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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 3 / 2007

Recorrente: Secretário para a Segurança
Recorrido: A









1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância contra o despacho do Secretário para a Segurança proferido no recurso hierárquico que manteve a decisão de reclamar a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido.
   Por acórdão proferido no processo n.° 301/2005, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso contencioso, anulando o acto administrativo recorrido.
   Deste acórdão vem agora o Secretário para a Segurança recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
“1. Não estamos de acordo com o ponto de vista de que a realização da “2.ª hipoteca” (“dupla hipoteca”) da casa própria por parte do recorrente A, preenche os requisitos para a atribuição do subsídio de residência previstos no artigo 203.º , n.º 4, al. b) do ETAPM.
2. Deverá ou não a realização da “2.ª hipoteca” (“dupla hipoteca”) da casa própria por parte do trabalhador da Administração Pública preencher ou não os requisitos para a atribuição do subsídio de residência previstos no artigo 203.º , n.º 4, al. b) do ETAPM? Questão essa que é meramente jurídica.
3. As finalidades do legislador na elaboração da atribuição do subsídio de residência residem em ajudar os trabalhadores da Administração a resolver os seus encargos pesados com a habitação, assim como em oferecer um auxílio pecuniário aos trabalhadores que têm necessidade quanto aos encargos com a habitação.
4. Porém, o subsídio de residência estabelecido pelo legislador não abrange as situações de que os trabalhadores têm casa própria, e habitam em casa do património da Região, dos serviços autónomos ou dos municípios (Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais).
5. Entendemos que o encargo de habitação é uma questão social que cada pessoa ou cada família tem de resolver. Porém, o legislador, ao estabelecer o regime geral do subsídio de residência, restringe o direito ao subsídio de residência gozado por aqueles que têm casa própria, ou habitam em casa do património da Região, dos serviços autónomos ou dos municípios (Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais).
6. O subsídio de residência foi estabelecido para subsidiar os trabalhadores para fazerem face aos encargos relacionados com a habitação, mais directa e concretamente, trata-se apenas de um auxílio pecuniário a ser fornecido aos trabalhadores para adquirirem casa própria aonde habitam, diminuírem os encargos de juro provenientes do empréstimo, e resolverem a sua necessidade de habitação.
7. O mesmo argumento está reflectido tanto no Decreto-Lei n.º 56/83/M de 23 de Dezembro como no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84/M de 26 de Dezembro.
8. O legislador, ao determinar outros subsídios, tais como subsídio de família (“subsídio de filhos e pais”), subsídio de casamento, subsídio de nascimento e subsídio de funeral, tem critérios diferentes dos da atribuição do subsídio de residência, porque o legislador não vai ponderar como é que as despesas são efectuadas pelos trabalhadores da Administração Pública com os assuntos relacionados com a família, o casamento, o nascimento e o funeral e vai-lhes atribuir um abono com quantia certa para eles fazerem face a tais encargos, porém, quanto à atribuição do subsidio de residência, as despesas utilizadas pelos trabalhadores da Administração Pública no arrendamento de habitação são exactamente os factores que o legislador tem de ponderar, se o encargo seja inferior ao nível de auxílio estipulado pela lei, só se atribui o montante equivalente à respectiva renda.
9. A capacidade económica dos trabalhadores não é um factor que a Administração vai ponderar aquando da apreciação dos pedidos dos subsídios de residência.
10. A Administração não pode restringir o exercício do direito de disposição de próprios bens patrimoniais por parte dos trabalhadores, ou melhor dizendo, a disposição de bens patrimoniais por parte dos trabalhadores não é um factor que a Administração vai ponderar aquando da apreciação dos pedidos dos subsídios de residência, ao contrário, o que a Administração pondera é a proibição do abuso do direito por parte dos seus trabalhadores através da forma de “má fé”, a Administração, de modo algum, não admite que os trabalhadores recebem auxílio através de forma ilegítima para prolongar o encargo com a habitação (prolongar o tempo de amortização) no sentido de manter o direito ao subsídio de residência.
11. No presente recurso contencioso, os encargos de habitação devem terminar-se quando acabaram as prestações da 1.ª hipoteca e a realização da 2.ª hipoteca da sua casa própria não tem a ver com os encargos resultantes da aquisição de casa.
12. O acórdão do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que julgou eivado do vício da violação da lei o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança em X de X de 2005 viola a lei e interpretando erradamente as finalidades da atribuição do subsídio de residência previstas no artigo 203.º do ETAPM, sendo isto uma violação da lei.
   13. Partindo-se das finalidades da atribuição do subsídio de residência, o acórdão do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância que julgou eivado do vício da violação da lei o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança em X de X de 2005 viola o disposto no artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil e interpretando erradamente a acepção do regime da atribuição do subsídio de residência previsto no artigo 203.º do ETAPM e as suas finalidades.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso, revogando o acórdão do Tribunal de Segunda Instância objecto do presente recurso.
   
