Processo n.º 825/2016
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data : 27/Julho/2017
ASSUNTOS:
- Revisão de sentença
- Requisitos formais necessários para a confirmação
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau
- Compatibilidade com a ordem pública
SUMÁRIO:
1- Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
2- Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
3- Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
4- É de confirmar a sentença proferida por um Tribunal de Taiwan que decretou um divórcio litigioso, não se vislumbrando qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública ou qualquer obstáculo à revisão dessa sentença.
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 825/2016
Data : 27 /Julho/2017
Requerente : - A
Requerido : - B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A, com melhor identificação nos autos, vem propor acção de revisão da decisão do Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan, que homologou a dissolução do seu casamento. por divórcio, com B, também ela mais bem identificado nos autos, nos termos seguintes:
1º
Em 30 de Outubro de 2002, A e B contraíram casamento civil em Macau sob o regime da comunhão geral de bens, conforme Doc. 1 que ora se junta.
2º
Sucede que, o casamento da Requerente e do Requerido foi dissolvido por divórcio registado em 21 de Julho de 2016, em Taiwan, China.
3.°
O divórcio entre a Requerente e Requerido foi decretado por sentença proferida em 06 de Junho de 2016 pelo Tribunal Civil da Província de Tainan, Taiwan, transitada em julgado em 04 de Julho de 2016, e registada em 21 de Julho de 2016 (ano 105 do calendário de Taiwan) em 戶政事務所 (poderá traduzir-se como a "Conservatória do Registo dos Assuntos de Família"), da cidade de Tainan, Taiwan, China, conforme resulta dos Docs. 2, 3 e 4 que ora se juntam, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
4.°
Ora, na constância do casamento, Requerente e Requerido adquiriram o único bem comum, a saber:
- fracção autónoma designada por "Z7", para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs XXX a XXX da Avenida Sir Anders Ljungsttedt, XXX a XXX da Rua Cidade de Santarém. XXX a XXX da Rua Francisco H. Fernandes, e XXX a XXX da Alameda Dr. Carlos D'Assumpção, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n. ° XXXXX, inscrito na matriz sob o n° XXXXX, com o valor matricial de MOP$779.560,00 (Doc. 5).
5.°
O imóvel acima referido não pode ser administrado e partilhado entre Requerente e Requerido enquanto a referida decisão que decretou o respectivo divórcio não tiver eficácia em Macau.
6.°
Daí a necessidade de obter a revisão e confirmação da sentença proferida pelo Tribunal Civil da Província de Tainan em 06 de Junho de 2016, transitada em julgado em 04 de Julho de 2016, tendo em vista a sua plena eficácia na ordem jurídica de Macau.
7.°
Nada obstando à revisão da referida decisão, preenchidos que se encontram todos os requisitos previstos no disposto no artigo 1200.° do Código de Processo Civil.
Com efeito,
8.°
Dúvidas não existem sobre a autenticidade do documento (a sentença) de que consta a decisão, nem razões existem para que elas se suscitem.
9.°
Trata-se de uma decisão perfeitamente inteligível cujo sentido e fundamentos são facilmente compreendidos.
Por outro lado,
10.º
A decisão cuja revisão e confirmação se requer transitou em julgado segundo as leis de Taiwan.
11.º
De resto, a jurisprudência deste Tribunal é pacífica e unânime no entendimento que o trânsito em julgado se presume.
12.º
A referida decisão provém, por outro lado, de entidade cuja competência não foi provocada em fraude à lei.
13.º
Ademais, a decisão em causa - divórcio - foi emanada por organismo competente - o Tribunal Civil de Tainan - de acordo com as leis de Taiwan, não versando sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau.
14.º
Contra a decisão cuja revisão e confirmação ora se pretende, também não podem ser invocadas as excepções de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a Tribunal de Macau.
15.º
Não se colocam, no caso, questões relativas à regularidade da citação ou à observância dos principias do contraditório e da igualdade das partes.
16.º
Por último, a decisão cuja revisão e confirmação se requer não conduz a qualquer resultado incompatível com os princípios de ordem pública de Macau.
