Processo n.º 54/2016 Data do acórdão: 2017-6-29 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– doença psiquiátrica
– investigação oficiosa da doença
– art.º 321.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Como os elementos probatórios então carreados pelo arguido aos autos não permitiram a formação de qualquer juízo judicial de dúvida sobre a existência da doença de foro psiquiátrico do arguido alegada por este, o tribunal a quo não precisou de ordenar oficiosamente a feitura de qualquer perícia médica sobre essa doença, pelo que não pode ter havido a omissão, por esse tribunal, do dever de investigação oficiosa do art.º 321.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 54/2016
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 58A a 60 do Processo Contravencional n.° CR1-15-0792-PCT do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou pela prática, em reincidência, de uma contravenção (por “condução por não habilitado”) p. e p. pelos art.os 79.º, n.º 1, e 95.º, n.º 2, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de dois meses de prisão efectiva, veio o arguido desse processo chamado A, já aí melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando e pretendendo, na sua essência (cfr. com mais detalhes, na motivação do recurso apresentada a fls. 68 a 91 dos presentes autos correspondentes), que:
– como o art.º 65.º, n.º 2, alínea d), do Código Penal (CP) fala da ponderação das “condições pessoais do agente” e o art.º 48.º, n.º 1, do CP manda atender à “personalidade do agente, às condições da sua vida”, e ele já ofereceu prova testemunhal e documental para provar que tem doença a nível psicológico, o Tribunal recorrido devia ter prova suficiente para dar por provado que ele padecia de doença a nível psicológico, para a partir daí decidir pela não aplicação da pena privativa da liberdade, daí que esse Tribunal não pôde invocar a inexistência de perícia médica para negar a comprovação desse tipo de doença dele, tendo omitido, pois, o Tribunal o dever plasmado no art.º 321.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), ao não ter ordenado a feitura da perícia médica aludida no art.º 149.º, n.º 1, do CPP sobre a doença dele, com vista à boa decisão da causa para efeitos do art.º 146.º do CPP, problema esse que acarreta a verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada referido no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do CPP, com o que deve ser reenviado o processo para novo julgamento, a fim de indagar se ele padece de doença a nível psicológico, ou, deve ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que em prol do princípio de in dubio pro reo passe a decretar-lhe a suspensão da execução da pena;
– ele, em 10 de Novembro de 2015, foi condenado à revelia no Processo n.º CR2-15-0493-PCT do 2.º Juízo Criminal do TJB, por condução sem carta praticada em 17 de Abril de 2015, 14 de Maio de 2015 e 15 de Maio de 2015, na pena única de quatro meses de prisão, suspensa na execução por 24 meses, e como o texto da correspondente decisão judicial só ficou disponibilizado a partir de 16 de Novembro de 2015, o prazo de recurso da mesma só ficou completo em 7 de Dezembro de 2015. Sucede que em 26 de Novembro de 2015 foi proferida a sentença ora recorrida condenatória do acto de condução sem carta cometido em 17 de Junho de 2015. Por isso, como a decisão condenatória daqueles três actos de condução sem carta não transitou então em julgado, o acto de condução sem carta em causa no presente processo não pode ser considerado como praticado em reincidência à luz do art.º 105.º da LTR, e como tal deve ser feito o cúmulo jurídico das penas dos quatro actos de condução sem carta em questão sob a égide do art.º 71.º, n.º 1, do CP, com consequente aplicação de uma pena única não privativa de liberdade;
– e fosse como fosse, a aplicação de dois meses de prisão efectiva ao acto de condução sem carta desta vez violaria manifestamente os art.os 79.º, n.º 1, e 95.º, n.º 2, da LTR e os art.os 65.º, 40.º e 48.º do CP, pelo que deveria ser suspensa a execução dessa pena de prisão.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido de manifesta improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 95 a 98).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 113 a 115v), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão do recurso:
– a Ex.ma Defensora de então do arguido chegou a apresentar, em nome deste, uma exposição escrita (ora constituindo a fl. 25 dos autos), em data anterior à realização da audiência de julgamento em primeira instância, afirmando que o próprio arguido tinha problema a nível psiquiátrico;