   O recorrido não apresentou alegações.
   
   A Procuradora-Adjunta do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
   “No caso sub judice, o Tribunal de Segunda Instância julga procedente o recurso contencioso interposto por A, com a fundamentação de que o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança que indeferiu o recurso hierárquico por ele interposto (o que implica que ordenou o mesmo a restituição dos subsídios de residência recebidos) violou o disposto no artigo 203.º, n.º 4, al. b) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e anulando o despacho proferido pelo Secretário para a Segurança.
   Inconformado com a decisão proferida pelo Colectivo do Tribunal de Segunda Instância, o Secretário para a Segurança recorreu para o Tribunal de Última Instância, entendendo que o acórdão em questão deve ser revogado e mantendo-se o acto administrativo por ele praticado.
   A questão chave que se sugeriu neste recurso reside em saber como se efectua a interpretação do artigo 203.º, n.º 4, al. b) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e a sua aplicação concreta a este processo.
   
   Como se sabe, nos termos do artigo 203.º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, os funcionários e agentes em efectividade de funções, desligados do serviço para efeitos de aposentação ou aposentados, que residam em Macau e recebam, total ou parcialmente, vencimento, salário ou pensão por conta da Região, têm direito a um subsídio de residência de determinado montante. Mas este artigo determina duas excepções, uma das quais é o que preceituado no n.º 4, al. b) do mesmo artigo: “Tenham casa própria, salvo quando esteja sujeita a encargos de amortização”.
   Por aí se percebe que o trabalhador da Administração Pública que tem casa sujeita a encargos de amortização tem direito à percepção do subsídio de residência.
   No caso sub judice, A, na proximidade da liquidação total do empréstimo contraído na aquisição da casa a prestações, pediu ao banco outro empréstimo com a efectivação de 2.ª hipoteca sobre a mesma casa para continuar a beneficiar do direito ao subsídio de residência.
   Aparentemente, afigura-se que tal situação satisfaz o requisito da atribuição do subsídio de residência consagrado no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, na medida em que no artigo 203.º, n.º 4, al. b) não se prevê explicitamente a situação da realização de 2ª ou mais hipoteca sobre a casa onde habita, apenas se exigindo simplesmente “quando esteja sujeita a encargos de amortização”, por isso, afigura-se que o trabalhador da Administração Pública tem o direito à percepção do subsídio de residência desde que tenha casa sujeita a encargos de amortização (incluindo a situação da nova hipoteca sobre a casa).
   Porém, analisados globalmente o regime da atribuição do subsídio de residência consagrado no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e o pensamento legislativo do legislador aquando da elaboração do regime em causa, inclinamo-nos a entender que a situação concreta envolvida no presente caso não deve ser incluída na excepção da atribuição do subsídio de residência estatuída na referida disposição.
   
