Processo n.º 938/2016
(Recurso Contencioso)
Data : 20 de Julho de 2017
Recorrente: A, Limitada (A有限公司)
Contra-interessada: B, Limitada
Entidades Recorridas: - Chefe do Executivo
- Região Administrativa Especial de Macau
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A Contra-interessada B, Limitada , na sua contestação veio suscitar duas excepções: uma relativa à competência deste tribunal; outra, relativa à impossibilidade de procedência do pedido, por se tratr de matéria do âmbito discricionário da Administração.
A Região Administrativa Especial de Macau, representada pelo Ministério Público, contesta o pedido de indemnização contra si deduzido por “A, Limitada” no âmbito do recurso contencioso em epígrafe, pronunciando-se no sentido favorável à incompetência deste tribunal por impossibilidade de cumulação do recurso contencioso com a acção para a prática do acto devido.
2. Oportunamente, em sede do recurso contencioso, ofereceu o seguinte douto parecer:
“Em sede de contestação, a contra-interessada "B, Limitada", suscitou matéria exceptiva relacionada com o pedido cumulado de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido.
Entende, por um lado, que não está em causa a prática de acto de conteúdo vinculado, porquanto impondo-se lidar com matérias estritamente técnicas para formulação de juízo acerca da melhor forma de prossecução do interesse público, tal envolve poderes discricionários, do foro da Administração, o que configuraria uma excepção peremptória; por outro lado, acha que o Tribunal de Segunda Instância é incompetente para apreciação desse pedido cumulado, para o qual é competente o Tribunal Administrativo, com a inerente excepção dilatória.
Vejamos.
Quanto à primeira das excepções invocadas, crê-se que a recorrida particular não tem razão.
Tendo em conta as questões suscitadas no recurso contencioso, que abordam e impugnam a pontuação obtida pela recorrente em certos itens classificativos, e tendo presentes as normas do programa do concurso e respectiva densificação aplicáveis à classificação dos concorrentes no âmbito daquelas questões, haverá que concluir, salvo melhor juízo, que a pontuação concreta a atribuir é o resultado de uma fórmula matemática, que nada tem obviamente de discricionário. A montante dessa fórmula, trata-se de apurar se a rejeição, pela Administração, de certos pressupostos classificativos apresentados pela candidatura da recorrente têm ou não respaldo no regulamento do concurso e no caderno de encargos, o que também não envolve actividade discricionária.
Improcede, a nosso ver, tal excepção.
Quanto à incompetência do Tribunal de Segunda Instância, inclinamo-nos para a posição veiculada pela recorrida particular.
Arrimamo-nos aqui, mutatis mutandis, nos argumentos expendidos a fls. 587 e seguintes, a propósito da ilegalidade da cumulação, no recurso contencioso, do pedido de indemnização por perdas e danos, dada a similitude das situações, o que induz a conclusão de que o pedido de determinação da prática de acto legalmente devido se enquadra no leque de competências do Tribunal Administrativo, aqui por força da norma do artigo 30.°, n.º 5, alínea 7), da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Procederá, pois, a nosso ver, esta excepção de incompetência do TSI para conhecimento do pedido de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido.
Haverá, no entanto, que referir, que, em seu acórdão de 01 de Dezembro de 2016, no âmbito do processo 409/2016, este mesmo TSI se pronunciou em sentido diferente, concluindo caber-lhe a competência para conhecer de acção para determinação da prática de acto administrativo legalmente devido em que o visado seja o Senhor Chefe do Executivo.
Eis o nosso parecer sobre a matéria de excepção suscitada na contestação da recorrida particular.”
3. Foram colhidos os vistos legais.
II – Factos relevantes
A autora A, Limitada pretende obter da Região Administrativa Especial de Macau, nestes autos de recurso contencioso, em que pede a anulação do despacho do Senhor Chefe do Executivo que adjudicou a uma determinada empresa a obra de “arruamentos e redes de drenagam da Zona E 2 dos novos aterros urbanos”, a determinação da prática de acto devido traduzido na atribuição de uma determinada pontuação à recorrente no concurso e, subsidiariamente, uma indemnização por danos que atribui ao acto administrativo impugnado e que computa em MOP 19,800,000.00 (dezanove milhões e oitocentas mil patacas), se a anulação do acto não puder reparar os seus interesses insatisfeitos.
