Processo n.º 503/2017 Data do acórdão: 2017-7-20 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– cúmulo jurídico das penas
– conhecimento superveniente do concurso
– pressuposto temporal
– art.º 72.º, n.º 1, do Código Penal
– art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal
S U M Á R I O
1. Segundo o art.º 72.º, n.º 1, Código Penal (CP), respeitante ao conhecimento superveniente do concurso: se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do art.º 71.º do mesmo Código.
2. Para que o regime da pena do concurso seja ainda aplicável aos casos em que o concurso só venha a ser conhecido supervenientemente, é necessário, para já, a título de pressuposto temporal, que o crime de que haja só agora conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para efeito da pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento.
3. Por isso, o momento temporal decisivo para a determinação superveniente da pena de concurso em sede do art.o 72.o, n.o 1, do CP é o da prática do crime novo antes da anterior condenação, e não antes do trânsito em julgado desta condenação.
4. Mesmo que não se verifiquem todos os pressupostos do conhecimento superveniente do concurso, pode ter lugar a feitura do cúmulo jurídico exclusivamente à luz do art.o 71.o do CP.
5. O momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico em sede regulada no art.o 71.o do CP é o trânsito em julgado da decisão condenatória, com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 503/2017
(Autos de recurso penal)
(Reclamação da decisão sumária do recurso para conferência)
Arguido recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a decisão judicial proferida em 8 de Março de 2017 a fl. 220 do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.º CR2-15-0274-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, sobre a liquidação das suas penas (por força da qual foi decidido somar matematicamente a pena única de três anos de prisão então aplicada nos presentes autos correspondentes à pena única de um ano e seis meses de prisão imposta no anterior Processo n.º CR3-12-0011-PCS), veio o arguido A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, através da motivação apresentada a fls. 228 a 234 dos autos.
Por decisão sumária do relator, exarada em 30 de Junho de 2017 a fls. 264 a 267 dos autos, foi rejeitado o recurso em questão.
Veio agora o mesmo arguido recorrente reclamar dessa decisão para conferência, através do pedido de fls. 271 a 276.
A Digna Procuradora-Adjunta opinou, a fl. 280 a 280v, pela improcedência manifesta da reclamação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
A decisão sumária do recurso do arguido ora sob reclamação tem o seguinte teor essencial:
– <<[…]
1. Por acórdão proferido em 11 de Outubro de 2016 a fls. 172 a 176v do Processo Comum Colectivo n.º CR2-15-0274-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) e já transitado em julgado em 31 de Outubro de 2016, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material de três crimes consumados de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de dois anos e seis meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas três penas, finalmente na pena única de três anos de prisão efectiva.
Na sequência do trânsito em julgado desse acórdão, procedeu-se materialmente à liquidação dessa pena única de prisão, por despacho judicial da fl. 191 dos presentes autos penais correspondentes.
Ulteriormente, em 20 de Janeiro de 2017, foi junta a fls. 214 a 217 dos presentes autos a certidão do despacho judicial proferido em 7 de Dezembro de 2016 (com texto disponibilizado a partir de 12 de Dezembro de 2016), com trânsito em julgado em 16 de Janeiro de 2017, do Processo Comum Singular n.º CR3-12-0011-PCS do 3.º Juízo Criminal do TJB, revogatório da suspensão, por dois anos, da execução da pena única de um ano e seis meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao mesmo arguido inicialmente nesse Processo n.o CR3-12-0011-PCS e no Processo Comum Singular n.º CR4-11-0434-PCS.
Em face disso, proferiu-se, em 8 de Março de 2017 a fl. 220 dos presentes autos, à liquidação judicial das penas do arguido, somando matematicamente a pena única de três anos de prisão aplicada anteriormente nos presentes autos à pena única de um ano e seis meses de prisão imposta naquele Processo n.º CR3-12-0011-PCS, devendo o arguido vir a cumprir, ao total, quatro anos e seis meses de prisão.
Inconformado com esse último despacho judicial de liquidação das penas, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, em essência, na motivação apresentada a fls. 228 a 234 dos presentes autos, que:
– deve ser feito o cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente referido no art.º 72.º, n.º 2, do Código Penal (CP), das penas dos dois processos penais em causa, com cumprimento necessariamente também do art.º 454.º do Código de Processo Penal (CPP), com aplicação de nova pena de cúmulo jurídico em medida mais leve;
– e fosse como fosse, teria sido violado no despacho recorrido o disposto no art.º 454.º, n.os 1 e 2, do CPP, por falta de realização da audiência prévia aí referida, antes de emissão da decisão ora recorrida, problema esse que configuraria uma nulidade insanável prevista no art.º 106.º, alínea c), do CPP.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 248 a 253v dos autos, no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subido o recurso, a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer a fls. 261 a 262v, opinando pela manifesta improcedência do recurso.
