Processo nº 592/2017 Data: 13.07.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “auxílio”.
Crime de “acolhimento”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
In dubio pro reo.
Qualificação jurídica.
SUMÁRIO
1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.
2. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
3. O princípio “in dubio pro reo” só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”.
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
4. Verificando-se que com a sua conduta o arguido não concorreu, por qualquer forma, para a “entrada em Macau” de imigrante clandestino, tendo antes aguardado pela sua chegada a Macau para o receber e transportar, adequada não é a sua condenação como autor da prática de um crime de “auxílio”, do art. 14° da Lei n.° 6/2004, devendo alterar-se a qualificação jurídica operada para o crime de “acolhimento” do art. 15° da mesma Lei.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 592/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar o arguido A, com os sinais dos autos, como co-autor da prática de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 6 anos de prisão; (cfr., fls. 380 a 386 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu; (cfr., fls. 398 a 415).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., neles subiu um (outro) “recurso interlocutório” pelo mesmo arguido interposto, tendo como objecto dois despachos pelo Tribunal proferidos em audiência de julgamento, e com os quais se indeferiu um pedido de “autorização para o visionamento de mensagens de WECHAT do telemóvel ao arguido apreendido”, e um outro de “acareação entre duas testemunhas e entre estas e o recorrente”; (cfr., fls. 372 a 378).
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Aos (2) recursos respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência; (cfr., fls. 391 a 393 e 417 a 419-v).
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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“1. Do recurso interlocutório
Na Motivação de fls.370 a 378 dos autos, o recorrente assacou as nulidades previstas na alínea d) do n.°2 e do n.°1 do art.107° do CPP aos dois despachos proferidos pela MMa Juiz Presidente do colectivo (cfr. fls.348 verso e 349 dos autos), determinando respectivamente:
De um lado, 證人的聲明是否可以採信,是屬於自由心證的範圍。至於有關海關人員在調查過程之中是否有其他微信進入,而相關的微信是否是案件控訴書中第4段所述的一段文字,一段視頻,一段語音都是屬於自由心證所判斷的範圍。而在調查過程當中是否有其他人發出訊息或微信給嫌犯有關證據對於發現事實真相不具重要性,而有關申請措施只會拖慢訴訟程序的進行,所以予以駁回。
De outro, 根據《刑事訴訟法典》第132條的規定,透過對質之證據前提: “各共同嫌犯之間、嫌犯與輔助人之間、各證人之間、各證人之間或證人與嫌犯及輔助人之間可進行對質,只要各人所作聲明之間出現矛盾,且對質被認為對發現事實真相屬有用者。” 法庭認為嫌犯A、證人B和證人C的聲明不同之處,透過對質並非重要及有用,而只會拖慢訴訟程序的進行,法庭駁回對質的申請,作出通知。
Antes de mais, acompanhamos a prudente observação da ilustre colega que apontou: 值得強調的是,一方面上述兩名證人均異口同聲表示,曾查看嫌犯的手提電話,發現涉案的短片已被下載至手提電話。同時,嫌犯正身處短片所顯示的地點。因此,有強烈跡象顯示嫌犯操作其手提電話下載該短片,並且已經查閱該短片,方會迅速去到影像所示的地點停車。嫌犯經查閱短片後應約來到案發現場接載偷渡客人,即場被海關人員截獲。在這之後,嫌犯的手提電話是否仍然有其他信息進人,已經並不重要。另一方面,證人C聲稱聽到幾個訊息的響聲,由於涉案的手提電話是由證人B保管,證人C只是聽到響聲,並沒有目睹涉案手提電話有訊息進入,而且現場有多名人士均有手提電話,單憑聽聲亦難以確定是誰人的手提電話在響。基此,即使查閱涉案手提電話,亦不能從中推斷涉案的短片是在嫌犯被截獲之後才收到的。
Pois bem, não existe oposição ou contradição entre o depoimento do recorrente com os das 2ª e 3ª testemunhas de nomes respectivamente B e C, o que há na realidade é, em bom rigor, apenas umas desconformidades sobre alguns pormenores.
Sendo assim, não se descortinam essencialidade ou relevância das duas diligências requeridas pelo recorrente para a descoberta da verdade material, daí decorre que os apontados despachos proferidos pela MMa Juiz Presidente do colectivo não enfermam da nulidade prevista na alínea d) do n.°2 e do n.°1 do art.107° do CPP.
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2. Do recurso do acórdão final
Na Motivação de fls.398 a 415 dos autos, o recorrente invocou erro de julgamento consubstanciado num incorrecto enquadramento jurídico dos factos provados no art.14° da Lei n.°6/2004, a insuficiência da matéria de facto provada e, finalmente, o erro de direito traduzido na aplicação de penas excessivas e desproporcionadas.
Na actual ordem jurídica de Macau, vê-se solidamente consolidada a jurisprudência que proclama (a título meramente exemplificativo, vide. Acórdão do TUI no processo n.°12/2014): «Para que se verifique o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é necessário que a matéria de facto provada se apresente insuficiente, incompleta para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada, ou porque impede a decisão de direito ou porque sem ela não é possível chegar-se à conclusão de direito encontrada.»