III - FUNDAMENTOS
1. Ilegalidade da cumulação de pedidos:
A A. lança mão da cumulação de pedidos prevista no artigo 24.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Entende a entidade recorrida que não é possível formular o pedido de determinação da prática de acto devido no processo de recurso contencioso, nos termos do sobredito inciso do Código de Processo Administrativo Contencioso, não o consentindo a norma contida no artigo 24.°, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Cremos que não lhe assiste razão, não obstante o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, tirado no Proc. nº 126/2014, de 1 de Julho de 2015, - publicado no B.O. n.º 30, de 27.07.2015, I Série - que, numa primeira aparência, inculcaria no sentido de estender as razões aí plasmadas para a situação presente. Nesse acórdão Uniformizador decidiu-se:
“Não é possível a cumulação de pedidos prevista no art.º 113.º n.º 3 do Código de Processo Administrativo Contencioso se para os respectivos pedidos forem competentes tribunais de grau hierárquico diverso, pelo que o Tribunal Administrativo não tem competência para conhecer do pedido, deduzido em acção sobre contratos administrativos, de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato, cujo julgamento em primeira instância cabe ao Tribunal de Segunda Instância.”
Tratava-se aí de uma situação de acção de contrato administrativo proposta no TA e em que concomitantemente se pretendia a anulação de acto do Senhor Chefe do Executivo, sendo o tribunal naturalmente competente para conhecer da anulação do acto de ordem hierárquica superior, cujo acto iria ser decidido por um tribunal sito num patamar inferior na hierarquia dos tribunais.
Quanto se decidiu com força vinculativa incide sobre os casos que sejam objecto de acções de contratos administrativos em que se cumula um pedido de anulação do acto.
Como facilmente se alcança, a estatuição normativa desse acórdão não abrange exactamente a situação que flui dos autos, o que nos permite nos apartemos do que ali se decidiu.
Estamos cientes da divisão da doutrina, entre nós.
No sentido da possibilidade de cumulação, Cândido Pinho, in Manual de Formação de Dto Processual administrativo Contencioso, CFJJ, 2.ª ed., 2015, 78
Em sentido contrário, Viriato Lima e Álvaro Dantas, em Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado, CFJJ, 2015, 75 e 306.
Nos termos da Lei de Bases da Organização Judiciária, a competência para o recurso contencioso, visando a impugnação de um acto administrativo da autoria do Senhor Chefe do Executivo, como o que ora está em causa, cabe a este Tribunal de Segunda Instância, ao passo que a competência para conhecer do pedido de indemnização, em virtude de responsabilidade civil por acto de gestão pública, cabe ao Tribunal Administrativo - cfr., respectivamente, os artigos 36.°, alínea 8), (1) e 30.°, n.º 2, al. 3), ponto IV e para as acções para determinação da prática do acto devido, ao abrigo do disposto no art. 30, n.º 5, 7).
Mas o art. 24º do CPAC dispõe:
“1. Qualquer que seja o tribunal competente, pode cumular-se no recurso contencioso:
a) O pedido de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido quando, em vez do acto anulado ou declarado nulo ou juridicamente inexistente, devesse ter sido praticado um outro acto administrativo de conteúdo vinculado;
b) O pedido de indemnização de perdas e danos que, pela sua natureza, devam subsistir mesmo em caso de reposição da situação actual hipotética obtida através do provimento do recurso.
2. Nas hipóteses previstas no número anterior, aplicam-se à dedução dos pedidos de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido e de indemnização de perdas e danos, bem como à sua discussão e decisão, as normas que regulam as correspondentes acções quando se não revelem incompatíveis com as aplicáveis à tramitação do recurso contencioso.”
Argumenta-se que esta norma (art. 24.°, n.º 1, do CPAC) não está talhada para situações em que a competência para conhecimento dos pedidos caiba a diferentes tribunais, mas a ressalva “qualquer que seja o tribunal” aponta exactamente em sentido contrário, sob pena de se ter a norma por desnecessária.
Se todos os pedidos se contivessem na competência do mesmo tribunal, não seria necessário colocar a ênfase na diversidade da competência dos tribunais.
A razão de ser da norma e da salvaguarda da cumulação de pedidos surge do entendimento que o legislador privilegia uma competência por inerência, a que subjazem razões de economia processual e harmonização de julgados, visto que os factos relevantes para o pedido principal anulatório são essencialmente os mesmos que se mostram necessários à decisão sobre qualquer um dos pedidos cumulados.