17.º
De facto, " .... a acção de revisão não se destina a julgar de novo a causa, mas apenas a obter a constatação de que aqueles requisitos se encontram satisfeitos no caso concreto. A sentença a emitir pelo tribunal não será um duplicado ou um fac-simile da decisão estrangeira, mas um acto que certifica que as condições legais do reconhecimento estão cumpridas - e que portanto, o julgado estrangeiro é susceptível de operar na ordem jurídica do foro, no todo ou em parte, os efeitos que lhe competem segundo a lei do país de origem." - in Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado, Ferrer Correia, pág. 283.
Nestes termos e mais de direito,
Requer-se a V. Exas. se dignem confirmar a sentença proferida pelo Tribunal Civil da Província de Tainan, Taiwan, em 06 de Junho de 2016 e transitada em julgado em 04 de Julho de 2016, registada em 21 de Julho de 2016 em 戶政事務所, da cidade de Tainan, Taiwan, China, pela qual foi decretado e registado o divórcio entre a Requerente e o Requerido.
Não foi deduzida oposição.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III - FACTOS
Com pertinência, vem certificado pelo Tribunal de Taiwan:
1. “Sentença Civil do Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan
Nº 88 婚字 do ano 105
Autora: A, reside na cidade de Kaohsiung,
XXXXXXXXXXXXXXX
Mandatário: Advogado C
Réu: B, reside na cidade de Tainan, XXXXXXXXXXX
Da audiência de discussão oral realizada em 23 de Maio de 105 da República da China, relativa ao pedido de divórcio entre as partes acima indicadas, resultou na seguinte decisão:
Dispositivo:
Indefere-se o divórcio entre a Autora e o Réu.
Custas pelo Réu.
Factos e fundamentos
A. Procedimento:
O Réu não compareceu à audiência de discussão oral. Dado que não se verificam as situações previstas no artº 386º da Lei de Processo Civil, foi proferida, com base no pedido da Autora, a sentença baseada em prova unilateral.
B. Relatório:
1. Pretensão da Autora:
1) As partes casaram civilmente no dia 30 de Outubro do ano 91 da República da China na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China e pediram o registo do casamento em 11 de Dezembro do ano 92 da República da China junto do Serviço de Registo de Residências do Bairro do Sul da cidade de Tainan. Depois de contrair casamento no ano 91, o casal imigrou para Taiwan no ano 94. Posteriormente, o Réu voltou a viver para Macau por ter contraído dívidas de montante elevado. Desde então os dois vivem separados e parece que não se conhecem. O Réu voltou a Taiwan algumas vezes, mesmo assim não contactou a Autora, razão pela qual esta propôs divórcio ao Réu várias vezes, mas este não disse sim nem não. Em Fevereiro do Ano 101, o Réu contactou de repente a Autora e disse que aceitou o divórcio proposto. Assim, as duas partes assinaram logo naquele dia o acordo de divórcio na presença das duas testemunhas D e E, que assinaram no acordo na qualidade de testemunha. E no mesmo dia (21 de Fevereiro do ano 101) as partes deslocaram-se em conjunto com o acordo de divórcio em causa para tratar do registo de divórcio no Serviço de Registo de Residências do Bairro do Sul da cidade de Tainan.
2) Após o divórcio em 21 de Fevereiro do ano 101, uma vez que as duas partes possuíram em conjunto imóveis de grande valor na RAEM na constância do casamento e que está pendente no tribunal da Região um processo sobre a partilha de bens por divórcio entre eles, o Réu, com intuito de obter interesse ilegítimo dos bens, apresentou de repente (três anos depois do divórcio) uma queixa-crime de falsificação de documentos à Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan, invocando como motivo que o acordo em causa foi falsificado pela Autora e as testemunhas D e E não presenciaram a celebração do acordo entre as partes. Além disso moveu a acção de confirmação da existência do casamento junto do douto Tribunal. A Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan, investigou logo o caso, confirmando que a Autora não praticou nenhum acto ilícito, pelo que proferiu a decisão de não pronúncia. No entanto, quanto à acção de confirmação da existência do casamento, o Tribunal, após efectuada investigação, não foi capaz de provar que as duas testemunhas, D e E, indicadas no acordo de divórcio, estavam presentes pessoalmente no acto da assinatura do acordo em causa, para confirmarem a vontade de divórcio das duas partes, razão pela qual o douto Tribunal confirmou, através da sentença nº 252 婚字 do ano 104, a existência do casamento entre as duas partes.
