Proc. nº 764/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Junho de 2017
Descritores:
-Execução
-Penhora
-Levantamento de penhora
-Embargos de Executado
SUMÁRIO:
I. O art. 292º, nº1, do CPC estabelece que os embargos podem ser deduzidos por quem seja terceiro, tanto titular de posse, como de um direito incompatível com a realização de diligência judicial, nomeadamente a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial avulsa e o despejo.
II. O levantamento de penhora ocorre apenas em dois casos:
1º- Quando a execução estiver parada por mais de 6 meses por culpa imputada ao exequente (art. 733º, do CPC);
2º - Em consequência da procedência da oposição que à execução seja movida em embargos de terceiro (art. 292º e sgs. do CPC) e por oposição à penhora (art. 754º, nº4 do CPC).
III. Se numa execução vier a ser penhorado um bem que não pertence ao devedor, por ter sido adquirido judicialmente por um terceiro no âmbito de outra execução, esta aquisição, mesmo não registada, prevalece sobre a penhora posterior, ainda que registada.
IV. O juiz do processo onde ocorreu a penhora não pode proceder (oficiosamente) ao levantamento da penhora, senão no âmbito dos embargos de terceiro instaurados pelo terceiro adquirente.
Proc. nº 764/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
Em sede de execução de sentença que no TJB corria termos sob o nº CV3-13-0011-CAO-A para pagamento de quantia certa (um milhão e duzentos mil dólares de Hong Kong e juros), que A moveu contra B e C, foi efectuada a penhora de metade do direito de propriedade do executado sobre a fracção “A3” neles identificada.
D requereu o levantamento da penhora com o fundamento de que esse direito fora adquirido por si no âmbito de uma venda em execução CV1-13-0019-CEO em que era exequente E e executado B.
Por despacho de 25/05/2016, foi a referida penhora levantada.
É contra tal despacho que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente/exequente A formulou as seguintes conclusões:
“i. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido nos autos a fls. 230 a 231, nos termos do qual o Tribunal a quo ordenou o levantamento da penhora sobre 1/2 do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada por “A3”, do prédio descrito sob o nº 19XXX na Conservatória do Registo Predial, com fundamento no facto da mesma quota-parte não pertencer ao executado.
ii. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que o Tribunal o que não poderia ter aceitado e muito menos aplicado o direito com força de caso julgado, como acabou por fazer, porquanto,
iii. A Recorrente foi notificada do teor do documento junto aos autos a fls. 188, apresentado pela com proprietária do executado, pelo qual se veio opor à penhora decretada sobre a quota-parte do imóvel acima identificado, alegando que a mesma pertencia a D.
iv. Em resposta, a Recorrente alegou que desconhecia se a quota-parte do direito de propriedade titulado pelo executado sobre a fracção autónoma designada por “A3” do prédio descrito sob o nº 19XXX na Conservatória do Registo Predial foi vendido ali não a favor desse D, até porque a referida comproprietária nem sequer esclareceu quando e em que moldes terá ocorrido essa aquisição ou sequer apresentou qualquer documento que o demonstrasse.
v. Mais alegou a Recorrente que o executado continuava como titular inscrito da metade do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, tanto assim que o registo da penhora decretada ao abrigo destes autos se encontrava lavrado definitivamente, tudo conforme se extrai da respectiva certidão que se juntou.
vi. Por último, alegou que a referida comproprietária não tem legitimidade para representar o alegado actual titular do direito de propriedade, D, nem fez uso do meio juridicamente adequado para a oposição à penhora, que teria necessariamente de ser feito mediante embargos de terceiro, nos termos previstos art. 292º e ss, do CPC, concluiu-se assim que deveria ser liminarmente indeferido o pedido da requerente e ordenado o desentranhado do documento junto aos autos.
vii. Posteriormente, em 03/05/2016, D veio aos autos (requerimento de fls. 214 a 223) requer o cancelamento da penhora ordenada ao abrigo dos presentes autos, de metade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada por “A3”, do prédio descrito sob o nº 19XXX na Conservatória do Registo Predial, alegando que é seu proprietário, por aquele lhe ter sido adjudicado em 4/01/2016, no âmbito da venda judicial decretada no processo executivo nº CV1-13-0019-CEO, ao que a Recorrente se opôs.