   O Código Civil determina no seu artigo 8.º, n.º 1 que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; claro que o pensamento legislativo há de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
   Ao interpretar a lei deve atentar-se a vários elementos básicos: (1) elementos da gramática ou da letra da lei; (2) elementos da lógica, dos quais abrangem os elementos da sistematização da unidade do sistema jurídico, os elementos históricos constituídos por precedentes normativos, trabalhos preparatórios da produção legislativa e ocassio legis e, os elementos do objectivo da elaboração da lei (o que implica a justificação social da lei).
   Ou melhor dizendo, a interpretação da lei deve ser feita com a consideração da letra da lei, sistema normativo, evolução histórica, objectivo legislativo, etc., no sentido de explicar concretamente a acepção do articulado.
   De harmonia com as anotações feitas por Pires de Lima e Antunes Varela ao Código Civil de Portugal, a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo algum, o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis). Pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei (cfr. Código Civil Anotado, Volume I – 4.ª edição, pág. 58).
   
   Concretamente quanto à disposição aplicada ao presente caso, terá especial significado se esta disposição for analisada a partir da ocassio legis e do objectivo legislativo.
   A atribuição do subsídio de residência não passa de duas modalidades, uma é a atribuição uniformizada, isto é, todos os trabalhadores da Administração Pública têm direito a percepção deste subsídio, independentemente do seu rendimento, da sua capacidade económica, etc.; outra é a atribuição com condições prefixadas, o subsídio de residência é atribuída àquele que preenche as condições. Sem dúvidas, o legislador de Macau optou pela 2.ª modalidade.
   Partindo-se da ideia original do legislador, a elaboração do regime de atribuição do subsídio de residência visa fornecer determinada ajuda aos trabalhadores da Administração Pública para resolver a sua necessidade básica de habitação através da atribuição do subsídio de residência.
   De uma noção geral, afigura-se que o subsídio de residência tem a natureza de apoio.
   Por outro lado, segundo o disposto no artigo 203.º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, só podemos chegar a uma conclusão de que o subsídio de residência destina-se apenas à resolução da questão de residência, dado que, se o valor da renda de casa arrendada é inferior ao montante do subsídio de residência, o funcionário em causa só pode receber um montante do subsídio de residência equivalente ao valor da renda de casa arrendada.
   A questão de residência pode ser resolvida basicamente através do arrendamento da casa alheia ou aquisição da casa própria; a aquisição da casa própria pode ser realizada através do pagamento integral da totalidade do preço da casa adquirida ou da realização da hipoteca sobre a mesma casa e da consequente devolução do empréstimo em prestações ao banco.
   Quanto ao pagamento integral da totalidade do preço da casa adquirida, afigura-se que é presumível que não haja necessidade de ser subsidiado por parte da Administração, visto que o funcionário em causa dota da capacidade económica suficiente para resolver a questão relacionada com a habitação; quanto à situação do arrendamento da casa ou à da realização da hipoteca sobre a casa adquirida, o legislador visa estabelecer um regime do subsídio de residência, cabendo à Administração fornecer uma determinada quantia de subsídio aos seus trabalhadores para fazerem face aos encargos com a habitação mesmo que tenham, na realidade, capacidade económica suficiente para adquirir casa própria e sem a necessidade do arrendamento da casa ou da contracção do empréstimo.
   Se a atribuição do subsídio de residência aos trabalhadores da Administração Pública é apreciada apenas com o critério do arrendamento da casa ou dos encargos de amortização, o que enferme, na realidade, de certa parcialidade, nomeadamente quando o trabalhador em causa possui capacidade económica suficiente para efectuar o pagamento integral da totalidade do preço da casa adquirida mas optando pelo arrendamento da casa alheia ou pela amortização, porém, já que o legislador não determina o subsídio de residência como uma regalia semelhante ao subsídio de casamento ou subsídio de família para atribuir a todos os trabalhadores da Administração Pública que reúnem condições (intenção essa que já é expressa e indubitavelmente demonstrada na respectiva disposição legal), assim, torna-se necessário o estabelecimento de um critério objectivo para distinguir quem tem direito ao subsídio de residência e quem não tem direito ao mesmo subsídio, critério esse que apenas é relativamente objectivo, dado que é difícil chegar a um grau de objectividade absoluta ou igualdade absoluta, a não ser que o subsídio de residência é atribuído uniformizadamente a todos os trabalhadores da Administração Pública (com excepção daqueles que habitam na casa do património do Governo).
   Embora concordemos com a atribuição automática do subsídio de residência a todos os trabalhadores da Administração Pública, independentemente da sua capacidade económica, para reflectir o princípio da igualdade completa, todavia, no âmbito do actual sistema jurídico e norma jurídica, parece que não é a opção do legislador e o princípio da igualdade completa só pode ser concretizado na prática jurídica mediante a alteração da lei.
   