De outro lado, vale ter presente que Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts.339.° e 340.° do Código de Processo Penal.
Para se alcançar a acertada compreensão deste conceito, importa ainda não olvidar a sábia advertência do Venerando TUI no seu Processo n.°13/2001: O recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador.
Posto isto, e voltando ao caso sub iudice, temos por concludente e indiscutível que a matéria de facto provada pelo Tribunal a quo se integra exactamente na previsão do n.°2 do art.14° da Lei n.°6/2004, e a subsunção (qualificação) jurídica é acertada e correcta.
E seja como for, acreditamos que no vertente caso, não existe nem o assacado erro de julgamento, nem a insuficiência para a decisão da matéria do facto, e a invocação do princípio de in dúbio pro reo para abonar o pedido de absolvição não faz sentido algum.
Nos termos da moldura penal consagrada no n.°2 do art.14° da Lei n.°6/2004, e tendo em conta a gravidade da ilicitude e, sobretudo, a forte intensidade do dolo do arguido, inclinamos a entender que a pena de seis anos de prisão cominada pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido não é excessiva ou desproporcionada.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 434 a 435-v).
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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 382 a 383, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (nenhum facto tendo ficado por provar).
Do direito
3. Como se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..
Um, (o “primeiro”), tendo como objecto duas decisões interlocutórias pelo Tribunal a quo proferidas em audiência de julgamento e que atrás se deixaram explicitadas, e, o outro, (o “segundo”), do Acórdão a final do julgamento prolatado.
–– Ponderando nas “questões” colocadas em sede dos ditos recursos, mostra-se de começar pelo “primeiro” (pois que, com a sua procedência, prejudicado fica o conhecimento do recurso do Acórdão).
Vejamos.
Em causa estão dois pedidos pelo arguido deduzidos em audiência de julgamento.
Um de “visionamento (do registo) de mensagens do seu telemóvel”, e outro, para que se procedesse a duas “acareações”.
Porém, cremos que não se pode reconhecer razão ao ora recorrente.
Com efeito, abordando matéria relacionada com o “princípio da investigação” consagrado no art. 321° do C.P.P.M. teve já este T.S.I. oportunidade de consignar que em conformidade com o mesmo serão produzidos os meios de provas não proibidos por lei, cuja indispensabilidade e utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa se confirmem em função do objecto do processo, e daí que nos números 3 e 4 do preceito se estipulem os pressupostos da rejeição da produção de prova (ou do respectivo meio), da sua ponderação como irrelevante ou supérflua, da sua inadequação notória, da impossibilidade ou discutibilidade da sua obtenção ou da finalidade meramente dilatória do respectivo pedido; (nesse sentido, cfr., o Ac. deste T.S.I. de 08.06.2017, Proc. n.° 367/2017).
No caso, pretende o recorrente o visionamento das mensagens que recebeu no seu telemóvel de marca “XIAO MI” após o mesmo lhe ter sido apreendido.
Ora, como com mediana clareza se apresenta de concluir, não se vê nenhuma utilidade na pretendida diligência, pois que provado está que o arguido, tinha vários telemóveis, e que foi através de um outro – “MOTOROLA”, que em 16.02.2016, estabeleceu contacto com um outro indivíduo do interior da China, acordando um plano para, a troco de vantagens monetárias, receber imigrantes clandestinos que aquele “encaminhasse” para Macau, o que veio efectivamente a suceder no dia 21.04.2016, em que foi interceptado pelas autoridades policiais locais a conduzir um táxi com 3 passageiros, dos quais, 2 conseguiram fugir sem serem identificados, vindo-se a apurar que o 3 era uma imigrante ilegal acabada de chegar a Macau através do “apoio” do referido indivíduo.
E, perante isto, evidente se nos apresenta a improcedência do recurso na parte em questão, pois que não se vislumbra – nem o recorrente concretiza a – “necessidade” ou “utilidade” em se visionar as mensagens recebidas após a sua intercepção e apreensão do aludido telemóvel de marca “XIAO MI”.
Passemos para as requeridas “acareações” entre duas testemunhas e entre estas testemunhas e o ora recorrente.
Também aqui, (e como já se referiu), o recurso não procede.
Com efeito, as pretendidas “acareações” estão também relacionadas com as atrás mencionadas mensagens pelo recorrente recebidas após a sua intercepção e apreensão do telemóvel.
E, assim sendo, além do que já se deixou consignado, há que dizer que tendo as testemunhas prestado depoimento em audiência de julgamento, (cfr., fls. 348), inquestionável é que teve o recorrente (toda a) oportunidade de pedir às mesmas (todos) os esclarecimentos que entendesse adequados, (sendo de notar também que os depoimentos em questão, foram, como não podia deixar de ser, apreciados em conformidade com o estatuído no art. 114° do C.P.P.M., ou seja, de acordo com o “princípio da livre apreciação da prova”), necessário ou útil não parecendo uma “acareação” para o efeito.