viii. Porém, por despacho entendeu o Tribunal a quo que o facto alegado pelo requerente deveria ser do conhecimento oficioso do tribunal e o meio legal utilizado foi idóneo para o conhecer, como tal decidiu, sem mais, ordenar o cancelamento da penhora.
ix. Ora, por despacho proferido pelo Tribunal a quo, de 29/01/2016, foi ordenada a penhora de 112 da fracção melhor identificada a fls. 183, tendo o requerente vindo alegar posteriormente que é o proprietário do referido direito de propriedade, por aquele lhe ter sido adjudicado em 04/01/2016, por venda judicial decretada no âmbito do processo executivo nº CV1-13-0019-CEO, pedindo assim o levantamento da referida penhora.
x. Não há dúvida de que o direito de propriedade invocado pelo D é ofendido e incompatível com o acto de penhora decretado pelo tribunal. Portanto, o meio processual e legal para o requerente se opor à penhora será através da dedução de embargos de terceiro.
xi. Dispõe o art. 292º do CPC que, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
xii. O incidente de embargos de terceiro é essencialmente caracterizado por uma acção declarativa, autónoma e especial, que corre por apenso aos autos, com vista à revisão, pelo mesmo órgão jurisdicional, da questão sobre que incidiu a decisão de que derivou, neste caso, a penhora.
xiii. Pois então, também não levanta qualquer dúvida que o requerente não deduziu incidente de embargos de terceiro (nem constituiu mandatário forense), pelo que se conclui que não utilizou o instrumento processual que a lei lhe confere para exercer o seu direito de se opor ao acto que alegadamente afecta o seu direito.
xiv. Conforme consagra o art. 1210º do CC, só o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo.
xv. Ora, a defesa do direito invocado pelo D apenas poderia ser exercida nos moldes próprios e permitidos pelo direito processual, que possibilitem a composição da causa em sede judicial e que proporcionem o exercício do direito ao contraditório, com vista a uma decisão da instância com efeito de caso julgado material - art. 299º do CPC
xvi. Com efeito, como os embargos visam a defesa do direito incompatível com a diligência judicial, o seu exercício depende exclusivamente da iniciativa do próprio titular, não cabendo ao tribunal resolver o litígio sem que tal lhe seja pedido - art. 3º 1 CPC
xvii. Pela mesma razão, não pode o direito invocado pelo lesado ser de conhecimento oficioso do tribunal, sob pena de cair-se numa situação de estar a aplicar o direito por vontade própria.
xviii. Aliás, note-se que o mesmo argumento não foi utilizado pelo tribunal a quo após o requerimento apresentado pela comproprietária da fracção autónoma, pelo que, salvo o devido respeito, não se compreende porque venha agora invocá-lo, apesar da manifesta contradição.
xix. Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que uma das consequências da inexistência de incidente de embargos é a impossibilidade da Recorrente poder invocar a caducidade do direito do requerente, nos termos prescritos na lei de processo.
xx. É que, ainda que por mera hipótese de raciocínio se entendesse que o requerimento apresentado pudesse ser considerado como dedução de embargos de terceiro - o que não se concede - sempre se diria que o mesmo não poderia ter provimento porque intempestivo, dado já terem decorridos mais de 30 dias contados da data em que o requerente teve conhecimento da existência da penhora sobre a metade do direito da fracção autónoma - art. 294º, nº 2, do CPC
xxi. Porém, no que respeita ao requisito de tempestividade, já se viu que o prazo para deduzir os embargos - isto é, de exercer o direito de defessa contra o acto lesivo - é de 30 dias contados desde o dia em que o acto ofensivo da posse ou direito ou daquele em que embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos.
xxii. Assim, no máximo, o prazo para deduzir os embargos conta-se da data em que o embargante teve conhecimento da penhora.
xxiii. Trata-se, de resto, de um prazo de caducidade, pelo que o direito de exercer o direito de defesa por embargos se extingue pelo decurso do mesmo prazo.
xxiv. A consagração de um regime de caducidade relativamente ao primeiro acto ofensivo do direito que chega ao conhecimento do interessado em embargar de terceiro, tem subjacente uma opção legislativa de apenas poderem ser deduzidos embargos de terceiro em relação a esse primeiro acto ofensivo da posse, pois afectaria a intenção de obter a segurança jurídica que está ínsita no estabelecimento de um prazo de caducidade, manter em aberto a possibilidade de embargar qualquer acto consequente do acto ofensivo.