   As considerações acima mencionadas sobre o pensamento legislativo do regime do subsídio de residência (partindo-se essencialmente do objectivo da produção legislativa) não violam a letra do artigo 203.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e entendemos que, apesar de o legislador não determinar expressamente a situação da 2.ª ou mais hipoteca sobre a casa, aqueles que realizam a 2.ª hipoteca (até pelas várias vezes) sobre a casa sujeita a encargos de amortização sem qualquer razão relacionada com a aquisição da casa não podem manter o direito à percepção do subsídio de residência e na situação geral, a maior parte de pessoas escolhe a hipoteca de só uma vez sobre a casa na aquisição da habitação para resolver a insuficiência do capital.
   A nosso ver, quando haja nova hipoteca, o interessado deve, ao menos, demonstrar ou até comprovar que a hipoteca em causa tem a ver com a aquisição da habitação (p. ex. o objectivo da 2.ª hipoteca reside em devolver parte de verba de empréstimo contraído aos familiares ou amigos para evitar o pagamento de elevada taxa dos juros ao banco) para poder continuar a usufruir do subsídio em causa, por outras palavras, o objectivo da 2.ª hipoteca desempenha um papel crucial neste caso.
   Com certeza, não podemos, sem mais, apenas porque se contraiu novo empréstimo mediante nova hipoteca sobre o imóvel onde se habita, concluir que o interessado tinha praticado um acto de “má fé” e, através de tal meio, pretendeu defraudar ou contornar a legislação, por forma a continuar a usufruir indevidamente do subsídio em causa. Porém, o objectivo da 2.ª hipoteca no âmbito do actual regime deve ser o elemento decisivo para a atribuição do subsídio de residência.
   
   No caso vertente, o funcionário público concernente declarou que a 2.ª hipoteca sobre sua própria casa foi efectuada por motivo do pagamento das despesas de obras de decoração da mesma casa, o que não tinha nenhuma ligação directamente relacionada com a aquisição da casa. Neste contexto, se se confirma o seu direito à percepção do subsídio de residência, afigura-se que é muito distante do objectivo do estabelecimento desse direito, não obstante de que aparentemente preencha o requisito “formal” do direito à atribuição do subsídio de residência (ou seja, encargos de amortização), pelo que, entendemos que ele não pode manter o direito à percepção do subsídio de residência por motivo alheio à aquisição da casa.
   
   Pelo exposto, deve julgar procedente o recurso interposto pelo Secretário para a Segurança.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Tribunal de Segunda Instância considera provados os seguintes factos:
   “No dia X de X de 2005, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
   Assunto: Recurso hierárquico – devolução da quantia indevidamente recebida a título de subsídio de residência (MOP$38.157,70)
   Recorrente: A, n.º ...
   Acto recorrido: Despacho do Director substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau de X de X deste ano (2005) constante da Informação n.º XXXX/DA/2005
   
