz do TJB ter ponderado a circunstância do caso, nos termos dos art.ºs 230.º, n.º 1, al. d), 414.º, 413.º, al. e) do Código de Processo Civil, devido à ineptidão de legitimidade passiva.
9. De facto, esta questão tem conexão com a primeira questão, tendo o meritíssimo juiz rejeitado liminarmente o pedido da recorrente com fundamento na falta de legitimidade, mas o mais importante é que a forma de processo utilizado pela recorrente é insanável, uma vez que o pedido do presente caso tem como causa de pedir o facto que se deve apreciar em acção independente (acção de impugnação da paternidade e acção de declaração de nulidade do casamento)
10.O despacho recorrido não viola o disposto nos art.ºs 6.º, n.º 2, 230.º, n.º 3, primeira parte e 427.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, devendo ser rejeitado.
11. Caso assim não se entenda, a acção intentada pela recorrente é evidentemente inviável e não procede, devendo ser rejeitada liminarmente.
12. As três rés, na contestação, já indicaram de forma minuciosa a razão pela qual a respectiva acção é evidentemente inviável e não procede, quanto a isso, vd. os art.ºs 6.º a 80.º da contestação (cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido).
13. Na realidade, a acção é evidentemente inviável e não procede, razão pela qual deve ser rejeitada liminarmente, tal como foi indicada pela recorrida na contestação: “É evidentemente inviável o que a recorrente utilizou como causa de pedir a declaração de existência do casamento de tal modo a atingir a impugnação de identidade e de filiação”, sendo isso uma das ineptidões e pelo que é incensurável a decisão de rejeição liminar da acção.
14. Assim, caso V. Ex.as considerem que todas as razões acima indicadas não são suficientes para rejeitar a petição inicial (é apenas uma suposição), pede-se a V. Ex.as que se dignem julgar improcedente o recurso por outras razões mantendo a decisão recorrida.
15. As relações jurídicas em causa devem ser resolvidas através da acção de impugnação da paternidade.
16. Na petição inicial e no recurso, a recorrente considera que o que está em causa é o “chamado pai” que, na realidade, não é o marido da mãe, estando em discussão o facto que serve de base à presunção.
17. Consideram as rés que, a relação jurídica ora impugnada reside em que se as 2ª e 3ª rés são filhas de E.
18. O Código Civil dispõe expressamente no art.º 1697.º que se deve intentar a acção de impugnação da paternidade, quanto à impugnação da paternidade.
19. Segundo a petição inicial da recorrente, tendo a mesma exigido que fosse declarado que entre E e a 1ª ré não se contraiu o casamento e que consequentemente fossem cancelados os registos de nascimento das 2ª e 3ª rés existentes na Conservatória do Registo Civil de Macau onde consta E como pai delas.
20. Evidentemente, tal como foi indicado pelo despacho recorrido, a recorrente visa ilidir a filiação estabelecida com base na presunção da paternidade.
21. Nos termos do art.º 1697.º do Código Civil, quanto à impugnação da paternidade, deve ser intentada a acção de impugnação da paternidade, perante a situação em que a recorrente pretende ilidir a filiação entre E e as 2ª e 3ª rés, tem que intentar a respectiva acção.
22. Por outro lado, a recorrente alega que a propositura da acção de impugnação da paternidade nos termos do art.º 1697.º do Código Civil pode causar inversão do ónus da prova, bem como o presumido pai só pode ilidir a filiação, mediante prova em contrário.
23. Mas as rés entendem que é razoável que cabe à recorrente o ónus da prova, uma vez que, nos termos do art.º 335.º do Código Civil, “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”. Como a recorrente questiona a filiação entre E e as 2a e 3a rés, certamente cabe a ela fazer a prova.
24. As três rés não estão de acordo com o entendimento da recorrente na petição do recurso: “É incompreensível o entendimento do despacho recorrido “por qualquer razão que seja ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade” nos termos do art.º 1697.º do Código Civil de Macau, uma vez que tal entendimento pode causar inversão do ónus da prova”. É de saber que, nos termos do art.º 1657.º, n.2 do Código Civil, “a paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento.”. Mas nos termos do art.º 343.º, n.02 do Código Civil, o presumido pai só pode ilidir, mediante prova em contrário, a presunção da filiação prevista no art.º 1685.º, n.º 1 do mesmo código. Tal como acima foi indicado, presume-se a existência da filiação, mas caso se pretenda impugnar a filiação, cabe à pessoa quem pretende a impugnação fazer a prova, sendo isso razoável.