xxv. Isto é, não seria congruente considerar a possibilidade de o interessado deduzir embargos de terceiro em qualquer momento que lhe aprouvesse, o que colidiria com razões de segurança jurídica.
xxvi. Ora, conforme consta nos autos, do despacho de penhora foi notificada a comproprietária, F, por carta registada com aviso de recepção enviada em 03/02/2016, para os efeitos do disposto no art. 750º do CPC.
xxvii. Na sequência dessa notificação, veio a mesma 1210 F, por requerimento de 23/02/2016 (vide fls. 188), informar o tribunal da aquisição da outra metade por D.
xxviii. Sucede que, pela leitura da certidão predial junta pelo requerente, constata-se que este é marido de F, a qual veio também aos autos requerer o cancelamento da mesma penhora, pelo que é inverosímil que não conhecesse da sua existência pelo menos nessa data.
xxix. O requerente D tinha então até 25/03/2016 para deduzir embargos de terceiro, o que não fez, requerendo apenas nos autos o levantamento da penhora em 03/05/2016, quando manifestamente já não o podia fazer, sendo portanto, totalmente intempestivo.
xxx. E nem se diga que o interessado veria o seu direito irremediavelmente perdido, visto que sempre pode intentar acção declarativa de titularidade do direito ou de reivindicação, nos termos fixados no art. 296º do CPC o que possibilitaria a ora Recorrente de exigir o ressarcimento dos seus prejuízos em sede de reconvenção.
Nestes termos e nos mais de direito,
Deve o recurso ser considerado procedente e, em consequência, revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que mantenha a penhora sobre 112 do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada por “A3”, do prédio descrito sob o nº 19XXX na Conservatória do Registo Predial.
Decidindo assim farão Vossas Excelências a acostumada JUSTIÇA.”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 – No 3º Juízo Cível do TJB, sob o nº CV3-13-0011-CAO-A, correram termos os autos de EXECUÇÃO DE SENTENÇA sob a forma SUMÁRIA, para pagamento da quantia exequenda de MOP$1.402.367,44 (um milhão quatrocentas e duas mil trezentas e sessenta e sete patacas e quarenta e quatro avos), acrescida dos juros e custas e demais acréscimos legais.
2 – Nessa execução figurava como exequente A, divorciada, titular do BIRM nº 135XXXX(5), residente na Avenida XXX, nº XXX, Edifício “XXX”, Bloco X, Xº andar “X”, e executados B, titular do BIRM nº 744XXXX(6) e C, titular do Bilhete de Identidade de Residente da República Popular da China nº 450104198308XXXXXX, casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos, com última residência conhecida na Estrada XXX, nº. XXX, Edifício XX, Xº andar “X”.
3 – No âmbito dessa execução foi lavrado o seguinte despacho datado de 29/01/2016 (fls. 180):
“Ordena-se a penhora ao executado de seu 1/2 do direito de propriedade da fracção autónoma “A3” compreendida no bem imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 19XXX.
O respectivo proprietário é notificado ao abrigo do disposto no artigo 750.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
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Quanto à pretendida penhora do saldo bancário do executado, consulte o despacho a fls. 9 dos autos e a resposta bancária a fls. 144 a 145 dos autos.
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Notifique e tome providências necessárias” (fls. 2-3 do apenso traduções)
4 – O despacho de penhora foi notificado à comproprietária F por carta enviada em 3/02/2016, para os efeitos do art. 750º do CPC.
5 – Na sequência desta notificação, veio a mesma F informar o tribunal da aquisição da metade da fracção por D, seu marido, nos autos de execução que correram no 1º Juízo Cível sob o nº CV1-13-0019-CEO, eram exequentes E e executado B.
6 – Nesses autos CV1-13-0019-CEO, em venda por proposta em carta fechada, D adquiriu metade da fracção aludida em 3, que lhe foi adjudicada por decisão de 4/01/2016, nos seguintes termos:
Despacho
Dado que o proponente D integralmente pagou o respectivo preço e cumpriu as obrigações fiscais inerentes à transmissão, este Tribunal decide, ao abrigo do disposto no artigo 795.º do CPC, adjudicar e entregar ao proponente D a quota-parte de 1/2 do bem imóvel indiviso sito na Estrada da Areia Preta, n.ºs 23 a 23A e Travessa da Fábrica, n.º s 2 a 12, Macau - a fracção autónoma A3 (com destino habitacional) (descrita na Conservação do Registo Predial sob o n.º 19XXX, a fls. 159 do Livro B42 e inscrita na matriz predial da DSF sob o n.º 71XXX).
