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Processo nº 570/2017 Data: 20.07.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico de pessoas”.
Crime de “lenocínio”.
Crime de “acolhimento”.
Alteração (oficiosa) da qualificação jurídico-penal.
Concurso real de crimes.



SUMÁRIO

1. O Tribunal de recurso é livre para – nem deve dispensar – uma (re)qualificação (oficiosa) da matéria de facto dada como provada, devendo, como é óbvio, respeitar préviamente o “contraditório” e o “princípio da proibição da reformatio in pejus” consagrado no art. 399° do C.P.P.M..

2. O bem jurídico protegido pelo crime de “tráfico de pessoas” é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa.
Trata-se de um crime de dano (quanto à lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
O tipo objectivo do “tráfico” consiste na oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte de uma pessoa com vista à sua exploração sexual, à exploração da sua mão-de-obra ou à extracção dos seus órgãos.

3. De facto, o crime de “tráfico de pessoas” pode ter como finalidade a “exploração sexual” do ofendido, mas não depende desta para a sua consumação, outro ilícito existindo (em concurso real) quando esta ocorre efectivamente.

4. Resultando da factualidade provada que o arguido não só “trouxe” as duas ofendidas para Macau com o pretexto de aqui poderem ganhar muito dinheiro com a sua prostituição, mas que ficava com a totalidade do dinheiro pelas mesmas ganho com tal actividade e que as ameaçou quando pretenderam desistir, verificado está que cometeu em concurso real 2 crimes de “tráfico de pessoas” e outros 2 de “lenocínio”.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 570/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu em audiência Colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado como autor material da prática em concurso real de 2 crimes de “tráfico de pessoas”, p. e p. pelo art. 153°-A, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos de prisão, e em cúmulo jurídico, a pena única de 9 anos de prisão; (cfr., fls. 460 a 468 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 482 a 499).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 501 a 505).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.483 a 499 dos autos, o recorrente assacou, ao douto Acórdão em escrutínio (cfr. fls.460 a 468 dos autos), o erro notório na apreciação de prova consagrada na alínea c) do n.°2 do art.400° do CPP, e a excessiva severidade da pena de 9 anos de prisão efectiva aplicada pelo Tribunal a quo no sobredito Acórdão.
Antes de mais, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na douta Resposta (cfr. fls.501 a 505 dos autos), no sentido do não provimento dos recursos em apreço.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» pre-visto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é solidamente consolidada, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, arestos do Venerando TUI nos Processos n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009 n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014):
O erro notário na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
De outro lado, não se pode olvidar que o recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador (Ac. do TUI no Proc. n.°13/2001). Pois, «sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.» (Acórdão no Processo n.°470/2010)
No caso sub judice, a fim de fundamentar o arrogado o erro notório na apreciação de prova, o recorrente insistiu nos quatro factos, a saber: ele transportara as duas ofendidas a Macau a requerimento delas; ele e essas ofendidas chegaram a um acordo no sentido de elas duas, por iniciativa própria, ficarem em Macau para a prática da prostituição, e de entregarem voluntariamente as recompensas ao recorrente; essa entrega voluntária se serviam a pagar gradualmente os empréstimos fornecidos pelo recorrente como despesas de transporte e do quarto alugado; ele nunca as obrigava a não sair do dito quarto e de Macau. Desses factos o recorrente extraiu que ele não praticara exploração sexual.
Impõe-se, desde já, ressaltar que todos esses argumentos alegados pelo recorrente são meramente opinativos e subjectivos, sujeitos à livre apreciação do tribunal. Portanto, ainda que fossem exactos, tais argumentos do recorrente não podiam impedir o tribunal de atribuir mais crédito à versão das ofendidas do que ao depoimento do recorrente.
De outro lado, é incontestável que ao transportar as duas ofendidas a entrar em Macau, emprestar-lhes o dinheiro, e suportar as correlativas despesas com o aluguer do quarto, o recorrente agia sempre a propósito de lhes financiar e viabilizar a prática da prostituição e de, afinal, ele próprio poder tirar o proveito económico dessa prática.
Nestes termos, torna-se irrefutável que todos esses “negócios” bem como o acordo (協議) referido pelo recorrente eram e são grosseiramente ofensivos dos bons costumes na sociedade cívica de Macau e, deste modo, caem na irremediável nulidade (art.273°, n.°2, do CC). Além disso, vale apontar que a invocação da sobredita «entrega voluntária» colide com as regras de racionalidade e de experiência, pelo que é inacreditável.
A todas estas luzes e em harmonia com a prudente orientação jurisprudencial supra citada, estamos convictos, sem hesitação, de que não se verifica, no caso sub judice, o erro notório na apreciação de prova, pelo contrário, a apreciação e valoração das provas produzidas pelo Tribunal a quo mostram plenamente conformes com as regras de experiência, bem como com normas e princípios jurídicos, pelo que os factos dados como provados pelo Tribunal a quo são inatacáveis.
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Transparece na realidade que o recorrente, em conluio com outrem e conjugação de esforço, transportara e acolhia duas meninas identificadas no Acórdão em sindicância, a fim de obriga-las a praticar a prostituição e entregar-lhe as recompensas dessa actividade.
No Acórdão in questio, o Tribunal a quo condenou o recorrente em ter praticado, na autoria material e de forma consumada, duas crimes de tráfico de pessoas e um crime de acolhimento, p.p. respectivamente pelas disposições no n.°1 do art.153°-A do Código Penal aditado pelo art.2° da Lei n.°6/2008, e no n.°2 do art.15° da Lei n.°6/2004.
A moldura penal consagrada no citado n.°1 do art.153°-A traduz-se na pena de prisão de três a doze anos, e a consignada no n.°2 do art.15° da Lei n.°6/2004 consiste na pena de prisão de dois a oito anos. Acontece que o recorrente foi condenado nas duas penas parcelares de cinco anos de prisão, uma de três anos de prisão e, efectuando o cúmulo jurídico, na pena única de nove anos de prisão.
À luz dos parâmetros prescritos no art.65° do Código Penal, e tendo em conta a co-autoria, a elevada gravidade da ilicitude, a forte intensidade do dolo, a exploração praticamente profissional da prostituição, e o fim contrário grosseiramente à lei e aos bons costumes, não nos resta dúvida alguma de que a pena de 9 anos de prisão é sobremaneira benevolente, e de qualquer modo, o pedido de redução da pena tem de ser descabido.
Em conformidade com as prudentes jurisprudências do douto TSI respeitantes à quantificação do crime de acolhimento p.p. pelo art.15° da Lei n.°6/2004, o recorrente cometeu, em vez de um, dois crimes, por ter ele acolhido duas mulheres. O que corrobora e reforça a insubsistência do pedido de redução da pena do recorrente.
(…)”; (cfr., fls. 524 a 526).