   O recorrente, A, n.º ..., comprou um imóvel para habitação própria em Novembro de 1992. Contraíu empréstimo bancário com hipoteca no valor de HK$150.000,00, de 180 prestações de valor mensal de HK$1.500,00. Em seguida, o recorrente recebia subsídio de residência através do referido imóvel comprado como casa.
   Em Outubro de 2000, o recorrente contraíu outro empréstimo bancário com hipoteca do mesmo imóvel no valor de HK$60.000,00, invocando as obras de decoração a realizar naquele. Até Outubro de 2000, o recorrente tinha ainda por amortizar HK$6.449,93 no primeiro empréstimo bancário.
   Em X de X deste ano, de acordo com o parecer constante do ofício da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, o Director substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau entendia que a segunda hipoteca do recorrente está em desconformidade com os requisitos essenciais de concessão do subsídio de residência previstos no art.º 203.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e decidiu reclamar a devolução pelo recorrente do subsídio de residência indevidamente recebido de Agosto de 2001 a Março de 2005, no valor total de MOP$38.157,70.
   O recorrente tomou conhecimento em 15 de Setembro corrente do conteúdo do referido despacho sobre a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido e no dia 21 seguinte apresentou recurso hierárquico perante mim, pedindo a revogação da decisão do Director substituto sobre a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido.
   É própria a forma de impugnação apresentada pelo recorrente, tem legitimidade e é tempestivo. Não há factos que motivam a rejeição do recurso hierárquico ou impedem o conhecimento da questão em litígio.
   Segundo o alegado na petição do recurso hierárquico, posso resumir em dois os fundamentos que levam o recorrente a discordar da referida decisão:
   1. No acto de notificação ao recorrente sobre a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido, o recorrente invoca que a nota de notificação violou a disposição da al. d) do art.º 70.º do Código do Procedimento Administrativo, e deve ser revogada a decisão;
   2. O recorrente considera que estão verificados os requisitos para receber o subsídio de residência. É desprovido de efeito jurídico o parecer constante do ofício n.º XXXX/DTJ da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública e falta fundamento legal à decisão do Director substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau.
   Ora, vejamos se procedem os fundamentos do recorrente.
   Em primeiro lugar, não estou de acordo com a invocada violação da norma constante da al. d) do art.° 70.° do Código do Procedimento Administrativo pelo acto de notificação da Direcção ao recorrente de que era exigido a devolver o subsídio de residência indevidamente recebido. Na nota de notificação foi indicado claramente, sem qualquer margem de dúvida, que o interessado podia interpor recurso hierárquico necessário contra o despacho, afastando, assim, expressamente a possibilidade de recorrer contenciosamente. Mais ainda, mesmo que eu aceite a posição do recorrente de que devia constar expressamente da nota de notificação a recorribilidade do acto, tal ilegalidade não conduz ao vício anulatório do acto administrativo. Por outra palavra, tal notificação constitui apenas o requisito de eficácia do acto administrativo, não afectando a integridade da decisão administrativa e os elementos essenciais da validade. Assim, é desprovido de fundamento o pedido de anulação do acto impugnado.
   Sobre a titularidade ou não do direito a receber o subsídio de residência ao hipotecar de segunda vez o imóvel pelo recorrente.
   No ofício n.° XXXX/DTJ da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública foi claro no sentido de que os funcionários públicos só podem receber o subsídio de residência na primeira hipoteca do imóvel com encargos de amortização. Hipotecar o imóvel de segunda vez ao banco para aumentar o valor do empréstimo e prolongar o tempo de amortização não corresponde ao fim da concessão do subsídio de residência estabelecido pelo legislador no art.° 203.° do ETAPM. Concordo com a posição da Direcção de que o objectivo de instituir o subsídio de residência consiste em ajudar os funcionários a resolver os encargos pesados relacionados com as despesas de habitação. Por outra palavra, o recorrente não goza do direito de receber o subsídio de residência ao hipotecar o mesmo imóvel ao banco com novos encargos de amortização, pois, na realidade, desapareceu o encargo do recorrente com a casa de habitação quando ficou amortizado o empréstimo da primeira hipoteca.
   Por outro lado, concordo perfeitamente com que o referido parecer da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública não tem efeito legal, mas dotado do valor uniformizador e directivo para a Administração. Por esta razão, ao tratar os assuntos relacionados com a concessão, suspensão ou até a reclamação de devolução da quantia do subsídio de residência por ser indevidamente recebida, os serviços administrativos devem ainda seguir a respectiva interpretação legal. Devemos entender que na questão de decidir sobre o subsídio de residência pelo Director substituto, isto é, na interpretação do art.° 203.° do ETAPM sobre a concessão do subsídio de residência, estava totalmente de acordo com o parecer da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, que constituía a parte de fundamentação da decisão do Director substituto que exigiu ao recorrente devolver o subsídio de residência indevidamente recebido. O parecer emitido pela Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública é legal e é conforme com as suas próprias funções.
   Deste modo, o Director substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau tem poder a decidir se o recorrente pode beneficiar do subsídio de residência na situação de segunda hipoteca do imóvel, segundo os requisitos de concessão do subsídio previstos no art.° 203.° do ETAPM. Estou de acordo com os fundamentos da decisão, que são conformes com a lei e adequados.
   Sintetizando, no uso da competência prevista no n.° 2 do art.° 4.° do Regulamento Administrativo e nos termos do n.° 1 da Ordem Executiva n.° 13/2000 e art.° 161.° do Código do Procedimento Administrativo, decido indeferir o presente recurso hierárquico, confirmando o despacho do Director substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau de X de X corrente constante da Informação n.° XXXX/DA/2005, em que exigia ao recorrente a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido de Agosto de 2001 a Março de 2005, no valor total de MOP$38.157,70.
   ...”
   