Levante o referido registo de hipoteca e de penhora relativamente ao bem em causa.
Passe o título de transmissão. Notifique e D.N.
7 – O adquirente D, em 3/05/2016, veio aos presentes autos de execução CV3-13-0011-CAO-A dar conhecimento da existência da penhora nº 35XXXF determinada em 3 (fls. 49 dos autos e 4-5 do apenso “traduções”).
8 – Foi então lavrado o despacho ora recorrido, datado de 25/05/2016, que mandou proceder ao levantamento da penhora decretada em 3, nos seguintes termos (fls. 63 dos presentes autos de recurso; fls. 230 do processo de execução e 17 a 21 do apenso “traduções”):
“Através do requerimento de fls. 214 dos autos, D informa este Tribunal que o 1/2 do direito de propriedade do bem imóvel penhorado em causa foi lhe adjudicado por despacho de 4 de Janeiro de 2016 proferido no processo de venda judicial (N.º CV1-13-0019-CEO) que corre termos no 1.º Juízo Cível do TJB, pedindo que seja levantada a penhora feita em 29 de Janeiro de 2016 relativamente ao direito em causa.
Ao referido pedido opõe a exequente, que por seu lado indica que D deve formular o respectivo pedido mediante embargos de terceiro e entende que, por o direito de D ainda não se encontrar registado na Conservatória do Registo Predial mas a penhora em causa já ter sido nela registada, essa penhora favorável à exequente deve prevalecer relativamente ao direito de propriedade ora invocado por D.
Cumpre apreciar as questões suscitadas.
Em primeiro lugar, afigura-se ao Tribunal, salvo o devido respeito por opinião diversa, que apesar de D não ter empregado quaisquer meios jurídicos que se oponham à penhora, tais como embargos de terceiro, ele efectivamente comunicou ao Tribunal um facto relevante para decidir se mantém a penhora ou não, já que a penhora só pode ser feita relativamente aos bens possuídos pelo executado, sob pena de existir eventualmente a situação em que seja vendido bem alheio.
Pelo que, o Tribunal pode proceder ao tratamento oficioso sempre que conhecer o facto de o bem penhorado ser propriedade alheia.
No caso vertente, é incontroverso que, por despacho de 4 de Janeiro de 2016 proferido no processo de venda judicial que corre termos no 1.º Juízo Cível do TJB, foi adjudicado ao D o 1/2 do direito de propriedade que B anteriormente tinha possuído relativamente à referida fracção autónoma A3 (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 19XXX).
Por outras palavras, o facto de aquisição acima referido precedeu à penhora. No entanto, conforme mostra a certidão de registo predial constante dos autos, o registo da penhora foi feito na Conservatória do Registo Predial em 24 de Fevereiro de 2016, sob o n.º 35XXXF, enquanto o facto de aquisição de D ainda não é registado na Conservatória.
Portanto, a questão a apreciar é se o registo de penhora favorável à exequente pode opor ao facto de aquisição de direito por D, quando esse facto ainda não se encontra registado.
Como se sabe, no nosso regime o registo só é de natureza declarativa, tendo a eficácia de oponibilidade a terceiros. Ora, é exactamente o não registo do direito de D que a exequente invoca como fundamento para pretender que a penhora em causa deve prevalecer sobre esse direito de D.
No entanto, salvo o devido respeito pela opinião diversa, não se pode ignorar que, ao abrigo do disposto no artigo 814.º, n.º 2 do Código Civil, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.
A norma acima referida visa garantir que o direito adquirido através da venda realizada em processo de execução seja livre de quaisquer encargos. Portanto, após a venda judicial, o direito adquirido pelo adjudicatário não pode ser onerado com quaisquer outros encargos por causa do executado, incluindo a penhora.
Razão pela qual, se este Tribunal tivesse conhecido o referido facto de transmissão no momento de decidir a penhora, não deveria a ter ordenado, já que naquele momento tal direito já deixou de pertencer ao executado em causa. Caso contrário, o que aconteceria é que o Tribunal, por um lado, adjudicaria um direito a D e, por outro, onerá-lo-ia simultaneamente com alguns encargos que este não deve assumir.