*

Em sede de exame preliminar, admitindo-se a possibilidade de a factualidade provada ser (re-)qualificada como a prática pelo arguido B de outros dois crimes de “lenocínio (agravado)” ou “exploração de prostituição” e, como sugeriu o Ilustre Procurador Adjunto, de um outro de “acolhimento”, deu-se observância ao contraditório, notificando-se o mesmo para, querendo, dizer o que entendesse conveniente.

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 462-v a 464, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor da prática, em concurso real, de 2 crimes de “tráfico de pessoas”, p. e p. pelo art. 153°-A, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos de prisão, e em cúmulo jurídico, a pena única de 9 anos de prisão.

É de opinião que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”.

Vejamos.

–– De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016, de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017 e de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017, de 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017 e de 15.06.2017, Proc. n.° 249/2017).

Aqui chegados, e da reflexão que sobre a questão nos foi possível efectuar, claro é que nenhuma razão tem o ora recorrente, aliás, como – bem – se salienta no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto que se deixou transcrito.

Basta uma leitura à “fundamentação” pelo Colectivo a quo exposta, (cfr., fls. 464 a 465), para se ver (perceber) o “porquê” da convicção e decisão proferida, manifesto se nos apresentando que se limita o recorrente a insistir na negação factos, mantendo a (sua) “versão dos factos” que não foi acolhida pelo Tribunal, afrontando o “princípio da livre apreciação da prova”, o que, como se mostra óbvio, não colhe, mais não se apresentando de dizer sobre a questão.

–– Inexistindo assim o assacado “erro” ou outro vício que inquine a decisão da matéria de facto, há que ter a mesma como “definitiva”, passando-se agora à “questão da(s) pena(s)”.

Antes de mais, cabe dizer que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”

Por sua vez, temos considerado que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 09.03.2017, Proc. n.° 180/2017, de 23.03.2017, Proc. n.° 241/2017 e de 08.06.2017, Proc. n.° 310/2017).

No caso, e como se deixou relatado, foi o ora recorrente condenado como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “tráfico de pessoas”, p. e p. pelo art. 153°-A, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 anos de prisão cada, e 1 outro de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos de prisão.

O bem jurídico protegido pelo crime de “tráfico de pessoas”, é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa.

Segundo Pedro Vaz Patto, (in “O crime de tráfico de pessoas no Código Penal revisto. Análise de algumas questões”, in Revista do CEJ, n.° 8 – Especial, 1° Semestre de 2008), para além da liberdade pessoal, está, pois, em causa, no tráfico de pessoas, a dignidade da pessoa humana, sendo isso que confere particular gravidade a este crime.

Trata-se de um crime de dano (quanto à lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).

