Processo n.º 574/2017 Data do acórdão: 2017-7-13 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– queixa criminal
– solicitar auxílio da polícia
– contradição de fundamentos da escolha da pena
– art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Como da procuração então passada pelo sócio responsável da casa de penhor ofendida consta que são conferidos os poderes para um empregado dessa casa solicitar auxílio da Polícia Judiciária no caso de dação em penhor de colar de ouro falso, esses dizeres, na linguagem comum, já significam que são conferidos os poderes para um emgregado dessa casa apresentar a queixa criminal do caso à Polícia Judiciária.
2. Se a contradição de fundamentos da decisão condenatória recorrida na determinação da pena respeita somente ao juízo de valor do tribunal sentenciador na escolha da espécie da pena, e não incide, pois, sobre a matéria de facto julgada pelo mesmo tribunal, não pode ocorrer a contradição insanável da fundamentação prevista no art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal como vício possibilitador da reapreciação da matéria de facto, pelo que o tribunal de recurso pode decidir directamente da questão de determinação da pena como uma questão de direito.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 574/2017
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido em 28 de Abril de 2017 a fls. 684 a 697v (com um lapso de escrita rectificado oficiosamente a fl. 708) dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-16-0240-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como co-autor material, na forma consumada, de um crime de burla em valor elevado, p. e p. pelo art.º 211.º, n.os 1 e 3, do Código Penal (CP), na pena de um ano e seis meses de prisão, e de quatro crimes de burla simples, p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 1, do CP, na pena de dez meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas cinco penas parcelares, finalmente na pena única de três anos e seis meses de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), assacando a esse aresto recorrido, a título principal, o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), e, subsidiariamente, a contradição insanável da fundamentação como vício referido na alínea b) do n.º 2 deste artigo 400.º, e, fosse como fosse, o excesso na medida da pena, para rogar, a final, a sua absolvição total, ou, pelo menos, a nova medida da pena, com aplicação de penas não privativas de liberdade (cfr. com mais detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 714 a 728 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu o Ministério Público no sentido essencial de improcedência do recurso (cfr. a resposta de fls. 733 a 738v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 747 a 748v), opinando, principalmente, que procede o recurso na parte em que se preconiza que: (1) existe dúvida razoável acerca da presença física do arguido recorrente e do seu “co-arguido” B em Macau na data dos factos de burla ocorridos em 9 de Novembro de 2014, cerca das 10 horas e 23 minutos da noite, (2) há dúvida também na validade da declaração de ratificação da queixa de uma das casas de penhor ofendidas nos autos, (3) e há contradição insanável da fundamentação na decisão de aplicação da pena de prisão.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A fl. 12 dos presentes autos refere-se a uma procuração assinada em 29 de Outubro de 2014 pelo indivíduo chamado C como sócio da Casa de D (e com carimbo desta), a favor do empregado desta chamado E. E desta procuração consta que C confere poderes a este senhor para solicitar auxílio da Polícia Judiciária no caso de dação em penhor de colar de ouro falso pelo senhor B.
2. Conforme o teor do formulário n.º M/1 da Contribuição Industrial da Direcção dos Serviços de Finanças de Macau (a que alude a fl. 11 dos autos), C declarou nesse formulário a data provável de início da actividade da Casa de D como sendo em 23 de Janeiro de 2014.
3. Em 29 de Outubro de 2014, E declarou à Polícia Judiciária que representa a sua entidade patronal Casa de D para desejar procedimento criminal no caso de dação em penhor de um colar dourado feita por um senhor de Hong Kong chamado B (cfr. o teor do auto de participação criminal n.º 3582/2014 da Polícia Judiciária, a que aludem as fls. 8 a 8v dos autos).
4. A fl. 355 dos autos alude a uma declaração, feita em nome da Casa de D em 23 de Março de 2015 (e com carimbo desta), de ratificação da queixa exercida pelo empregado desta chamado E. Do teor dessa fl. 355 dos autos, vê-se que a assinatura feita nessa declaração como sendo do indivíduo C não condiz com a assinatura do indivíduo C então feita na procuração acima referida.
5. A Casa de D é uma das casas de penhor ofendidas nos crimes de burla simples por que vinha condenado o ora recorrente no acórdão recorrido.
6. De acordo com os registos de entradas/saídas fronteiriças (do Serviço de Migração) do arguido recorrente A (a que se referem as fls. 167 a 168 dos autos) e do indivíduo chamado B (a que se refere a fl. 161 dos autos):
– O recorrente entrou em Macau em 8 de Novembro de 2014 (às 21:10 horas) e saiu de Macau em 9 de Novembro de 2014 (às 02:32 horas) e depois entrou em Macau em 13 de Novembro de 2014;
– B entrou em Macau em 8 de Novembro de 2014 (às 21:10 horas) e saiu de Macau em 9 de Novembro de 2014 (às 02:32 horas) e depois entrou em Macau em 2 de Dezembro de 2014.
