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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
  A e mulher B intentaram acção declarativa com processo ordinário contra Herdeiros desconhecidos de C e D, interessados incertos e Ministério Público pedindo a declaração de que são titulares do domínio útil de dois terços indivisos do prédio rústico do Largo da Cordoaria, em Coloane, que confronta a Norte com terreno do Instituto, a Sul com Caminho da Cordoaria, a Este com terreno foreiro e a Oeste com Largo da Cordoaria, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. XXX, do Livro X-XX.
O Exm.º Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Em recurso interposto pelos autores, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), negou provimento ao recurso.
Inconformados, recorrem os autores para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
Para tal, formularam as seguintes conclusões úteis:
No caso dos autos está-se no campo das relações meramente privadas, em que os Recorrentes possuíram, como continuam a possuir o referido prédio, e em tudo se comportando como proprietários, à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada. sendo como tal reconhecidos por todos, durante esse tempo, adquirindo o direito correspondente aos actos praticados, através do mecanismo da usucapião, o qual aqui se destina apenas a repor um trato sucessivo.
Por outro lado, estatui o próprio art. 5.º, n.º 4 da Lei 6/80/M que "inexistindo título de aquisição ou registo deste ou prova de pagamento do foro respeitante a prédio urbano a sua posse por particular há mais de vinte anos faz presumir o seu aforamento pelo território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião, nos termos da lei civil".
E conforme alega, muito bem, o Exmo. Senhor Juiz-adjunto na sua declaração de voto vencido: "A usucapião aqui destina-se apenas a repor um trato sucessivo, não tendo qualquer repercussão na dominialidade do direito já há muito, manifestamente, de natureza privada".
Um terreno que tenha entrado no regime de propriedade privada fica sujeito ao direito privado, ao direito civil geral.
Salvo o devido respeito, não é necessário tamanha ousadia jurídica para se entender que tal interpretação retroactiva do artigo 7º da Lei Básica, tal como pretende vingar a douta sentença da Primeira Instância que o Tribunal de Segunda Instância veio manter, e do qual se recorre, na esteira da nova jurisprudência que se tem vindo a assistir brotar desde o estabelecimento da R.A.E.M., representa por si só uma quebra da continuidade e de respeito pelos princípios e regras até então vigentes, nomeadamente, pelos direitos já constituídos e já radicados na esfera jurídica dos particulares, legitimando expropriações sem o pagamento da devida compensação, à margem do previsto na Lei Básica.
Concordando os Recorrentes com a declaração de voto vencido do Exmo. Senhor juiz-Adjunto dos autos de que ora se recorre, e que não acompanha o então acórdão que fez vencimento, por duas ordens de razões: "Em primeiro lugar, a partir do momento em que o aforamento é constituído e o domínio útil de um terreno do Estado é afecto à satisfação de interesses privados, a constituição do direito real em que se traduz o domínio útil assume a natureza privada e fica sujeito ao regime do domínio privado, assumindo a natureza perpétua ou tendencialmente perpétua (...) Depois, em segundo lugar, acho que a interpretação feita não leva em conta a salvaguarda feita pela Lei Básica de respeitar as situações de direito privado já constituídas à data da sua entrada em vigor. E quanto ao caso em apreço não pode haver dúvidas, não só pela existência do contrato de aforamento, como pela própria presunção resultante do registo e não ilidida, da constituição, existência e titularidade do domínio privado dos particulares (...) A usucapião aqui destina-se apenas a repor um trato sucessivo, não tendo qualquer repercussão na dominialidade do direito já há muito, manifestamente, de natureza privada (...)".
Pelo que se considera que o douto acórdão violou os artigos 1175º, 1184º, 1185º, 1187º, alínea a), 1193º, 1212º do Código Civil de Macau, art. 5º da Lei de Terras, e os artigos 7º, 8º e 103º da Lei Básica.

II – Os factos
Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
O prédio rústico, S/N do Largo da Cordoaria (Coloane), está descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a folhas XXX do livro X-XX, com a área de X.XXX,XX metros quadrados, sito na Freguesia de São Francisco Xavier (Coloane) (Doc. N° l) (facto do artigo 1º).