   
   2.2 Os requisitos para receber subsídio de residência por encargos de amortização
   Tal como no precedente recurso contencioso, a questão focada no presente recurso consiste igualmente na interpretação da norma do art.º 203.º, n.º 4, al. b) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) que regula a recepção do subsídio de residência por trabalhadores da Administração Pública.
   No acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância considera que o trabalhador da Administração Pública continua a ter o direito a receber o subsídio de residência desde que esteja sujeito a encargos de amortização, seja resulta da primeira hipoteca da respectiva fracção, seja da hipoteca sucessiva por qualquer razão.
   O ora recorrente não concorda com esta posição, entendendo que esta contraria com o fim de conceder o subsídio de residência no actual regime da função pública. Alega o recorrente que se deve atender o sistema global, o objectivo e a circunstância legislativos da concessão do subsídio de residência na interpretação das respectivas normas. O estabelecimento do subsídio de residência é um tipo de abono destinado a prestar directa e concretamente aos trabalhadores da Administração Pública que compram a casa própria ou acorrer à sua necessidade de residência. Quando a renda a pagar por trabalhadores da Administração Pública for inferior ao limite legal do abono pecuniário, é reduzido correspondentemente o subsídio de residência a receber. São abonos de valor certo os subsídios de família, de casamento, de nascimento e de funeral referidos no acórdão recorrido, independentemente das despesas dos agentes. A Administração não aceita o recebimento por trabalhador da Administração Pública do subsídio de residência pelo prolongamento dos encargos de amortização da residência, de propósito e por meios indevidos.
   
   Sobre os requisitos de receber o subsídio de residência pelos trabalhadores da Administração Pública regula o art.º 203.º do ETAPM:
   “1. Os funcionários e agentes em efectividade de funções, desligados do serviço para efeitos de aposentação ou aposentados, que residam em Macau e recebam, total ou parcialmente, vencimento, salário ou pensão por conta do Território, têm direito a um subsídio de residência de montante constante da tabela n.º 2, ou de importância igual à renda paga se esta for inferior àquela quantia.
   2. O direito ao subsídio é atribuído a todos os funcionários e agentes ainda que existam entre eles relações de parentesco e residam na mesma moradia.
   3. ...
   4. Exceptuam-se do disposto no n.º 1 os trabalhadores que se encontrem numa das seguintes situações:
   a) Habitem casa do património do Território, dos serviços autónomos ou dos municípios;
   b) Tenham casa própria, salvo quando esteja sujeita a encargos de amortização.
   5. ...
   6. ...
   7. ...
   8. Haverá redução rateada do subsídio de residência no caso do valor da renda ser inferior ao montante global dos subsídios atribuídos a trabalhadores que residem na mesma casa.
   9. ...”
   