– a fl. 28 dos autos é uma outra exposição escrita apresentada alguns dias depois pela mesma Ex.ma Defensora ao Tribunal recorrido antes da audiência de julgamento, tendo ela aí afirmado que pretendia juntar, de entre outros documentos aí referidos, um documento (constituindo o documento 3 em anexo à própria exposição) para provar que o arguido, durante a infância, tinha chegado a submeter-se ao tratamento da Pediatria dos Serviços de Saúde para efeitos de avaliação do intelecto;
– esse documento n.º 3 consta da fl. 40 dos autos e é o original de um talão de “Reservado da Consulta Externa”, do qual constando o seguinte, nomedamente: “PEDIATRIA AVALIAÇÃO ESPECIAL”; “Data Consulta 2005 Ano 11 Mês 17 Dia Quinta-Feira”;
– nessa exposição escrita, afirmou também a mesma Ex.ma Defensora que pretendia juntar um documento (constituindo o documento n.º 1 em anexo à própria exposição) para provar que o arguido tinha boa profissão;
– esse documento n.º 1 consta de fls. 29 a 37, e é composto por:
– uma pública-forma de um Cartão de segurança ocupacional na construção civil emitido em 26 de Novembro de 2014 pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais a favor do arguido, para ser válido até 25 de Novembro de 2019, estando escrito no verso desse Cartão que “O titular deste cartão possui conhecimentos básicos sobre segurança nas obras de construção civil”;
– uma pública-forma de um cartão de autorização de entrada/saída em estaleiro de construção do “B”, emitido a favor do arguido em 2 de Abril de 2015;
– uma pública-forma de um certificado “Certificate of Advanced Safety Induction” emitido por uma sociedade comercial de construção civil a favor do arguido pelo período de 2 de Abril de 2015 a 1 de Abril de 2017;
– da acta da audiência de julgamento então realizada no Tribunal recorrido, consta que:
– o arguido ora recorrente confessou activamente o acto contravencional dele (cfr. o teor dessa acta, especialmente na parte escrita no 3.º parágrafo da sua página 2, a fl. 56v dos autos);
– os pais do arguido foram ouvidos como testemunhas, tendo o pai deposto nomeadamente que o seu filho, aquando da infância, precisava de ir às consultas de psiquiatria e que depois de 2005, já não foi mais às consultas, e a mãe deposto nomeadamente que o seu filho, na infância, padecia de obstáculo na leitura e de hiperactividade (cfr. o teor da mesma acta, especialmente na parte escrita nas linhas 8 a 9 e 23 a 24 da sua página 5, a fl. 58 dos autos);
– a sentença ora recorrida se encontra proferida em 26 de Novembro de 2015 a fls. 58A a 60 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
– na fundamentação probatória da sentença, o M.mo Juiz seu autor chegou a afirmar que sobre a questão de saber se o arguido infractor padece ou não de doença a nível psicológico, por ora ainda não há qualquer relatório de perícia médica a suportar a verificação dessa factualidade (cfr. as linhas 18 e 19 da fl. 58Av dos autos);
– o acto de condução sem carta por que vinha condenado o arguido na sentença recorrida datou de 17 de Junho de 2015;
– de acordo com a “listagem das transgressões” do arguido de fls. 3 a 4 dos autos, referida na matéria de facto dada por provada na sentença ora recorrida, ele chegou a praticar acto de condução sem carta em 6 de Dezembro de 2013 e pagou multa por isso em Dezembro de 2013, e depois disso e antes de Outubro de 2014, praticou por quatro vezes o acto de condução sem carta, respectivamente em 19 de Março de 2014, 14 de Julho de 2014, 6 de Agosto de 2014 e 7 de Setembro de 2014;
– em 10 de Novembro de 2015, o arguido foi condenado (com o texto da respectiva sentença disponibilizado a partir de 16 de Novembro de 2015, e com o trânsito em julgado em 7 de Dezembro de 2015) no Processo Contravencional n.º CR2-15-0493-PCT do 2.º Juízo Criminal do TJB, pela prática, em reincidência, de três contravenções (por “condução por não habilitado”), p. e p. pelos art.os 79.º, n.º 1, e 95.º, n.º 2, da LTR, respectivamente cometidas em 17 de Abril de 2015, 14 de Maio de 2015 e 15 de Maio de 2015, na pena de dois meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas três penas, na pena única de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por 24 meses (cfr. a certidão dessa sentença junta em 11 de Janeiro de 2016 a fls. 102 a 106 dos presentes autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Pois bem, do teor da motivação do recurso, vê-se nitidamente que o arguido centralizou a sua argumentação principal do recurso na questão da sua alegada doença a nível psicológico ou a nível psiquiátrico.