Confrontando a (facto do artigo 2º):
* S/N - Largo da Cordoaria; N - Terreno do Instituto ( Desc. XXXX ); S - Caminho da Cordoaria; E - Terreno foreiro ( Desc. XXXX ); W - Largo da Cordoaria (Doc. N° l )
Encontra-se, porém, o mesmo omisso na Matriz Predial (Doc. nº 2) (facto do artigo 3º).
O valor matricial não vem indicado na aludida certidão da Conservatória do Registo Predial (Doc. nº l) (facto do artigo 4º).
Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, a favor do Território de Macau, o seu domínio directo, conforme inscrição nº XXXX, a fls. XXX do Livro X-X (Doc. N° l ) (facto do artigo 6º).
Encontra-se aí inscrito o domínio útil do mesmo a favor de uma sociedade civil constituída por C, E e a mulher china D ( Doc. Nº l ) (facto do artigo 7º).
O domínio útil do aludido terreno descrito sob o N° XXXX, a fls. XXX do Livro X-XX está inscrito sob o N° XXXX, a fls. XXXX do Livro X-X, a favor de uma sociedade civil constituída por C, E e a mulher china D, desde 12/06/1916, por lhes ter sido dado de aforamento pela Repartição Superior da Fazenda por escritura de 12/06/1916 (Doc. N° l) (facto do artigo 8º).
Este prédio rústico está inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, em comum e em partes iguais, em nome de C, E e D como ademais consta da inscrição N° XXXX, a fls. XXXX do Livro X-X (Doc.N° l) (facto do artigo 9º).
O aludido terreno, situado na Ilha de Coloane, em favor de C, E e D, descrito na C.R.P. sob o N° XXXX, encontra-se inscrito no Livro de Registo de Foros, Modelo vinte e um (X/XX), sob o N° XXX (Doc. N° 3) (facto do artigo 10º).
O contrato de aforamento, relativamente ao supra-mencionado imóvel, celebrado na Repartição Superior da Fazenda, em 12 de Junho de 1916, menciona como segundos outorgantes, C casado, E, casado e D, viúva de F (Docs. Nos 4 e 5 ) (facto do artigo 11º).
O Estado outorgara, em escritura de aforamento, em 12/06/1916, que permitiu aos foreiros, C, E e mulher china D inscreverem na Conservatória do Registo Predial em seu favor o domínio útil do terreno, acima-mencionado (Doc. N° 1) (facto do artigo 12º).
Tendo o aludido F vindo a falecer em 3 de Fevereiro de 1916, como ademais consta do aludido contrato de aforamento (Docs. Nos 4 e 5) (facto do artigo 13º).
Pelo menos, desde 1982, até à data da sua morte do falecido G, o negócio de jardinagem, sob a firma de "H" (Doc. N° 7) (cfr. fls. 89 a 96) (facto do artigo 18º).
Tendo este aí, igualmente, construído aí uma casa, de um piso (rés-do chão com mezanine) (facto do artigo 19º).
A qual tem hoje o N° XX do Largo da Cordoaria (facto do artigo 20º).
O pai do Autor G, pagou as contribuições e impostos devidos, na convicção de que não prejudicava ninguém, em posse pública, pacífica e sem interrupção, dos 2/3 (dois terços) indivisos do prédio rústico (docs. Nos 7 a 12 ) (facto do artigo 24º).
Por outro lado, um dos co-proprietários, então, do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a folhas XXX do Livro X-XX, era E casado com I (facto do artigo 29º).
O qual era, igualmente, agricultor de hortaliças no aludido terreno (facto do artigo 30º).
Os quais faleceram na Ilha de Coloane, em Macau, em meados do ano de 1941, sem testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade (doc. n° 13) (facto do artigo 32º).