25. A inversão do ónus da prova e a refutação da filiação mediante prova em contrário não levam a que possa a recorrente, a fim de evitar a acção de impugnação da paternidade, adoptar outra acção para refutar a filiação entre E e as 2a e 3a rés.
26. Pelo acima exposto, o que o despacho recorrido rejeitou a acção da recorrente com fundamento na ineptidão da legitimidade não viola a lei, assim, pede-se aos meritíssimos juízes do Tribunal de Segunda Instância que julguem improcedente a motivação da recorrente, rejeitando o seu recurso.
III. PEDIDO
Pelo acima exposto, pede-se aos meritíssimos juízes do Tribunal de Segunda Instância que julguem improcedente a motivação da recorrente rejeitando o seu recurso; ou,
Julguem improcedente a motivação do recurso com outros fundamentos diferentes, mantendo a decisão recorrida.
Pede Justiça!”
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
O despacho em crise apresenta o seguinte teor (cfr. fls. 338 dos autos):
“No presente caso, embora a autora A tenha indicado que a acção em causa tem como objectivo ilidir o facto base da presunção de paternidade, ou seja entre o falecido E e a 1ª ré B não existe relação matrimonial, depois de feita uma análise da causa e do pedido apresentado pela autora na petição inicial, tudo mostra que a autora vem pedir que seja decretado que entre E e a 1º ré nunca se contraiu o casamento, de tal modo a ilidir a filiação estabelecido entre as rés menores e E com base na presunção de paternidade, bem como cancelar os registos de nascimento onde consta E como pai.
Nos termos do art.º 1685.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe.
Nos termos do art.º 1697.º, n. 1 do mesmo código, se a paternidade presumida nos termos do art.º 1685.º não for a verdadeira, pode ser impugnada em juízo.
Daí resulta que a acção em causa visa ilidir a relação matrimonial, de tal modo a ilidir a filiação estabelecida com base na presunção da paternidade, sendo assim, por qualquer razão que seja ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade” nos termos do art.º 1697.º do Código Civil de Macau.
Com base nisso, quanto à legitimidade passiva, nos termos do art.º 1700.º do Código Civil de Macau, conjugado com o art.º 1666.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do mesmo código, deve o autor intentar acção contra a mãe, o filho e o presumido pai constantes do registo de nascimento e no caso de morte do presumido pai, devem ser demandados os descendentes, assim no presente caso, as descendentes do falecido E também devem ser rés, mas segundo a petição inicial, a autora não intentou acção contra elas.
Pelo que, nos termos dos art.ºs 230.º, n.º 1, al. d), 414.º, 413.º al. e) do Código de Processo Civil, este Juízo rejeita a petição deduzida pela autora, devido à ineptidão da legitimidade passiva.
Custas pela autora.
Notifique e registe.”
***
III – O Direito
A decisão em crise rejeitou a petição inicial por ilegitimidade passiva1.
E isto por considerar que a pretensão da autora ora recorrente não era outra senão ilidir a presunção de paternidade de E relativamente às 2ª e 3ª rés menores. E por assim ter pensado, entendeu que a acção deveria ter sido instaurada contra a mãe, os filhos e o presumido pai. Mas, como este já faleceu, deveria ter sido intentada contra todos os descendentes do falecido E, face ao disposto nos arts. 1700º e 1666º do CC.
Não cremos que a razão esteja do lado da decisão impugnada.
Antes de mais nada, tendo o processo em causa ultrapassado a sua fase liminar, não seria possível a rejeição (parece que a intenção subjacente no despacho sindicado seria a rejeição/indeferimento liminar), mas sim a absolvição da instância, face aos termos previstos no art. 230º, nº1, do CPC (cfr. ainda arts. 412º, nº 2 e 413º, al. e), do CPC).