No que tange a este aspecto, há jurisprudência1 que entende que, os encargos contraídos relativamente a bem imóvel sempre se extinguem automaticamente de acordo com a lei com a adjudicação judicial.
Quanto à eficácia da penhora registada relativamente à aquisição não inscrita no registo pelo adquirente, muitas jurisprudências2 entendem que, em caso de conflito entre uma aquisição anterior não inscrita no registo e uma penhora posterior registada, aquela prevalece sobre esta, uma vez que a penhora não se traduz na constituição de qualquer direito, sendo apenas um acto processual em que se desenvolve o processo de execução ou um ónus constituído sobre a coisa para satisfação do direito de crédito. A ineficácia apenas se reporta aos actos de disposição ou de oneração posteriores à penhora. No entanto, os actos anteriores à penhora, embora não registados, ainda produzem efeitos3.
Afigura-se-nos plausível o entendimento acima exposto, quer dizer que a penhora em causa, embora registada, não pode prevalecer sobre a aquisição de direito por D.
Cumpre ainda mencionar que, se a referida decisão de penhora tivesse sido tomada mais cedo, a exequente deveria ter reclamado o respectivo crédito no processo n.º CV1-13-0019-CEO e concorrer, junto com os outros credores nesse processo, para o produto da venda ao abrigo do disposto no artigo 764.º, n.º 1 do CPC. Ora, ao contrário, a exequente pretende usar o facto de a penhora ser posterior à venda judicial para ter uma garantia patrimonial que é maior ainda. Isso viola manifestamente as finalidades que as respectivas normas jurídicas pretendem realizar.
Face ao exposto, já que o direito penhorado deixou de pertencer ao executado, decido levantar a penhora n.º 35XXXF relativamente a 1/2 da propriedade da fracção autónoma A3 em causa (descrita na Conservação do Registo Predial sob o n.º 19XXX).
Notifique e tome diligências necessárias.
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Juiz do TJB da RAEM,
Aos 25 de Maio de 2016 ”
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III – O Direito
1 - A recorrente considera que:
a) Só por meio de embargos de terceiro podia D reagir contra a penhora de metade da fracção “A3” que fora decretada nos presentes autos de execução;
b) Mesmo que a peça por si entregue em 3/05/2016 (ponto 7 dos factos) fosse considerada como petição de embargos, ela teria sido extemporânea, face ao prazo de 30 dias referido no art. 294º do CPC.
São estas, portanto, as duas questões a decidir.
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2 – Da propriedade do meio processual
Como se vê dos factos acima por nós elencados, a penhora (registada) de metade de fracção “A3” ocorrida em sede dos presentes autos de execução (CV3-13-0011-CAO-A) em que figurava como exequente A, e executados B e C, teve lugar por despacho de 29/01/2016.
Também se vê que essa metade pertencente a B fora objecto de penhora e venda a favor de D no âmbito de outra execução (CV3-13-0019-CEO), em que era exequente E e executado B.
A adjudicação dessa metade teve lugar em 4/01/2016 no Proc. nº CV3-13-0019-CEO4.
A comproprietária dessa fracção veio aos autos dizer que a outra metade fora adquirida por D (seu marido) no âmbito da referida execução.
O próprio adquirente, no dia 3/05/2016, veio aos presentes autos (CV3-13-0011-CAO-A) informar ter tido conhecimento da penhora pedir o levantamento da penhora sobre a sua metade do bem por si adquirido no âmbito da outra execução CV3-13-0019-CEO (fls. 49 dos autos).
O juiz procedeu ao levantamento por despacho de 25/05/2016.
Ou seja, no processo CV3-13-0011-CAO-A (presentes autos) a penhora verificou-se em data posterior (29/01/2016) à venda e adjudicação (4/01/2016) no processo CV3-13-0019-CEO, não registada.
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2.1 - Poderia o titular do processo mandar proceder a este levantamento oficiosamente no seio da própria execução e não em embargos de terceiro?