O que a norma prevê é que, independentemente de ser competente para os pedidos o Tribunal Administrativo, o Tribunal de Segunda Instância ou o Tribunal de Última Instância, pode haver lugar à cumulação de diferentes pedidos, cujo processamento se subordinará ao pedido principal.
Não vemos razões para interpretar restritivamente aquele segmento da norma - Qualquer que seja o tribunal competente - , não se podendo falar numa interferência com a normal competência dos tribunais, apenas estatuindo sobre os pedidos que podem ser formulados e correlativa adaptação processual, no âmbito do processo de recurso contencioso, tradicionalmente talhado para ser um recurso de mera anulação do acto, mas cuja evolução doutrinária e legislativa o vem reposicionando no caminho da reparação devida aos interessados.
Não obstante se concluir no sentido da competência para a cumulação, apreciando a viabilidade do pedido de indemnização em concreto, verifica-se que o que o recorrente pediu são os resultantes de eventuais lucros cessantes, sem que os especifique, prejuízos esses que, a verificarem-se, podem ser indemnizados em sede de execução de sentença se se verificarem os respectivos pressupostos, nomeadamente por causa legítima de inexecução – arts. 175º, 182º/2,184º/4 e 185º do CPAC.
Nesta conformidade somos a julgar improcedente a excepção relativa à pretensa cumulação ilegal de pedidos, mas a rejeitar o pedido de indemnização por inviabilidade do mesmo nesta fase.
2. Impossibilidade de procedência do pedido por o acto recorrido se conter dentro dos poderes discricionários da Administração
A contra-interessada "B, Limitada", suscitou matéria exceptiva relacionada com o pedido cumulado de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido.
Entende que não está em causa a prática de acto de conteúdo vinculado, porquanto impondo-se lidar com matérias estritamente técnicas para formulação de juízo acerca da melhor forma de prossecução do interesse público, tal envolve poderes discricionários, do foro da Administração, o que configuraria uma excepção peremptória.
A pontuação e valoração das propostas respeitaria a critérios técnicos e precisos, em relação aos quais o tribunal não dispõe de conhecimentos especializados, pelo que essa matéria, relativa à pontuação, valoração e ordenação das diferentes propostas competiria à Administração, na melhor prossecução daquele interesse público.
Sobre esta excepção, configurada como de natureza peremptória, não tem razão a contra-interessada.
De um forma muito simples se dirá que o tribunal não terá conhecimentos especializados, mas não deixa de ter os meios para se rodear dos técnicos e especialistas necessários à verificação da correcção de uma dada pontuação.
Se é verdade que numa ou noutra rubrica haverá uma margem subjectiva de ponderação – pontualmente se ponderará dessa possibilidade e circunstância -, outros casos haverá em que a pontuação é vinculada, isto é, verificado um determinado pressupostos objectivo, verificar-se-á da correcção classificativa.
Tendo em conta as questões concretamente suscitadas no recurso contencioso, que abordam e impugnam a pontuação obtida pela recorrente em certas rubricas, em função dos critérios classificativos dimanados das normas do programa do concurso, bem pode acontecer que a pontuação concreta a atribuir seja o resultado de uma fórmula matemática, podendo a pontuação assumir ou não um carácter vinculado. No fundo, caso a caso se verá até onde pode ir a discricionariedade ou a vinculatividade da Administração na classificação concursal.
A levar-se, em toda a linha, a argumentação da contra-interessada, não haveria forma de aferir a correcção e transparência dos procedimentos concursais.
Não se vislumbra, neste momento, manifesta impossibilidade, sem prejuízo de apreciação dos fundamentos aduzidos a final, aquando da análise concreta do mérito.
Nesta conformidade se decidirá.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em julgar improcedentes as excepções, a relativa à competência, julgando-se competente este tribunal para os pedidos cumulados, e a relativa à manifesta impossibilidade de procedência do pedido cumulado de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido, rejeitando-se, porém o pedido indemnizatório.
Macau, 20 de Julho de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira (Não acompanho o acórdão na parte relativa à admissibilidade da cumulação de pedidos, no recurso contencioso, na medida em que sou sensível ao argumento extraído do Ac. Uniformizador, tirado no Proc. nº 126/2014, de 1 de Julho de 2015, - publicado no B.O. n.º 30, de 27.07.2015, I Série -, ainda que aqui não vinculativo, de que uma norma que regulamenta e organiza o processo não pode afastar as normas de competência que assumem a natureza de ordem pública e se encontram em diploma de valor reforçado.)
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
938/2016 11/11