O tipo objectivo do “tráfico” consiste na oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), de uma pessoa com vista à sua exploração sexual, à exploração da sua mão-de-obra ou à extracção dos seus órgãos. Trata-se de um crime de execução vinculada, estando os meios de execução do crime tipificados.

Ao crime de “tráfico de pessoas” em questão cabe a pena de 3 a 12 anos de prisão.

Por sua vez, ao de “acolhimento” a de 2 a 8 anos de prisão.

E atenta a “matéria de facto dada como provada”, as molduras penais em questão e o estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M., cremos que inexiste margem para qualquer redução das penas parcelares e única fixadas.

Com efeito as penas parcelares situam-se a 2 e a 1 ano dos seus respectivos limites mínimos, (encontrando-se ainda bem longe dos respectivos máximos), nenhum motivo havendo para se reduzir (e aproximá-las, ainda mais, dos ditos mínimos).

No que toca à “pena única” resultante do cúmulo jurídico, a mesma se apresenta a solução.

De facto, atento o estatuído no art. 71° do C.P.M., e confrontando-nos com uma moldura penal com um mínimo de 5 anos de prisão e um máximo de 13 anos de prisão, não se mostra de considerar a pena de 9 anos de prisão excessiva ou inflaccionada.

Com efeito, e como decidiu o Tribunal da Relação de Évora:

“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 09.03.2017, Proc. n.° 180/2017, de 23.03.2017, Proc. n.° 241/2017 e de 11.05.2017, Proc. n.° 344/2017).

Também já decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

–– Dito isto, e demonstrada a improcedência do presente recurso, uma outra questão importa tratar, e que tem a ver a “qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido ora recorrente.

Temos entendido que o Tribunal de recurso é livre para – nem deve dispensar – uma (re)qualificação (oficiosa) da matéria de facto dada como provada, devendo, como é óbvio, respeitar préviamente o “contraditório” e o “princípio da proibição da reformatio in pejus” consagrado no art. 399° do C.P.P.M.; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. de 24.03.2011, Proc. n.° 09/11).

E, nesta conformidade, observado que foi o contraditório, vejamos.

Em síntese que se julga adequada, colhe-se de factualidade dada como provada que o arguido, agindo de forma livre e voluntária, e em conformidade com um plano préviamente engendrado, procurou e encontrou duas jovens do Interior da R.P.C., (e que estão devidamente identificadas nos autos), aliciou-as a virem a Macau para se dedicarem à prostituição alegando que iriam ganhar grandes quantias de dinheiro, e após “cobrar” às mesmas uma quantia (que depois seria descontado do seu rendimento) para tratar da sua vinda (viagem) clandestina a Macau, trouxe-as (ilegalmente), instalando-as posteriormente em quarto de estabelecimento hoteleiro local onde se dedicaram a prestar serviços sexuais remunerados, apoderando-se o arguido de todo o dinheiro que aquelas conseguiam ganhar com tal actividade, ameaçando-as com violência quando pretenderam desistir, apenas se pondo termo a tal “situação” com a fuga e posterior denúncia pelas ditas jovens apresentada às autoridades policiais que, no seguimento, vieram a deter o arguido e ora recorrente.

E, atenta esta factualidade, cremos que se impõem alterar a “qualificação jurídico-penal” efectuada.

De facto, o crime de “tráfico de pessoas” pode ter como finalidade a “exploração sexual” do ofendido, mas não depende desta para a sua consumação, outro ilícito existindo (em concurso real) quando esta ocorre efectivamente.

Como (abordando a mesma questão) se consignou no Ac. da Rel. do Porto de 14.05.2014, Proc. n.° 6/08, (in “www.dgsi.pt”), no crime de tráfico de pessoas “não é necessária a verificação da exploração efectiva da vítima nem a extracção efectiva de um órgão seu, basta que o agente tenha essa intenção: para a consumação do crime de tráfico de pessoas não se exige que a vítima tenha, de facto, sido explorada sexualmente ou no seu trabalho, bastando que as acções referidas no n.° 1 do art. 160° do Código Penal” – art. 153°-A do nosso C.P.M. – “sejam praticadas com uma dessas intenções de exploração sexual ou laboral, ou com a intenção de extracção de órgãos”.

Com efeito, o crime de “tráfico” em questão contém uma intenção, (“para fins de”), de realização de um resultado que não faz parte do tipo, (a exploração sexual, a exploração do trabalho e a extracção de órgão), mas que é provocado por uma acção ulterior a praticar pelo próprio agente ou por um terceiro; (no mesmo sentido, v.d., também o Parecer n.° 3/111/2008 da 1ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa de Macau sobre a então “Proposta de Lei de Combate ao crime de tráfico de pessoas”).