3) Apesar de a sentença nº 252 婚字 do ano 104 do douto Tribunal ter confirmado a existência do casamento entre as duas partes, estas têm vivido separadamente, até à presente, desde o divórcio registado no dia 21 de Fevereiro do ano 101. Ainda por cima, depois de ser confirmada a existência do casamento, o Réu nunca mandou cumprimentos à Autora ou pediu esta a viver com ele. No acto de assinatura do acordo de divórcio em causa, a Autora não falsificou documento, porém, por causa do conflito relativo à partilha de bens na Região de Macau após o divórcio entre eles, o Réu, que sabia bem que a autora não falsificou documento, inventou facto contra a Autora e apresentou queixa-crime de falsificação de documento contra a mesma, com objectivo de obter interesse ilegítimo. Quanto à queixa, foi proferida pela Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan, a decisão de não pronúncia, mas o Réu impugnou a dita decisão através duma reclamação, o que mostra manifestamente que o Réu fez, por todas as intrigas, uma acusação falsa contra a Autora, com objecto de responsabilizar criminalmente a mesma.
4) Ademais, as partes têm vivido separadamente desde o ano 94 (há quase 10 anos) por se verificar incompatibilidade de personalidade e, ainda, por o Réu voltar a viver em Macau com finalidade de evitar pagar as dívidas contraídas, tendo ambas as partes vivido separadamente há quase 10 anos. E as duas partes consentiram em tratar do divórcio no dia 21 de Fevereiro do ano 101, com motivo de incompatibilidade de personalidades que resultou na impossibilidade de viver em conjunto, abalando o relacionamento conjugal que tem por base a confiança mútua. Embora o acordo de divórcio celebrado em 21 de Fevereiro do ano 101 entre as duas partes foi anulado pelo Tribunal que reconheceu, por falta de requisito legal, a existência da relação conjugal. Porém, as partes não vivem em conjunto, não tendo contacto nenhum entre os dois. Ainda por cima, por causa do conflito de bens, o Réu intentou acções em matéria civil e penal contra a Autora, por este facto, não se pode esperar que os dois podem continuar a vida conjugal sem guardar rancor. O casamento entre os dois é irremediavelmente quebrado e, subjectivamente, eles não têm vontade de continuar o casamento, perdendo a vontade de melhorar o relacionamento conjugal. Isto é confirmado.
5) Pelas razões acima expostas, é impossível alcançar a finalidade do casamento de viver juntos e, além disso, não se verifica a vontade subjectiva de melhorar o relacionamento conjugal. Ainda, o facto de o Réu tentar responsabilizar penalmente a Autora (apresentou queixa-crime de falsificação de documentos contra a Autora e reclamou a decisão de não pronúncia da Autora proferida pelo delegado de procurador) resultou na quebra irremediável de afectos, o que torna impossível a manutenção do casamento entre os dois, não conseguindo as partes viver juntos para obter uma vida conjugal segura, feliz e satisfatória. Esta situação pode, por isso, ser entendida como o motivo sério para não manter o casamento previsto no nº 2 do artº 1052º da Lei Civil. Pelo exposto, o pedido de divórcio formulado pela Autora tem base legal no nº 2 do artº 1052º da Lei Civil.