Em segundo lugar, a legitimidade plural é sanável, pelo que deveria o tribunal providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta do pressuposto processual, nos termos dos arts. 6º, nº2 e 427º, nº1, al. a) e nº2, do CPC. E não o fez.
Depois, a legitimidade tem que ser avaliada de acordo com a pretensão e a natureza da relação material controvertida, tal como ela é desenhada na causa de pedir. E de acordo com a causa de pedir da acção, não nos parece que a legitimidade, para estar assegurada, carecesse da intervenção dos demais herdeiros do falecido E.
Repare-se que para assim ter decidido, o tribunal “ a quo “ partiu da ideia de que “…a causa visa ilidir a relação matrimonial, de… modo a ilidir a filiação estabelecida com base na presunção da paternidade…”. E “sendo assim…, ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade”…”contra a mãe, o filho e o presumido pai constantes do registo…”…e no caso de morte do presumido pai devem ser demandados os descendentes, assim no presente caso, as descendentes do falecido E também devem ser rés, mas segundo a petição inicial, a autora não intentou acção contra elas”.
Ora, o raciocínio exposto no despacho em crise só teria pertinência e validade se estivéssemos perante uma acção de impugnação de paternidade alicerçada num casamento cuja existência não fosse questionada.
Realmente, o que se faz numa impugnação de paternidade é provar que, de acordo com as circunstâncias, “a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável” (art. 1697º, nº2, do CC). Ou seja, quem quer que seja o autor, o que ele procura é demonstrar que, num determinado casamento, o filho nascido na sua constância não tem como pai o marido da mãe. Portanto, parte-se de uma realidade pressuposta que é a existência efectiva e não controvertida de uma relação conjugal!
Contudo, o que a autora faz é, precisamente, pôr em causa, i.é., contrariar a existência do próprio casamento entre o seu marido E e a 1ª ré. Realmente, toda a causa de pedir se funda nessa situação material de facto, da qual resulta a invocação clara de que aquele seu falecido marido nunca contraiu casamento na RPC com a 1ª ré, uma vez que os documentos que esta teria apresentado na Conservatória do Registo Civil em Macau seriam falsos.
De resto, a acção, tal como decorre expressamente do cabeçalho da petição, é uma acção declarativa de simples apreciação negativa, concernente à apreciação do estado civil da 1ª ré e tendente à obtenção de uma sentença que afirme e declare que esta não casou com E e, em consequência, seja cancelado o respectivo registo, nos termos dos arts. 3º, nº2 e 70º, nº1, al. b), do CRC.
Por conseguinte, e salvo melhor opinião, estamos perante um caso de incorrecta ponderação por parte do despacho em análise acerca da situação narrada pela autora da acção, bem como de uma inexacta apreciação do propósito judicial com a propositura da presente acção.
Em suma, a acção em apreço não é de impugnação de paternidade, nem tem por objectivo questionar nenhuma paternidade presumida. Logo, falecem os fundamentos do despacho impugnado.
É, aliás, caso para acrescentar que mesmo que o tribunal “a quo” entendesse que o 2º pedido fosse mais próprio de uma impugnação de paternidade, haveria que tomar a seu tempo a devida decisão, mas, fosse ela qual fosse, nunca atingiria toda a acção, nem o seu principal pedido2.
Queremos, enfim, dizer que o despacho violou o disposto nos arts. 6º, nº2, 230º, nº1, al. d) e 3º, 413º, al. e), 414º e 427º, nº1, al. a), todos do CPC, pelo que não pode manter-se.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, devendo o processo prosseguir a sua tramitação normal, salvo se outra causa a tanto obstar.
Custas pelas rés.
TSI, 22 de Junho de 2017
_________________________
José Cândido de Pinho
_________________________
Tong Hio Fong
_________________________
Lai Kin Hong

1 O despacho disse rejeitar a petição devido à “ineptidão da legitimidade passiva”, mas a referência à “ineptidão” por ilegitimidade passiva ter-se-á devido a mero lapso, com toda a certeza; quereria dizer-se, por certo, “excepção dilatória”.
2 Parece-nos até que bastará que o tribunal venha a declarar a inexistência desse casamento, para a Conservatória ter que cancelar o registo dele, face ao que dispõe o art. 70º, nº1, al. b), do CRC.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




516/2016 19