No caso, e como resulta da retratada factualidade, as ofendidas não só foram aliciadas, recrutadas e transferidas (transportadas) para Macau, como foram, (efectivamente) “exploradas sexualmente”, dúvidas não havendo que os 2 crimes de “tráfico de pessoas” em que foi o recorrente condenado não “cobre” esta realidade.

E, então, como decidir?

Pois bem, nos termos do art. 163° do C.P.M. (redacção original vigente à data dos factos):

“Quem, como modo de vida ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando a sua situação de abandono ou de necessidade, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.

E, nos termos do art. 164° do mesmo código:

“Se, no caso previsto no artigo anterior, o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

Por sua vez, prescreve o art. 8° da Lei n.° 6/97/M de 30.07 que:

“1. Quem aliciar, atrair ou desviar outra pessoa, mesmo com o acordo desta, com vista à prostituição, ou que explore a prostituição de outrem, mesmo com o seu consentimento, é punido com pena de prisão de 1 a 3 anos.
2. Quem, com remuneração ou sem ela, angariar clientes para pessoas que se prostituem ou, por qualquer modo, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A tentativa é punível”.

Ora, ponderando nos transcritos comandos legais e na retratada factualidade dada como provada, da qual ressaltam os elementos típicos do art. 164° do C.P.M., cremos que a conduta do arguido ora recorrente integra também a prática de outros dois crimes de “lenocínio (agravado)”; (v.d., sobre os elementos deste crime, o Ac. deste T.S.I. de 07.01.2016, Proc. n.° 831/2015 – onde se consignou que “O crime de “lenocínio” p. e p. no art. 164° do C.P.M. implica a corrupção da vontade da vítima, atingindo o seu direito à “livre determinação sexual”.
Sendo esta “liberdade” um “bem pessoal”, (individual), cometidos se terão de ter – em concurso real – tantos crimes quantos os ofendidos” – e quanto ao concurso real entre o crime de “lenocínio” e o de “tráfico de pessoas”, o citado Ac. da Rel. do Porto de 14.05.2014, Proc. n.° 6/08 e de 07.08.2015, Proc. n.° 1480/07).

Por sua vez, duas sendo as ofendidas, que se encontravam em situação de clandestinidade, e provada estando que foram ambas pelo arguido instaladas num estabelecimento hoteleiro local, dois terão que ser os crimes de “acolhimento” cometidos.

Com efeito, entendendo-se – por maioria – que cometem-se “tantos crimes quanto os acolhidos”; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 29.06.2017, Proc. n.° 339/2017), – assim se devia decidir, havendo que se alterar a decisão recorrida em conformidade, ficando o arguido condenado pela prática em autoria e em concurso real de outros dois crimes de “lenocínio (agravado)” e de um outro crime de “acolhimento”, não se alterando a pena que lhe foi aplicada por respeito ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M..

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, julga-se improcedente o recurso pelo arguido interposto, alterando-se, oficiosamente, a qualificação jurídico-penal efectuada pelo T.J.B., declarando-se o arguido autor em concurso real de 2 crimes de “tráfico de pessoas”, p. e p. pelo art. 153°-A, n.° 1 do C.P.M., de 2 crimes de “lenocínio (agravado)”, p. e p. pelo art. 163° e 164° do mesmo C.P.M., e de 2 crimes de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 8 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$2.500,00.

Registe e notifique.

Dê-se observância ao estatuído no art. 78°, n.° 2, al. c) do C.P.P.M..

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 20 de Julho de 2017

(Relator)
José Maria Dias Azedo [Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, entendo que correcta não é a condenação do recorrente como autor da prática em concurso real de 2 crimes de “acolhimento”.
De facto – inversamente ao que sucede no crime de “tráfico de pessoas” ou de “lenocínio”, onde em causa está a “liberdade” (individual) do ofendido – e como em situações análogas tenho vindo a entender, (cfr., v.g., as declarações de voto anexas aos Acs. deste T.S.I. de 07.12.2016, 25.05.2017 e 06.07.2017, Procs. n.° 871/2016, 234/2017 e 262/2017), sou de opinião de que atento o “bem jurídico tutelado” com a norma incriminatória do art. 15° da Lei n.° 6/2004 – não tão enfocada no interesse pessoal e particular de cada (“auxiliado” ou) “acolhido”, mas sim, no “interesse geral da comunidade”, traduzido em que a imigração se processe de forma regular e de harmonia com o interesse público que a regula – estamos, (no caso), perante uma “unidade criminosa”, (independentemente do número de imigrantes acolhidos), adequado não sendo o entendimento de que se cometem “tantos crimes quantos os imigrantes acolhidos”; (neste sentido, pode-se também ver o referido Parecer n.° 3/111/2008 da 1ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa quanto à então Proposta de Lei denominada “Combate ao crime de tráfico de pessoas”)].

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta) Tam Hio Wa
Proc. 570/2017 Pág. 4

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