Dito isto, e necessárias não nos parecendo mais alongadas considerações sobre as questões tratadas, impõe-se decidir pela improcedência do presente recurso.
–– Continuemos, avançando-se agora para o “recurso do Acórdão”.
Aqui, (e tanto quanto se consegue alcançar), coloca o arguido as seguintes questões: “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova”, “in dubio pro reo”, “qualificação jurídica da matéria de facto” e “excesso de pena”, (ainda que não nesta mesma ordem).
Vejamos.
Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016, de 16.03.2017, Proc. n.° 164/2017 e de 30.03.2017, Proc. n.° 169/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).
Como recentemente decidiu o T.R. de Coimbra:
“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).
No caso, dúvidas não há que o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando a que do julgamento resultou “provada”, (inexistindo matéria “não provada”), e fundamentando, em nossa opinião, adequadamente, a sua decisão, nada de relevante tendo ficado por apurar ou decidir nesta sede.
Aliás, da motivação de recurso apresentada, constata-se que nem o próprio recorrente indica qual a “matéria em falta”, afigurando-se-nos que confunde o vício em questão com a “(in)suficiência de prova” e com a “qualificação jurídico-penal da matéria de facto provada”, mais não nos parecendo assim de consignar sobre o vício em questão.
Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, temos considerado que o mesmo apenas existe “quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016, de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017 e de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017, de 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017 e de 15.06.2017, Proc. n.° 249/2017).
E, tal como em relação à assacada “insuficiência”, evidente é também que inexiste o assacado “erro”, pois que o Tribunal a quo não decidiu em desrespeito a nenhuma “regra sobre o valor das provas tarifadas”, “regra de experiência” ou “legis artis”, tendo, aliás, proferido decisão em total conformidade com tais regras, nenhuma censura merecendo o decidido.
–– Por sua vez, e no que ao “princípio in dubio pro reo” diz respeito, temos considerado que “mesmo se identifica com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.03.2017, Proc. n.° 867/2016, de 11.05.2017, Proc. n.° 344/2017 e de 15.06.2017, Proc. n.° 462/2017).
Segundo o princípio “in dubio pro reo”, «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo – quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.° 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, Proc. n.° 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
In casu, não se divisa que em momento algum tenha o Tribunal ficado com “dúvidas” e/ou “hesitações” e que, mesmo assim, tenha proferido decisão desfavorável ao arguido, inexistindo, desta forma, qualquer desrespeito ao aludido princípio.
Passemos agora para a “qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido.
Como se viu, foi o arguido condenado como co-autor de 1 crime de “auxílio”.
Nos termos do art. 14° da Lei n.° 6/2004:
“1. Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 5 a 8 anos”.
Por sua vez, prescreve o art. 15° da mesma Lei que:
“1. Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.
E, ponderando na factualidade dada como provada e ao estatuído nos transcritos art. 14° e 15° da Lei n.° 6/2004, cremos que, aqui, tem o recorrente razão.
De facto, a sua conduta, de “receber” e “transportar”, (já) em Macau, imigrante clandestino, não se subsume à norma do art. 14°, onde se pune uma conduta que, de qualquer forma, concorra “para a entrada em Macau de imigrante clandestino”, incorrecta sendo assim a sua condenação como co-autor de 1 crime de “auxílio”, havendo que se rectificar tal decisão em conformidade, condenando-se o mesmo recorrente como co-autor da prática de 1 crime de “acolhimento” do art. 15°, n.° 2 do referido diploma legal.
Aqui chegados, vejamos da pena a aplicar ao recorrente.
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Por sua vez, e atento o teor art. 65° do mesmo código, onde se fixam os “critérios para a determinação da pena”, tem este T.S.I. entendido que “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 09.03.2017, Proc. n.° 180/2017, de 23.03.2017, Proc. n.° 241/2017 e de 08.06.2017, Proc. n.° 310/2017).
No caso, muito intenso é o dolo – directo – do arguido, pois que, para além de agir de acordo com um plano préviamente traçado, sendo agente da P.S.P., e estando ao tempo da prática dos factos suspenso de funções e submetido no âmbito de um outro processo penal à medida de coacção de “apresentação periódica”, (mesmo assim) não se coibiu de desenvolver a conduta nestes autos dada como provada e já referida.
Por sua vez, e como se apresenta evidente, face à “personalidade” pelo arguido revelada, (negando os factos e não mostrando arrependimento), e à “natureza” do crime em questão, fortes são as necessidades de prevenção criminal especial e geral, a reclamar adequada sanção.
Nesta conformidade, crê-se que justa e adequada é uma pena de 3 anos e 9 meses de prisão.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, julga-se improcedente o “recurso interlocutório”, concedendo-se parcial provimento ao recurso do Acórdão do T.J.B., alterando-se a qualificação jurídico-penal efectuada nos exactos termos consignados, e ficando o ora recorrente condenado pela prática de 1 crime de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.
Pelo seu decaimento, pagará o arguido a taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Após trânsito, devolvam-se os presentes autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 13 de Julho de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 592/2017 Pág. 28
Proc. 592/2017 Pág. 27