Cumpre decidir, nos termos permitidos pelo art.o 407.o, n.o 6, alínea b), do CPP.
2. Do exame dos autos e com pertinência à decisão, sabe-se que:
– No Processo Comum Singular n.º CR3-12-0011-PCS do TJB, o ora recorrente ficou condenado, em 15 de Março de 2012, por três crimes, praticados respectivamente em 27 de Agosto de 2010, 27 de Junho de 2011 e 25 de Junho de 2011, na pena única de um ano de prisão, suspensa na execução por dois anos;
– No Processo Comum Singular n.º CR4-11-0434-PCS do TJB, o ora recorrente ficou condenado, em 5 de Março de 2012, por dois crimes, praticados identicamente em princípios de Janeiro de 2010, na pena única de nove meses de prisão, suspensa na execução por um ano;
– Ulteriormente, por despacho judicial transitado em julgado em 11 de Junho de 2012, foi feito o cúmulo jurídico das penas desses dois processos penais nos termos do art.º 72.º do CP, passando o recorrente a ser condenado na pena única de um ano e seis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos;
– Entretanto, por acórdão proferido em 11 de Outubro de 2016 no presente Processo Comum Colectivo n.º CR2-15-0274-PCC, transitado em julgado em 31 de Outubro de 2016, ficou condenado o recorrente por três crimes de acolhimento, descobertos pela Polícia como praticados em 29 de Abril de 2014, na pena única de três anos de prisão efectiva;
– Em face dessa última condenação, por despacho judicial proferido em 7 de Dezembro de 2016, transitado em julgado em 16 de Janeiro de 2017, no Processo n.º CR3-12-0011-PCS, foi decidida a revogação da suspensão da referida pena única de um ano e seis meses de prisão;
– Na sequência disso, foi proferido, em 8 de Março de 2017 a fl. 220 do presente subjacente Processo n.º CR2-15-0274-PCC, o despacho, ora recorrido, de liquidação das penas do recorrente, somando matematicamente a pena única de três anos de prisão anteriormente imposta nos presentes autos à pena única de um ano e seis meses de prisão fixada no acima referido Processo n.º CR3-12-0011-PCS;
– As decisões finais penais condenatórias proferidas no âmbito dos Processos n.os CR3-12-0011-PCS e CR4-11-0434-PCS transitaram em julgado antes da data da prática dos três crimes em causa no presente subjacente Processo n.º CR2-15-0274-PCC.
3. Sempre se diz que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, à instância de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, é de decidir, desde já, da questão da alegada devida operação do cúmulo jurídico das penas por conhecimento superveniente do concurso nos termos do art.º 72.º, n.º 2, do CP.
No caso, segundo os elementos fácticos acima coligidos no ponto 2 da presente decisão sumária do recurso, os três crimes de acolhimento em causa no presente subjacente Processo n.º CR2-15-0274-PCC foram descobertos como praticados em 29 de Abril de 2014, todos posteriormente (e por isso, nunca anteriormente) à data de condenações penais (em Março de 2012) do recorrente nos Processos n.os CR3-12-0011-PCS e CR4-11-0434-PCS.
Assim sendo, mesmo que as condenações desses três processos penais já tenham transitado em julgado, é manifestamente improcedente a tese do recorrente de devida feitura do cúmulo jurídico por conhecimento superveniente nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do CP, ex vi do n.º 2 deste artigo.
Com efeito, a respeito do pressuposto temporal para a feitura de cúmulo jurídico, é de relembrar aqui a seguinte posição jurídica já veiculada materialmente no acórdão do TSI de 10 de Outubro de 2014 no Processo n.º 533/2014:
– 1) segundo o art.º 72.º, n.º 1, do CP, respeitante ao conhecimento superveniente do concurso: se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do art.º 71.º do mesmo Código;
– 2) para que o regime da pena do concurso seja ainda aplicável aos casos em que o concurso só venha a ser conhecido supervenientemente, é necessário, para já, a título de pressuposto temporal, que o crime de que haja só agora conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para efeito da pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento;
– 3) por isso, o momento temporal decisivo para a determinação superveniente da pena de concurso em sede do art.o 72.o, n.o 1, do CP é o da prática do crime novo antes da anterior condenação (e não antes do trânsito em julgado desta condenação);
– 4) e mesmo que não se verifiquem todos os pressupostos do conhecimento superveniente do concurso, pode ter lugar a feitura do cúmulo jurídico exclusivamente à luz do art.o 71.o do CP;
– 5) o momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico em sede regulada no art.o 71.o do CP é o trânsito em julgado da decisão condenatória, com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas.