Por douto acórdão, datado de 10/07/1996, lavrado de fls. XXX a XXX verso da acção especial de justificação de qualidade de herdeiro n° XXX/XX , l° Juízo/4ª Secção, do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, foram J, casada com K, no regime de separação de bens, natural de Macau de nacionalidade portuguesa, residente no [Endereço (1)]; L, casada com M, no regime de separação de bens, natural de Macau, residente no [Endereço (2)]; N, casada com O, no regime de comunhão de adquiridos, natural de Macau, de nacionalidade portuguesa, residente no [Endereço (3)]; P, solteira, maior, funcionária da Câmara das Ilhas, natural de Macau, residente no [Endereço (2)]; Q, casado com R, no regime de comunhão de adquiridos, natural de Macau, de nacionalidade portuguesa, residente no [Endereço (1)]; S, solteiro, maior, natural de Macau, de nacionalidade portuguesa, residente no [Endereço (1)]; T, solteiro, maior, de nacionalidade portuguesa e residente no [Endereço (4)] e U1, também conhecido por U2, solteiro, maior, natural de Macau, de nacionalidade portuguesa, residente no [Endereço (5)], declarados "como únicos e universais herdeiros do seu falecido ascendente E", somente quanto à quota parte adquirida do falecido E (docs. Nos 13 e 1) (facto do artigo 33º).
Ao declarar os acima-mencionados indivíduos únicos e universais herdeiros do falecido E, foi-lhes igualmente conferido o direito de sucederem no bem imóvel por este (E) deixado, descrito com o nº XXXX, a folhas XXX do Livro X-XX da Conservatória do Registo Predial de Macau (docs. nos 13 e 1) (facto do artigo 34º).
Sendo os aludidos indivíduos os únicos herdeiros sucessíveis de E, que foi casado com I, seus avós maternos (doc. n° 13) (facto do artigo 35º).
Tendo E e I falecido na Ilha de Coloane, em meados do ano de 1941, sem deixarem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade (doc. n° 13 ) (facto do artigo 36º).
Presentemente, são os A.A. os únicos, que cultivam a totalidade do prédio rústico (facto do artigo 42º).
Por outro lado, da escritura de aforamento do terreno em causa, celebrada em 12 de Junho de 1916, consta que os segundos outorgantes C e E eram casados, sem se precisar com quem e que a mulher china D, com a qual aqueles haviam constituído uma sociedade civil, era viúva do china F. (docs. nos 4 e 5) (facto do artigo 48º).
Tendo D enviuvado do F, em 3 de Fevereiro de 1916, pouco antes da outorga da mesma escritura de aforamento (docs. nos 4 e 5) (facto do artigo 49º).
Tendo em 1983, procedido à electrificação da sua habitação (doc. n° 14) (facto do artigo 61º).
Tendo o G falecido em 15 de Março de 1989, em Zhuhai, na República Popular da China (doc. n° 15) (facto do artigo 63º).
O Autor instalou-se com a sua Mulher e os seus três filhos na construção residencial feita pelo seu falecido pai no aludido terreno, dela fazendo a sede da sua vida social e familiar desde o ano da morte de G (docs. nos 16 a 19) (facto do artigo 64º).
Em 1970, o pai do A. G com ajuda do ora Autor Marido, abriu um poço no aludido terreno, afim de obter água para o cultivo da hortaliça e das flores e para sua habitação própria (facto do artigo 67º).
Em 1983, o G electrificou a sua aludida casa (doc. n° 14) (facto do artigo 68º).
Em 2001, o Autor Marido instalou água canalizada em sua habitação, devido a exigências do I.A.M.C. (facto do artigo 69º).
Dedicando-se, aí, ao negócio de jardinagem, sob a firma de "H” (facto do artigo 7Iº).
Pagando a contribuição industrial pela actividade de jardinagem. (docs. nos 18 a 20) (facto do artigo 73º).
Têm os AA. possuído, em seu nome, desde então (1989), a aludida parcela de terreno (facto do artigo 74º).
Os AA. sempre dispuseram dessa parcela de terreno, como melhor lhes aprouveram (facto do artigo 75º).
Sendo reconhecidos por todos, designadamente pela vizinhança, como seus proprietários (facto do artigo 76º).
Tudo, sem oposição de ninguém, "a vista de toda a gente, considerando-se os mesmos proprietários da aludida parcela de terreno (facto do artigo 77º).