6) Declaração: Tal como se disse no dispositivo
2. O Réu não compareceu à audiência de discussão oral, nem apresentou declarações ou alegações escritas.
3. Fundamentos da formação da convicção:
1) Alegou a Autora que eles casaram civilmente no dia 30 de Outubro do ano 91 da República da China na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China e pediram o registo do casamento em 11 de Dezembro do ano 92 da República da China junto do Serviço de Registo de Residências do Bairro do Sul da cidade de Tainan. Em 21 de Fevereiro do ano 101, as partes assinaram um acordo de divórcio e trataram do registo do divórcio no Serviço de Registo de Residências do Bairro do Sul da cidade de Tainan. Mas, no ano 104, o Réu apresentou de repente uma queixa-crime de falsificação de documentos à Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan, invocando como motivo que o acordo em causa foi falsificado pela Autora e as testemunhas indicadas não presenciaram a celebração do acordo entre as partes, além disso, moveu a acção de confirmação da existência do casamento junto deste Tribunal. A Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan, investigou logo o caso, confirmando que a Autora não praticou nenhum acto ilícito, pelo que proferiu a decisão de não pronúncia nº 13808 偵字 do ano 104. No entanto, quanto à acção de confirmação da existência do casamento, uma vez que não se conseguiu provar que as duas testemunhas indicadas no acordo de divórcio, estavam presentes pessoalmente no acto da assinatura do acordo em causa, para confirmarem a vontade de divórcio das duas partes, razão pela qual este Tribunal confirmou, através da sentença nº 252 婚字 do ano 104, a existência do casamento entre as duas partes. Todavia, as duas partes têm vivido separadamente, até à presente, desde o divórcio registado no dia 21 de Fevereiro do ano 101. Ainda por cima, depois de ser confirmada a existência do casamento, o Réu nunca mandou cumprimentos à Autora ou pediu esta a viver com ele. Podem consultar-se os dados relativos ao registo de residência das duas partes constantes do apenso, a fotocópia do acordo de divórcio apresentada pela Autora e a fotocópia da sentença proferida pelo Tribunal de Segunda Instância da RAEM que foram apreciados criticamente no processo nº 252婚字 do ano 104, que foi extraído oficiosamente por este Tribunal, e no processo de falsificação de documento nº 13808 偵字 do ano 104 da Procuradoria Distrital de Tainan, Taiwan. Ademais, o Réu não compareceu à audiência de discussão oral para impugnar os factos alegados pela Autora, nem apresentou declarações ou alegações escritas, assim, foram dados como assentes os factos alegados pela Autora.
2) Quando se verifiquem os motivos sérios previstos no artº 1052º (excepto os dez motivos indicados no nº 1) do da Lei Civil que prejudiquem a manutenção do casamento, um dos cônjuges pode requerer divórcio ao tribunal, ao abrigo do artº 1052º, nº 2, da mesma lei. Para provar a existência dos motivos sérios que impossibilitam a manutenção do casamento, devem ter-se em conta os factos concretos que prejudicam a vida em comum, devendo considerar-se ainda se estes factos, na vertente objectiva, são suficientes para abalar a vida conjugal, até que o casamento seja irremediavelmente quebrado, e se, na vertente subjectiva, qualquer pessoa for colocada na mesma situação, também vai perder a vontade de manter o seu casamento. Por outras palavras, deve analisar o caso a partir da finalidade do casamento. O casamento é uma relação legal entre um homem e uma mulher que se unem uma à outra, com propósito de vida mútua em comum. Portanto, os cônjuges devem procurar atingir em conjunto a felicidade conjugal, ou falando mais precisamente, todos os bons casamentos exigem confiança mútua, compreensão e, sobretudo, honestidade, no sentido de construir um vínculo conjugal durável que associa espírito, sexualidade e economia. São considerados motivos sérios que impossibilitam a manutenção do casamento as situações que prejudicam a vida familiar feliz e, no caso de se verificar estes motivos sérios, deve ser deferido o divórcio para que se dissolva o casamento. A manutenção do casamento alicerça-se no amor conjugal, confiança mútuo e compreensão. O facto de viver separadamente por anos abala a confiança mútua, o que deve ser entendido como ruptura no casamento, ou seja, motivo sério que impossibilita a manutenção do casamento. Segundo os dados neste caso, as partes assinaram em 21 de Fevereiro do ano 101 um acordo de divórcio e trataram do registo do divórcio no Serviço de Registo de Residências do Bairro do Sul da cidade de Tainan. Apesar de a sentença nº 252 婚字 do ano 104 deste Tribunal ter confirmado a existência do casamento entre as duas partes, foi reconhecido que os dois não têm vontade de manter o casamento e, ainda, os dois não vivem juntos, até à presente, desde o registo do divórcio, estando separados durante muitos anos. Legalmente os dois são casados mas na realidade não são. Além disso, o Réu, ignorando o amor conjugal, apresentou uma queixa-crime de falsificação de documentos contra a Autora, no intuito de colocá-la em risco de ser responsabilizada criminalmente. As circunstâncias referidas abalaram o amor, confiança mútua e compreensão que construíram o casamento. È impossível que os dois possam construir um casamento feliz por se verificar motivos sérios que impossibilitam a manutenção do casamento entre as partes e estes motivos são imputáveis ao Réu, razão pela qual a Autora pediu a dissolução do casamento com os motivos sérios previstos no artº 1052º (excepto os no nº 1) da Lei Civil, por ser impossível manter o casamento. Entende-se ser deferido o pedido da Autora por ter base legal.