7. Conforme o conteúdo do talão de penhor n.º FXXXX da Casa de F (a que aludem as fls. 124 e 126 dos autos), B, com o cartão de identidade de residente de Hong Kong n.º H12XXXX(5), deu em penhor, às 22:23 horas do dia 9 de Novembro de 2014, um colar dourado, pelo preço de nove mil dólares de Hong Kong.
8. B tem cartão de identidade de residente permanente de Hong Kong n.º H12XXXX(5) (cfr. o teor de fls. 80 e 394 dos autos).
9. Conforme a certidão (junta a fls. 448 e seguintes dos autos) do acórdão proferido em 8 de Janeiro de 2016 (já transitado em julgado em 28 de Janeiro de 2016) no Processo n.º CR3-15-0232-PCC do 3.º Juízo do TJB, B ficou condenado em quatro anos de prisão, inclusivamente por causa do seu acto de dação em penhor de um colar de ouro (falso), por nove mil dólares de Hong Kong, na Casa de F no dia 9 de Novembro de 2014, cerca das 22:23 horas da noite (cfr. sobretudo o facto provado 9 descrito nesse acórdão, a que alude a fl. 459v dos autos). E segundo a fundamentação desse mesmo acórdão, o aí arguido B confessou francamente os factos imputados de burla.
10. O acórdão ora recorrido encontra-se proferido em 28 de Abril de 2017 a fls. 684 a 697v dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
11. Conforme a matéria de facto dada por provada no acórdão recorrido: em 9 de Novembro de 2014, cerca das 10 horas e 23 minutos da noite, B foi à Casa de F para dar em penhor um colar dourado (cfr. o facto provado 12).
12. O Tribunal recorrido afirmou, na fundamentação probatória da sua decisão condenatória, que:
– o arguido, na audiência de julgamento, negou a prática dos factos, e disse que conheceu B como um amigo seu em Hong Kong, e que negou ter praticado os actos criminosos dos autos em conjunto com B, nem ter mandado este para praticar esses factos;
– na audiência de julgamento, foram ouvidos como testemunhas as pessoas de diversas casas de penhor em causa, as quais falaram sobre os actos de dação em penhor praticados pelo indivíduo chamado B;
– na audiência de julgamento, chegou a ser ouvido como testemunha B, o qual, já julgado e condenado no outro processo penal, conseguiu dizer quantas casas de penhor é que ele foi às mesmas, quantos objectos é que ele deu aí em penhor, e quanto dinheiro é que ele recebeu de penhor, e disse que foi o arguido quem o mandou para praticar os crimes, porque ele devia dinheiro ao arguido, que como ele não tinha dinheiro para pagar a dívida ao arguido, tinha que obedecer às instruções do arguido para praticar crimes, e que os objectos dados em penhor em causa nos autos foram entregues pelo arguido a ele, para ele ir dá-los em penhor;
– na audiência de julgamento, foram ouvidos como testemunhas três investigadores da Polícia Judiciária, os quais disseram que da verificação dos registo de entradas/saídas fronteiriças do indivíduo B, se decobriu que o arguido chegou a acompanhar, por várias vezes, B a entrar em Macau e a sair de Hong Kong.
13. Segundo a fundamentação desse acórdão no tangente à medida da pena (cfr. o teor das linhas 7 a 12 da página 24 do respectivo texto, a fl. 695v dos autos): a aplicação de pena de multa, não privativa de liberdade, aos crimes de burla do arguido no caso dos autos já realiza de modo adequado as finalidades da punição.
14. Aos cinco crimes de burla por que vinha condenado o arguido, o Tribunal recorrido acabou por aplicar penas de prisão parcelares e pena única de prisão.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo.
Pela lógica sequencial própria das coisas, há que decidir primeiro da suscitada questão da (in)validade da queixa da Casa de D:
Vistos os elementos processuais já acima coligidos dos autos a respeito desse assunto, opina este Tribunal de recurso que já valeu totalmente, nos termos legais, a queixa então apresentada em 29 de Outubro de 2014 à Polícia Judiciária pelo empregado E desta Casa de Penhor, em nome desta, ao abrigo da procuração a si passada no mesmo dia pelo sócio C desta Casa de Penhor, sócio este considerado responsável por esta Casa de Penhor (dado o teor da declaração, então por ele assinada e apresentada à Direcção dos Serviços de Finanças, da data provável do início de actividade desta Casa de Penhor).
É que nessa procuração, já consta que são conferidos os poderes para o empregado desta Casa de Penhor solicitar auxílio da Polícia Judiciária no caso de dação em penhor de colar de ouro falso.