E, na convicção de que não prejudicaram, nem prejudicam ninguém (facto do artigo 78º).
Os Autores tem vindo a possuí-la, pagando as contribuições e impostos devidos e suportando as despesas com obras de beneficiação (doc. nos 16 a 20) (facto do artigo 79º).
Porém, continuam, ainda, presentemente a cultivar a referida parcela de terreno, dedicando-se os mesmos aí à actividade de jardinagem (doc. n° 20) (facto do artigo 81º).
Os Autores jamais pagaram o foro a quem quer que seja (doc. n° 21) (facto do artigo 85º).
E, nunca ninguém exigiu o foro aos AA. (doc. n° 21) (facto do artigo 86º).
Tendo pai do A. marido, G, pago o foro devido até ao ano de 1982 (doc. n° 21) (facto do artigo 87º).

III – O Direito
1. A questão a resolver
A questão a resolver é a de saber se o domínio útil registado na Conservatória do Registo Predial, antes de 20 de Dezembro de 1999, a favor de particulares, pode ser adquirido por usucapião, mediante processo judicial intentado após aquela data, quando o domínio directo pertencia ao Território de Macau, sendo agora o seu titular a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
Aquele domínio útil resultou de contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, celebrado por escritura em 12 de Junho de 1916, entre o titular do direito de propriedade, o Território de Macau, e C, E e D, tendo o direito de propriedade sido desmembrado no domínio directo – de que continuou a ser titular o Território, agora Região Administrativa Especial de Macau – e no domínio útil, que foi transferido para aqueles, mediante o pagamento de foro, nos termos art. 1653.º do Código Civil de 1867.
  
  2. O regime das terras em Macau
  O TSI considerou que o art. 7.º da Lei Básica impede que o domínio útil concedido por aforamento pelo Território de Macau e pertencente a particulares possa ser adquirido por usucapião, porque aquele domínio útil não passou para o regime de propriedade privada.
  Vejamos se é assim.
  Preliminarmente convém conhecer um pouco do direito relativo à enfiteuse e ao regime das terras, em Macau.
  A legislação dos terrenos vagos dos territórios pertencentes ao chamado ultramar português – em que o Território de Macau se incluía – estabeleceu, a partir de meados do século XIX, que os terrenos vagos que não estivessem na propriedade legítima de particulares, são do domínio do Estado ou da respectiva província ultramarina.
  Nessa legislação previa-se que os terrenos vagos do Estado não podiam ser adquiridos por usucapião, mas apenas por venda ou concessão.
  Não obstante, a interpretação dessa legislação não foi pacífica no Território de Macau.
A partir da data da sua instalação, em Abril de 1993, a jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça de Macau mostrou-se dividida quanto a saber se, face aos arts. 5.º, 6.º, 7.º e 8.º da Lei de Terras (Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho) e a normas jurídicas de outros diplomas legais, podia ou não ser declarada a usucapião do direito de propriedade de terrenos a favor de particulares com base na posse, se estes não comprovassem a existência de um título formal de aquisição do direito.
Esta divisão do mais Alto Tribunal do Território de Macau reflectia a divisão da doutrina, com vários autores a pronunciarem-se em sentidos diversos.
Pronunciaram-se negativamente acerca da possibilidade de ser declarada a usucapião do direito de propriedade de terrenos vagos a favor de particulares com base na posse, se estes não comprovassem a existência de um título formal de aquisição do direito, entre muitos, os Acórdãos do Tribunal Superior de Justiça de 28.9.94 (Processo n.º 197), 28.9.94 (Processo n.º 203), 7.12.94 (Processo n.º 213) e 22.9.93 (Processo n.º 1).
Pronunciaram-se favoravelmente os Acórdãos de 9.7.93 (Processo n.º 31) e de 29.3.95 (Processo n.º 235).
Por Assento de 18.10.95 (Processo n.º 295) vingou a tese negativa, tendo sido uniformizada a jurisprudência no sentido que “Nas acções de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre terrenos, intentada contra o Território de Macau, incumbe ao autor provar a existência de título formal de aquisição”.