Sem dúvida que, no momento em que no tribunal se realiza a venda e adjudicação da coisa penhorada ao adquirente, esta lhe é “entregue livre dos direitos de garantia que os [já] onerarem, bem quaisquer outros reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia…” (art. 814º do CPC). E, então, faz sentido que o tribunal proceda oficiosamente ao levantamento da penhora, se bem que se entenda que essa extinção dos direitos referidos no art. 814º opera “ipso iure” (Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma”, 4.ª ed. Coimbra Editora, 2004, págs. 342 e 343; tb. Ac. do STJ, de 30/09/2014, Proc. nº 3959/05).
Mas, no presente caso, do que se tratava era de levantar a penhora efectuada e registada em 24/02/2016, sob o nº 35XXXF, após a venda e adjudicação judicial realizada no âmbito de outro processo.
Como se afirmou no Ac. da RL, de 16/02/2012, Proc. nº 941/05, “A penhora, como vem sendo assinalado pelos diversos autores, tem uma função dupla, por um lado, visa individualizar e apreender efectivamente os bens que se destinam aos fins da execução, preparando o acto futuro de desapropriação e, por outro lado, visa obstaculizar a que esses sejam escondidos ou extraviados em prejuízo do exequente.
Envolve ainda a constituição de um direito real de garantia a favor do exequente, vde Palma Carlos Ac. Exec., pg 48, Castro Mendes Ac. Exec. pg 97).
A penhora pode ser definida como o “…acto judicial de apreensão dos bens do executado, que ficam à disposição do tribunal para o exequente ser pago por eles…” ou, por outras palavras, “…um desapossamento de bens do devedor, um acto que retira da disponibilidade material do devedor e subtrai relativamente à sua disponibilidade jurídica bens do seu património…”.
Remédio Marques, escreve que“…sendo a penhora uma «agressão» ao património do obrigado – seja ele devedor ou terceiro -, a afectação (e respectiva oneração) dos bens apreendidos às finalidades da acção executiva, a despeito de servir os interesses patrimoniais dos credores, não pode esquecer o interesse de o devedor (ou terceiro) não ser excessivamente onerado na fase da responsabilidade patrimonial.” . Veja-se neste sentido o Ac desta Relação de 14.07.2011 relatado por Amélia Ribeiro in WWW/DGSI TRL.
Posto isto, o art.º 821.º n.º 1 do CPC declara que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda. Ao que acresce que o art.º 601.º do Código Civil prescreve que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.”
Sendo assim, se vier a ser penhorado um bem que não pertence ao devedor, forçoso será concluir que a aquisição por outrem não tenha sido registada prevalece sobre a penhora posterior que venha a ser registada (Ac. da RG, de 16/02/2012, Proc. nº 315/05; no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 06.03.2008, Proc. 08B358).
Ou seja, a penhora de metade da fracção foi registada quando ela já tinha sido alienada judicialmente D, ainda que sem o competente registo. Mas, como a titularidade deste direito de propriedade se transfere por força do contrato, neste caso de compra e venda, com a sua eficácia real (arts. 408º e 879º, al. a), do Código Civil), e não por força do registo, temos que concluir que o direito de propriedade em apreço já tinha saído do património do executado aquando do registo da penhora, não podendo, por isso, garantir as dívidas deste (neste sentido, também, o Acórdão do STJ de 06.03.2008, Proc. 08B358).
Perante este cenário, e até porque não existe em Macau a polémica a respeito do conceito de terceiros para efeito de registo (ao contrário do que sucede com o art. 5º, nº 4, do CRP português, onde se poderia equacionar que o registo produziria efeitos perante terceiros adquirentes de boa fé, de um transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa), temos que apenas revelará o conceito de terceiro para efeito de embargo.
Ora, o art. 292º, nº1, do CPC estabelece que os embargos podem ser deduzidos por quem seja terceiro: titular da posse ou de direito incompatível com a realização de diligência judicial, com especial destaque para a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial avulsa e o despejo (Ac. da RP, de 16/11/2004, Proc. nº 0425699). Dito de outra maneira, é incompatível com a penhora o direito de propriedade e os demais direitos reais de gozo (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Anotado, I, 2ª ed., pág. 664).
Por outro lado, de acordo com o Ac. da RC, de 30/05/1989, in CJ, 1989, III, pág. 78, os embargos de terceiro devem fundar-se numa posse ou numa aquisição do direito anterior à diligência judicial respectiva. O momento para aferir dessa posse e dessa aquisição é o da realização do acto judicial (o despacho que ordenou a penhora, por exemplo), e não o da sua notificação ao executado ou o do seu registo (no mesmo sentido, o Ac. desta Relação de 12/10/89, B.M.J. n.º 390.º, 464).