   Resulta evidentemente dos n.ºs 1 e 8 do referido art.º 203.º que o subsídio de residência dos trabalhadores da Administração Pública destina-se, em princípio, a ajudar as suas despesas no âmbito do arrendamento de casa. É fixado o limite máximo do subsídio a receber por cada trabalhador e ao mesmo tempo prescreve que o valor total dos subsídios recebidos pelos respectivos trabalhadores não pode exceder a renda real da casa arrendada.
   Por isso, o subsídio de residência é, em princípio, um abono para as despesas com o arrendamento de casa. Precisamente por esta razão, se o trabalhador da Administração Pública habita em casa de património do Governo ou em casa própria, isto é, sem despesas de renda no âmbito de habitação, não tem o direito a receber o subsídio de residência, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.
   No entanto, na al. b) do mesmo número é estabelecida uma excepção, ou seja, o trabalhador da Administração Pública pode ainda receber subsídio de residência, não obstante ter a casa própria, se esta está sujeita a encargos de amortização.
   Não custa compreender que a excepção tem em conta que certos trabalhadores da Administração Pública não se optam por arrendar casa, mas sim comprar casa como residência. Então, o respectivo requisito de concessão do subsídio de residência passa a ser o de encargos de amortização, considerando a quantia de prestação mensal como a renda de casa do mês correspondente.
   Tal como foi decidido no acórdão deste Tribunal proferido no processo n.º 45/2006, amortizar significa pagar parcialmente uma dívida. Só quando a dívida for contraída na compra da respectiva fracção, é que corresponde ao objectivo do estabelecimento do subsídio de residência pelo legislador, isto é, a ajuda a prestar aos trabalhadores da Administração Pública no âmbito de habitação.
   Por outra palavra, perante a aquisição de empréstimo bancário através da hipoteca da casa própria, se o empréstimo for destinado a comprar tal casa, então pode-se requerer o subsídio de residência de acordo com a situação dos encargos de amortização. Se for destinado a outros fins, já não satisfaz os requisitos de concessão do subsídio de residência.
   É de salientar que o subsídio de residência tem por objectivo ajudar os trabalhadores da Administração Pública a resolver o problema da habitação, não podendo ser considerado como uma remuneração extra e devida. Por isso, quando for resolvido o problema de habitação, por exemplo, por atribuição de casa de património do Governo ou tornar-se proprietário pleno da casa de habitação sem encargo de amortização, já não deve continuar a beneficiar do subsídio de residência, sob pena de distorcer a intenção original do estabelecimento deste subsídio.
   
   No presente caso, o recorrido contraíu inicialmente um empréstimo bancário de HK$150.000,00, com a prestação mensal de HK$1.500,00 e o prazo de 15 anos, sendo hipotecado o imóvel comprado. O recorrido requereu o subsídio de residência com base nesta situação. Em Outubro de 2000, o recorrido voltou a hipotecar o imóvel ao banco invocando a razão de obras de decoração e conseguiu o empréstimo de HK$60.000,00. Nesta altura, o recorrido tinha ainda por amortizar HK$6.449,93 no primeiro empréstimo.
   Tal como foi referido, nos termos do art.º 203.º, n.º 4, al. b) do ETAPM, não estavam satisfeitos os requisitos de recepção do subsídio de residência, por o fim do segundo empréstimo do recorrido não ser a compra da casa habitada. Assim, não há violação de lei e deve ser mantido o acto impugnado que confirmou a decisão de reclamar a devolução do subsídio de residência indevidamente recebido pelo recorrido de Agosto de 2001 a Março de 2005.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso jurisdicional, revogando o acórdão recorrido e mantendo o acto impugnado.
   Custas do recurso contencioso e do presente recurso pelo recorrido com as taxas de justiça fixadas respectivamente em 5 e 4 UC.
   
   
   
   Aos 9 de Janeiro de 2008.






Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei

Processo n.° 3 / 2007 1