Entretanto, o legislador, conhecendo a divisão da jurisprudência e o facto de muitos particulares, estando há longo tempo na posse de terrenos e imóveis, mas que, por não possuírem título formal de aquisição do direito, não conseguiam regularizar a situação dos imóveis, aditou um n.º 4 do art. 5.º à Lei de Terras, pelo qual “Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil”.
Resolveu-se, assim, a situação de muitos particulares que estavam na posse de terrenos há muitos anos, mas que não estavam registados na Conservatória do Registo Predial, nem dispunham de um título formal de aquisição do direito, até porque a nova lei permitiu que aqueles que viram improceder as acções judiciais em que tinham pedido o reconhecimento do direito de propriedade, viessem a propor uma nova acção, pedindo agora a aquisição do domínio útil por usucapião e, por outro lado, autorizou a contagem desde o início do exercício do tempo da posse invocada para efeitos de usucapião do domínio útil (art. 3.º da Lei n.º 2/94/M, de 4.7).
Há que recordar que o mencionado Assento constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais, nos termos da alínea b) do n.º 6 do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8.10, na redacção da Lei n.º 9/1999.
De acordo com o Acórdão do Tribunal Superior de Justiça, de 13.2.96 (Processo n.º 413), o Assento de 18.10.95 aplica-se também a prédios urbanos e não apenas a meros terrenos.

3. Aforamento de imóveis do Território de Macau.
Por outro lado, nunca suscitou dúvidas ao Tribunal Superior de Justiça nem a nenhum dos seus juízes, que podia ser adquirido por usucapião o domínio útil de prédios, em que o domínio directo pertencesse ao Território, desde que aquele domínio útil já não integrasse o património do Estado - Acórdãos de 14.7.93 (Processo n.º 16), 22.9.93 (Processo n.º 36) e 13.10.93 (Processo n.º 67), todos proferidos por unanimidade.
Na verdade, nunca suscitou dúvidas, nem na doutrina nem na jurisprudência, mesmo aos juízes que nunca admitiram a usucapião de terrenos vagos sem a existência de um título formal de aquisição, que “A sujeição ao regime enfitêutico de um terreno vago do Território implica o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil, continuando o primeiro a integrar o património do Território enquanto o segundo transita para o âmbito da propriedade privada” (sumário do Acórdão do Tribunal Superior de Justiça de 22 de Setembro de 1993, Processo n.º 361. O sublinhado é nosso).
E no Acórdão do mesmo Tribunal, de 13 de Outubro de 1993, no Processo n.º 672, também proferido por unanimidade, sumariou-se: “Se o Território der de aforamento um bem patrimonial, o domínio útil transita para o regime da propriedade privada, sem sujeição ao artigo 8.º da Lei de Terras” (sublinhado nosso).
Esta jurisprudência interpretava bem o direito ao tempo vigente e aplica-se, manifestamente, ao caso dos autos, como veremos, de seguida.

4. A enfiteuse. O caso dos autos
O prédio dos autos está submetido ao regime da enfiteuse, estando o domínio directo registado na Conservatória do Registo Predial a favor do Território de Macau e o domínio útil registado na mesma Conservatória a favor de uma sociedade civil constituída por C, E e a mulher china D.
A enfiteuse resulta de uma escritura de aprazamento ou aforamento celebrada em 12 de Junho de 1916, entre a Repartição Superior da Fazenda e aqueles indivíduos atrás referidos, pelo qual o direito de propriedade, pertencente ao Território de Macau, foi desmembrado em dois domínios, o domínio directo – de que continuou a ser titular o Território, agora Região Administrativa Especial de Macau – e o domínio útil, que foi transferido para aqueles, mediante o pagamento de foro, nos termos art. 1653.º do Código Civil de 1867.
Ora, como se diz no Acórdão Tribunal Superior de Justiça, de 14 de Julho de 1993, Processo n.º 163, numa hipótese semelhante à dos autos, e que por isso se aplica à nossa situação:
  “Era uma situação que consubstanciava um contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, que o art. 1653.º do Cód. Civil de 1867, então vigente, dizia ser aquele pelo qual «o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou canon».