É patente, portanto, que a aquisição do direito de propriedade de metade da fracção no Proc. nº CV1-13-0019-CEO por parte de D ocorreu antes da penhora ordenada no Proc. nº CV3-13-0011-CAO-A. O que significa que, nestas condições, esta penhora não podia prevalecer sobre o direito de propriedade.
Assim também o terá pensado o juiz autor do despacho sindicado nestes autos e quanto a isso estamos, plenamente, de acordo.
Simplesmente, aceitou a peça de fls. 49 (fls. 4 das “traduções”), que nem sequer requerimento é (ver facto 7 supra) e sobre ele verteu, em jeito oficioso, o despacho de fls. 63 a 64 dos presentes autos, determinando o levantamento da referida penhora (ver facto 8 supra).
Mas, sinceramente, estamos convencidos que o digno Juiz não acertou na solução. Com efeito, o levantamento da penhora não pode ser feito oficiosamente, nem sequer sob iniciativa de um simples requerimento, porque outra solução não restaria senão abrir um processo próprio com essa estrita finalidade, ou seja, os embargos de terceiro. O levantamento, ocorre, segundo julgamos saber, apenas em dois casos:
1º- Quando a execução estiver parada por mais de 6 meses por culpa imputada ao exequente (art. 733º, do CPC);
2º - Em consequência da procedência da oposição que à execução seja movida em embargos de terceiro (art. 292º e sgs. do CPC) e por oposição à penhora (art. 754º, nº4 do CPC): neste sentido, ver ainda Lebre de Freitas, Código cit., III, pág. 426; no sentido, também, da necessidade de instauração de embargos de terceiro para efeito do levantamento da penhora, ver Mariana França Gouveia, Penhora de imóveis e registo predial na reforma da acção executiva, pág.11-12, in www.fd.unl.pt/docentesdocs/ma/MFG_MA_7990.DOC).
É que esta penhora realizada num processo de execução distinto e posteriormente à aquisição judicial em outro processo ofende o direito do adquirente, pelo que a forma de o defender era através dos embargos de terceiro.
Então, de duas uma:
- Ou o juiz do processo considerava a peça de fls. 49 destes autos (traduzida a fls. 4 do apenso “traduções”) como uma verdadeira pretensão de embargos (ainda que indevidamente elaborada e sem os requisitos formais, que podia mandar corrigir e aperfeiçoar, nesse caso);
- Ou entendia que ela não podia servir de petição de embargos e não podia de “motu próprio” e, face à informação da referida peça, declarar o levantamento.
Seja como for, o despacho em causa não pode manter-se. O juiz não podia mandar levantar a penhora.
Isto significa que ele tem que ser revogado. E na sequência da decisão de revogação que nos cumprirá tomar, caberá ao juiz, após a baixa dos autos, proceder como achar mais correcto:
Se entender que a referida peça contém uma pretensão de embargos (o que poderá concluir por si ou após notificação do interessado D para esclarecer se com ela pretende embargar ou não), então mandará extraí-la da execução e autuá-la como petição de embargos de terceiro em processo apenso, após o que mandará suprir as suas insuficiências e irregularidades formais, incluindo a falta de constituição de mandatário forense (art. 294º, do CPC). E será também aí, e só então, que será analisada a questão de eventual extemporaneidade da dedução de embargos, face ao nº2, do art. 294º do CPC.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, na sequência do que revogam o despacho em apreço e determinam a baixa dos autos para os sobreditos efeitos.
Sem custas.
TSI, 22 de Junho de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 “A transmissão de bem imóvel no âmbito de execução judicial opera a extinção ipso jure dos direitos de garantia que oneram o bem penhorado (...)”- cfr. Acórdão de 30 de Setembro de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.
2 Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 10 de Fevereiro de 2000, 17 de Fevereiro de 2000 e 29 de Fevereiro de 2000.
3 “O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são terceiros; embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo de execução ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução. A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo de penhora, prevalecem sobre esta.
Isto é, em caso de conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não inscrita no registo e uma penhora posterior registada, aquela obsta à eficácia da última, prevalecendo sobre ela” - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 30 de Abril de 2003.
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764/2016 1