Improcede, pois, evidentemente a tese jurídica do recorrente, por ela contrariar o critério do momento temporal referido nas alíneas 1) a 3).
E como uma observação à parte: Haveria no caso lugar à determinação do cúmulo jurídico exclusivamente à luz do art.º 71.º do CP? A resposta também seria negativa por força do critério vertido nas alíneas 4) a 5) acima, porque todos os três crimes de acolhimento em causa no subjacente Processo n.º CR2-15-0274-PCC foram praticados depois do já trânsito em julgado das condenações dos crimes nos outros dois processos anteriores.
Do acima visto e analisado, resulta logicamente precludida a necessidade do conhecimento de todo o remanescentemente invocado na motivação do recurso.
É, pois, de rejeitar o recurso, nos termos dos art.os 407.º, n.º 6, alínea b), e 410.º, n.º 1, do CPP, sem mais indagação por ociosa, atento o espírito do n.º 2 desse art.º 410.º deste diploma.
4. Nos termos expostos, decide-se em rejeitar o recurso.
Pagará o recorrente as custas do seu recurso, com duas UC de taxa de justiça e três UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso).
Macau, 30 de Junho de 2017.
[…]>> (cfr. o teor da decisão sumária do recurso de fls. 264 a 267 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
O art.º 407.º, n.º 8, do CPP permite a reclamação para conferência do despacho proferido pelo relator nomeadamente nos termos do n.º 6 desse artigo.
Pois bem, vistos todos os elementos processuais pertinentes já coligidos no ponto 2 do texto da decisão sumária ora sob reclamação pelo recorrente, e também as normas legais aí citadas, é de manter, sem mais indagação por ociosa, essa decisão sumária, nos seus precisos termos, por estar conforme com tais normas legais e adequada perante tais elementos processuais.
Nota-se que o arguido considerou que a decisão sumária do recurso não tinha analisado a questão da aplicabilidade do disposto do art.º 72.º, n.º 2, do CP ao seu caso concreto.
Mas, esta alegação dele é infundada. Para constatar isto, basta chamar a atenção do arguido para as seguintes passagens do texto da decisão sumária:
– <<[…] é de decidir, desde já, da questão da alegada devida operação do cúmulo jurídico das penas por conhecimento superveniente do concurso nos termos do art.º 72.º, n.º 2, do CP.
No caso, segundo os elementos fácticos acima coligidos no ponto 2 da presente decisão sumária do recurso, os três crimes de acolhimento em causa no presente subjacente Processo n.º CR2-15-0274-PCC foram descobertos como praticados em 29 de Abril de 2014, todos posteriormente (e por isso, nunca anteriormente) à data de condenações penais (em Março de 2012) do recorrente nos Processos n.os CR3-12-0011-PCS e CR4-11-0434-PCS.
Assim sendo, mesmo que as condenações desses três processos penais já tenham transitado em julgado, é manifestamente improcedente a tese do recorrente de devida feitura do cúmulo jurídico por conhecimento superveniente nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do CP, ex vi do n.º 2 deste artigo.
Com efeito, a respeito do pressuposto temporal para a feitura de cúmulo jurídico, é de relembrar aqui a seguinte posição jurídica já veiculada materialmente no acórdão do TSI de 10 de Outubro de 2014 no Processo n.º 533/2014:
[…]>> (cfr. o teor da página 5 do texto da decisão sumária, a fl. 266 dos autos, com o sublinhado acima só agora posto).
Na verdade, o art.º 72.º, n.º 2, do CP só fala do trânsito em julgado em separado de condenações de crimes.
E na decisão sumária do recurso, já se julgou que <>.
Daí que não pode o arguido vir assacar à decisão sumária do recurso a falta de análise do disposto no n.º 2 do art.º 72.º do CP. Aliás, a chave da questão está no n.º 1 do art.º 72.º do CP, dado que tal como já se disse acima, o n.º 2 deste preceito trata apenas do requisito do trânsito em julgado em separado das condenações de crimes.
E uma vez ficou decidido como já se decidiu na decisão sumária do recurso (com invocação da tese jurídica veiculada no acórdão de 10 de Outubro de 2014 no Processo n.º 533/2014 a propósito da indagação do pressuposto temporal para a feitura de cúmulo jurídico), fica realmente precludida a necessidade do conhecimento de todo o remanescentemente invocado na motivação do recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação do recorrente, mantendo a decisão sumária de 30 de Junho de 2017.
Para além das custas e montante referidos no ponto 4 do texto da decisão sumária, pagará ainda o recorrente as custas do presente processado da reclamação (com duas UC de taxa de justiça).
Macau, 20 de Julho de 2017.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 503/2017 Pág. 14/14