Entretanto, o teor do documento então por ele junto (a fl. 40) antes da realização da audiência de julgamento em primeira instância e os depoimentos dos seus pais prestados na audiência de julgamento não servem para provar que ele sofre de doença a esse nível na altura da prática do acto de condução sem carta nesta vez em 17 de Junho de 2015. E a documentação de cariz profissional junta por ele (a fls. 29 a 37) antes da realização da audiência de julgamento nem indicia a existência de doença a nível psiquiátrico ou a nível psicológico ao tempo de 17 de Junho de 2015. Nota-se que nem ele tenha chegado a pedir a realização de perícia médica sobre a sua alegada doença de foro psicológico. E na audiência de julgamento realizada no Tribunal recorrido, confessou ele até activamente o acto contravencional.
Assim sendo, como os elementos probatórios então carreados aos autos não permitiram, nos termos acima vistos, a formação de qualquer juízo judicial de dúvida sobre essa alegada doença do arguido, o Tribunal a quo não precisou de ordenar oficiosamente a feitura de qualquer perícia médica sobre isso, pelo que não pode ter havido a omissão, por esse Tribunal, do dever de investigação oficiosa do art.º 321.º, n.º 1, do CPP. E os dizeres deixados escritos por esse Ente Julgador na fundamentação probatória da sua sentença – no sentido de que sobre a questão de saber se o arguido infractor padece ou não de doença a nível psicológico, por ora ainda não há qualquer relatório de perícia médica a suportar a verificação dessa factualidade – visam reforçar a sua livre convicção sobre inexistência de doença alegada pelo arguido.
Há que, pois, cair por terra ou ficar logicamente prejudicada toda a restante argumentação tecida na motivação do recurso a respeito da indagação da doença do arguido, não pode ter ocorrido, pois, o vício do art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do CPP na questão de doença do arguido (posto que o Tribunal recorrido já se pronunciou concretamente sobre isto, materialmente no sentido de não comprovação dessa alegada doença).
No tocante à questão de alegada não reincidência na prática da condução sem carta desta vez em 17 de Junho de 2015: não tem razão o recorrente, porquanto tudo indica que ele se esqueceu deveras do seu “primeiro” acto de condução sem carta em 6 de Dezembro de 2013, com multa já paga por ele em Dezembro de 2013.
No caso, está cabalmente preenchido o conceito de reincidência definido expressamente no art.º 105.º da LTR: “prática da mesma contravenção (em 17 de Junho de 2015) antes de decorridos 2 anos sobre a prática da contravenção anterior (em 6 de Dezembro de 2013) e depois de o infractor ter efectuado (em Dezembro de 2013) o pagamento voluntário da multa ou ter sido condenado por sentença transitada em julgado”.
E agora da questão do cúmulo jurídico da pena contravencional dos presentes autos com as penas contravencionais parcelares impostas no Processo n.º CR2-15-0493-PCT do TJB: Os três actos de condução sem carta em causa nesses autos n.º CR2-15-0493-PCT só foram aí dados por provados como praticados em 17 de Abril e 14 e 15 de Maio de 2015, por sentença de 10 de Novembro de 2015, cuja certidão só foi junta aos presentes autos n.o CR1-15-0792-PCT, já depois de proferida a sentença ora recorrida de 26 de Novembro de 2015. Por isso, não se pode censurar o Tribunal ora recorrido pela não feitura do cúmulo jurídico das penas referido no art.º 71.º do CP (o que, porém, não prejudica a possibilidade de feitura do cúmulo, à luz do art.º 72.º do CP, em sede ulterior).
Por fim, sobre a rogada suspensão da execução da pena de prisão de dois meses: antes de Outubro de 2014, o arguido já praticou, no total, por cinco vezes, o acto de condução sem carta. Assim sendo, para se poder realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição sobretudo na vertente de prevenção especial deste tipo legal de acto contravencional, não se pode formar, nesta vez, qualquer juízo de prognose favorável ao arguido em sede do art.º 48.º, n.º 1, do CP, havendo que manter realmente a pena de dois meses de prisão efectiva do arguido.
Do acima exposto, resulta indicada a manutenção do julgado, sem mais indagação, por estar logicamente prejudicada, sobre todo o remanescente argumentado na motivação do recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique ao Processo n.º CR2-15-0493-PCT do TJB e ao Processo n.º 142/2017 do TSI.
Macau, 29 de Junho de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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