4. Este caso foi provado, pelo que não se enumeram aqui as demais formas de defesa e provas produzidas pela Autora por estas não afectar o resultado da sentença.
C. Conclusão:
Por ser procedente a acção intentada pela Autora, profere-se a decisão indicada na parte dispositiva, nos termos do artº 51º da Lei da Família e do artº 385º, primeira parte do nº 1, e do artº 78º da Lei de Processo Civil.
Dia 6 de Junho do ano 105 da República da China
A Juíza do Juízo de Família: Ip Wai Leng”
2. Mais se certifica:
“Certidão da Sentença Civil do Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan
Relativamente ao processo nº 88 婚字 do ano 105 sobre o divórcio entre a Autora A e o Réu B, foi proferida a sentença de primeira instância no Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan, em 6 de Junho do ano 105, que transitou em julgado em 4 de Julho do ano 105.
Obs.: O registo de residência deve ser efectuado junto do Serviço de Registo de Residências no prazo legal de 30 dias.
República da China, aos 7 de Julho de 105 (Carimbos)
O Juízo de Família do Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan
A Juíza
XXX
Nº de processo: 年度雄院認字第008001037
Data: 22.7.105
O presente instrumento público foi autenticado pelo Cartório Notarial do Tribunal Distrital de Kaohsiung, Taiwan.
Notário: XXX
“
IV - FUNDAMENTOS
O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo tribunal de Tainan, Taiwan,, - de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
- Requisitos formais necessários para a confirmação;
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
- Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades do Exterior, respeitando o ordenamento das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a decisão do Exterior satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
Dúvidas não resultam quanto à dissolução do casamento proferida à luz do ordenamento de Taiwan.
Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
3. Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida pelo Tribunal de Tainan, Taiwan, face às leis do ordenamento respectivo, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento.2
4. Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do autoridade do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior,3 entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
Resulta até dos documentos juntos que a decisão proferida produziu efeitos a partir de 4 de Julho do ano 105, 4 de Julho de 2016,do calendário gregoriano.
5. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Maca
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Ora, ainda aqui se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice.
6. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6 E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar a decisão que dissolveu o casamento, decretando o divórcio litigioso entre a ora requerente e o seu marido, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, seja por via litigiosa, seja por mútuo consenso e por razões ou fundamentos que também serviram de base à fundamentação plasmada na sentença revidenda.
O pedido de confirmação de decisão do Exterior não deixará, pois, de ser procedente, não vindo referidos quaisquer acordos que importe confirmar.
Assim se confirmará a decisão proferida, tal como requerido.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão que decretou o divórcio, em conformidade com a certificação documentada, proferida pelo Tribunal Distrital de Tainan, Taiwan, nos termos da qual foi dissolvido o casamento celebrado entre o requerente, A e B, por decisão que produziu efeitos a partir de 4 de Julho de 2016, nos precisos termos do documento de fls. 9 a 16 dos autos.
Custas pelo requerente.
Macau, 27 de Julho de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
825/2016 1/22