Sendo certo que na linguagem comum dos leigos do Direito, tal expressão (solicitar auxílio da Polícia Judiciária no caso de dação em penhor de colar de ouro falso) significa a apresentação da queixa à Polícia Judiciária. De facto, se não pretendesse apresentar queixa criminal do caso, por quê é que essa Casa de Penhor teria decidido em mandar um seu empregado para solicitar auxílio à Polícia no caso?
Daí que independentemente de mais indagação por desnecessária, é de entender que já se encontra legalmente exercido o direito de queixa logo no dia 29 de Outubro de 2014 pela Casa de D.
E agora do vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido a título principal pelo recorrente ao acórdão ora recorrido:
Para sustentar a existência deste vício, o recorrente preconizou veementemente, na sua motivação, que desde logo foi dúbia a presença física em Macau do indivíduo chamado B na noite de 9 de Novembro de 2014.
Pois bem, depois de vistos de modo crítico e em global todos os elementos probatórios dos autos, realiza o presente Tribunal de recurso que não se mostra patente que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos objecto probando do processo, tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor das provas, violado quaisquer regras da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, sendo, pois, ainda razoável o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal recorrido, sob aval do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.o 114.o do CPP, sendo de salientar que:
– os registos de entradas/saídas fronteiriças desse senhor B feitos pelo Serviço de Migração dão naturalmente para provar as horas exactas de entradas/saídas fronteiriças dessa pessoa, se essas ocorrências de entradas/saídas tiverem conseguido ser registadas;
– contudo, no caso concreto dos autos, desses registos – confrontados quer com o teor do talão de dação em penhor daquela noite de 9 de Novembro de 2014 na Casa de F de Macau, quer com os dados do cartão de identidade de Hong Kong do senhor B, quer com o teor do depoimento prestado por ele perante o Tribunal recorrido (teor do depoimento este já referido na fundamentação probatória do acórdão recorrido), e quer também com o teor da fundamentação fáctica do acórdão condenatório do outro processo penal de que esse indivíduo Ng era arguido com confissão franca dos factos de burla e em que ficou o mesmo condenado pela prática de acto de burla daquela noite de 9 de Novembro de 2014 contra a Casa de F – já não pode resultar provada cabalmente a não presença física desse senhor Ng em Macau nessa noite nesta Casa de Penhor.
Do acima exposto, resulta improcedente a pretensão do recorrente da sua absolvição penal.
Por fim, o recorrente não concorda também com as penas aplicadas no acórdão recorrido, rogando pena final não privativa de liberdade, imputando especialmente ao aresto recorrido a existência de contradição insanável aludida no art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do CPP.
Pois bem, ante os dados já acima coligidos na parte II do presente acórdão de recurso, verifica-se que é patente a contradição na fundamentação do acórdão recorrido no tocante à decisão de opção entre a pena de multa e a pena de prisão.
Entretanto, como essa contradição de fundamentos da determinação da pena respeita somente ao juízo de valor do Tribunal recorrido na escolha da espécie da pena, e não incide, como tal, sobre a matéria de facto julgada pelo mesmo Tribunal, não pode ocorrer a contradição insanável da fundamentação prevista no art.º 400.º, n.º 2, alínea b), do CPP como vício possibilitador da reapreciação da matéria de facto.
Assim sendo, há que decidir directamente, porquanto é possível na presente lide recursória, da questão de determinação da pena como uma questão de direito.
Tendo em conta as prementes necessidades da prevenção geral do tipo-de-ilícito de burla em causa, especialmente quando violado por pessoas vindas do exterior de Macau, não é de optar, em sede do art.o 64.o do CP, pela pena de multa em detrimento da pena de prisão, pois se afigura que no caso dos autos só a pena de prisão é que pode realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição na vertente da prevenção geral.
E no concernente à medida concreta da pena: ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal a quo e descritas como provadas no texto da decisão recorrida, e à luz dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, 65.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.os 1 e 2, do CP, não se vislumbra que sejam excessivas as cinco penas de prisão parcelares e a pena única de prisão como tal achadas no acórdão recorrido dentro das correspondentes molduras penais parcelares e única aplicáveis, pelo que há que respeitá-las na íntegra.
Em síntese, naufraga todo o pedido formulado pelo recorrente na sua motivação, sendo, assim, de manter na mesma a decisão condenatória concretamente tomada pelo Tribunal recorrido, por razões acima tecidas.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o pedido formulado pelo recorrente no recurso, mantendo toda a decisão condenatória já tomada no acórdão recorrido.
Custas do recurso pelo recorrente, com quatro UC de taxa de justiça e quatro mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
A presente decisão é irrecorrível nos termos do art.º 390.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Comunique às entidades ofendidas identificadas no dispositivo do acórdão recorrido.
Macau, 13 de Julho de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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