Processo n.º 29/2017 Data do acórdão: 2017-7-6 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– regra da experiência humana
– coabitação dos cônjuges
– compra de fracção autónoma
S U M Á R I O
Segundo a experiência da vida humana em normalidade de situações, os cônjuges verdadeiramente divorciados ou afectivamente separados entre si não têm, normalmente, mais vocação para comprar em nome de ambos uma fracção autónoma, antes pelo contrário, querem, normalmente, alienar quanto antes todo o bem imóvel então adquirido em nome de ambos.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 29/2017
(Recurso em processo penal)
Recorrentes: 1.ª arguida B (B)
2.º arguido C (C)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 165 a 170 do Processo Comum Colectivo n.º CR2-15-0412-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados a 1.ª arguida B e o 2.º arguido C, aí já melhor identificados, como co-autores materiais de um crime consumado de falsas declarações sobre a identidade, p. e p. pelo art.o 19.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, igualmente na pena de sete meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestar, por cada um deles, cinco mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau dentro de um mês contado do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Inconformados, vieram ambos os arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, em essência, na motivação una apresentada a fls. 183 a 187v dos presentes autos correspondentes, que o acórdão recorrido padece do erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), porquanto as provas produzidas dão para sustentar que eles não agiram com dolo, pelo que devem ambos ser absolvidos do crime por que vinham condenados.
Aos recursos, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 189 a 193 dos autos, no sentido de procedência da argumentação dos recorrentes, com consequente decisão de absolvição.
Subidos os recursos, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 207 a 208, opinando pelo não provimento dos recursos.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos e com pertinência à decisão, sabe-se que:
– O arguido é residente de Macau e a arguida é oriunda de Taiwan;
– Ficou provado em primeira instância, inclusivamente, o seguinte:
– os dois arguidos casaram-se civilmente em Macau em Março de 2009;
– em Abril de 2009, a arguida pediu o direito de residência em Macau;
– em Junho de 2009, os dois arguidos, munidos da certidão do casamento deles, foram registar o seu casamento em Taiwan;
– em finais de 2013, a arguida ficou grávida;
– em 4 de Março de 2014, os dois arguidos divorciaram-se em Taiwan;
– em 12 de Maio de 2014, os dois arguidos, ao tratarem das formalidades oficiais de renovação do direito de residência da arguida em Macau, declararam, na “Declaração de manutenção da relação conjugal”, que ainda mantinham a relação conjugal nos termos da lei e coabitam juntos;
– em 24 de Junho de 2014, a arguida deu à luz uma filha na Tailândia;
– é com o intuito de enganar as Autoridades Oficiais de Macau a fim de obter o direito de residência da arguida que esta e o arguido declararam que ainda mantinham a relação conjugal nos termos da lei e coabitam juntos, na Declaração acima referida, apesar de ambos terem sabido que já estavam divorciados.
– Conforme a certidão do registo predial junta pelos dois arguidos a fls. 149 a 155 dos autos, foi registada, a favor dos dois (como sendo casados no regime de comunhão de adquiridos), a aquisição, por escritura de 24 de Junho de 2016, uma fracção autónoma sita em Macau;
– Segundo a fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida:
– a mãe do arguido depôs na audiência de julgamento, dizendo que não sabia que os dois arguidos chegaram a divorciar-se, que os dois arguidos têm vindo a coabitar juntos, com bom relacionamento afectivo, que sabia que a neta seguiu o apelido materno porque a mãe da arguida estava doente, e que a arguida deu à luz a neta na Tailândia quando estava a viajar sozinha nesse País;
– uma testemunha de defesa depôs que sabe que os dois arguidos já estão casados há vários anos, que os dois nunca chegaram a ficar separados e que os dois têm bom relacionamento afectivo.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Sempre se diz que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Os dois recorrentes preconizam na sua motivação una de recurso que não agiram com dolo na prática de factos acusados, alegando que desde o casamento deles têm coabitado sempre como cônjuges com bom relacionamento afectivo, e que o divórcio feito em Taiwan só se destinou a possibilitar a adopção legal do apelido da arguida no nome completo da filha de ambos, para agradar a mãe da arguida que se encontrava incapacitada fisicamente, e que não trataram do divórcio em Macau porque nunca quiseram divorciar-se.
Nota-se, desde já, que na lógica desta versão fáctica invocada pelos dois arguidos recorrentes, estes dois acabaram por fazer um divórcio simulado em Taiwan!
Pois bem, para o presente Tribunal de recurso, depois de vistos criticamente e em global todos os elementos de prova constantes dos autos (atendendo mormente aos depoimentos da mãe do arguido e de outra testemunha de defesa e sobretudo ao facto de os dois arguidos terem comprado em conjunto uma fracção autónoma em Macau mesmo depois da data do divórcio deles em Taiwan) (e considerando especialmente a seguinte regra da experiência da vida humana em normalidade de situações segundo a qual os cônjuges verdadeiramente divorciados ou afectivamente separados entre si não têm, normalmente, mais vocação para comprar em nome de ambos uma fracção autónoma, antes pelo contrário, querem, normalmente, alienar quanto antes todo o bem imóvel então adquirido em nome de ambos), é patente que o Tribunal sentenciador violou essa regra da experiência da vida humana ao ter dado por provado – a despeito de as provas oferecidas (e acima referidas) pelos dois arguidos em primeira instância darem para provar cabalmente que eles dois têm vivido juntos como cônjuges, com bom relacionamento afectivo desde o casamento – que os dois arguidos, ao declararem perante as Autoridades Oficiais de Macau que ainda mantinham a relação conjugal nos termos da lei e coabitam juntos, declararam isto com o intuito de enganar as Autoridades Oficiais de Macau a fim de obter o direito de residência da arguida.
É que no caso dos autos, a prova produzida nos autos demonstra que os dois recorrentes têm coabitado juntos como cônjuges, pelo que na mente deles próprios (ante a vigência ainda do registo civil do casamento deles em Macau), eles, no momento da prestação da declaração em causa para as Autoridades Oficiais de Macau, mantêm ainda a relação conjugal nos termos da lei e coabitam juntos.
Assim sendo, procede o arguido vício do art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do CPP, e há que reenviar o processo para novo julgamento por outro Tribunal Colectivo no Tribunal Judicial de Base, na parte respeitante aos factos acusados n.os 13 a 15 (art.º 418.º, n.os 1 e 3, do CPP).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar providos os recursos, reenviando o processo para novo julgamento nos termos acima indicados.
Sem custas.
Macau, 6 de Julho de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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