  Por força da constituição da enfiteuse ocorre o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil, como hoje resulta expressamente do art. 1491.º do Cód. Civil de 1966, desmembramento esse já defendido igualmente por alguns autores na vigência do Cód. de Seabra.
  «Segundo o nosso Código, escrevia por exemplo Guilherme Moreira (Instituições, III, § 110), não pode pois dizer-se que os direitos do enfiteuta recaiam in re aliena, considerando-se o domínio directo como a propriedade da substância do prédio e o domínio útil como um mero usufruto. Os direitos do enfiteuta e os do senhorio directo são da mesma natureza, no sentido de que tanto um como outro têm a fruição de utilidades que estão contidas no direito de propriedade, fraccionando-se assim esse direito, e gozando cada um deles, pelo que respeita à fracção que lhe pertence, do direito de propriedade, como em coisa própria» .4
  Do exposto resulta que, por força da escritura de 20.01.1894, a propriedade perfeita do prédio urbano n° XX-X da Ilha da Taipa, até então na titularidade do Estado, desdobrou-se em duas propriedades: a do domínio directo que continuou a integrar o património do Estado; e a do domínio útil que transitou para o âmbito da propriedade privada5, na circunstância a de V.
  E a transição da propriedade do Estado para o sector privado, através do contrato de enfiteuse, era expressamente contemplada no art. 5.º da Carta de Lei de 1856, então em vigor, como igualmente o é hoje no art. 29.º da Lei 6/80/M.
  Assim, e diversamente do sustentado pelo EMMP, é irrelevante a invocação do art. 8.º da Lei 6/80/M, que estabelece, inter alia, a proibição de usucapião sobre os terrenos do domínio privado do Território, onde se integram os terrenos vagos. Com efeito, esta proibição atinge apenas o domínio directo que incide sobre o prazo dos autos, por continuar a fazer parte do domínio privado do Território, mas não atinge o domínio útil incidente sobre o mesmo prazo (e é apenas dele que cuida a presente acção), porquanto este, desde 20.01.1894, faz parte da propriedade privada”.
  Estas palavras do Acórdão do Tribunal Superior de Justiça têm inteira aplicação ao caso dos autos.
Na verdade, como ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA6, o domínio útil é uma verdadeira propriedade do prazo.
Se o domínio útil foi criado e cedido onerosamente a favor de particulares é evidente que a propriedade do domínio útil passou a ser uma propriedade privada, sendo, de todo, irrelevante, que o domínio directo continue a ser público.
Aliás, o domínio útil não pode ser extinto à revelia da vontade do enfiteuta, salvo sempre o caso de expropriação por utilidade pública (art. 1513.º do Código Civil de 1966). [Evidentemente que o enfiteuta podia ceder o domínio útil ao titular do domínio directo, nos termos do art. 1498.º do Código Civil de 1966 e o enfiteuta podia encampar (abandonar) o prazo em caso de deterioração ou inutilização do prédio, nos termos do art. 1509.º do mesmo diploma legal].
Já o enfiteuta pode remir o foro, adquirindo o domínio directo pelo preço fixado na lei, contra a vontade do senhorio [arts.1501.º, alínea f) e 1512.º do Código Civil de 1966]. Mas nos imóveis concedidos pelo Território de Macau ou pela RAEM não é consentida a remição do foro (n.º 2 do art. 45.º da Lei de Terras).
Tudo isto reforça a ideia de que a titularidade pública do domínio directo não tem qualquer influência na natureza privada do domínio útil, se este foi constituído – como foi o caso - a favor de particulares para estes o utilizarem livremente.
O domínio útil só voltaria a ser público se uma pessoa colectiva pública o adquirisse, o que nunca aconteceu.

5. O art. 7.º da Lei Básica. Propriedade privada
Entretanto, a partir de 20 de Dezembro de 1999, passou a vigorar a Lei Básica - verdadeiro Estatuto Constitucional da RAEM - em cujo art. 7.º se dispõe:
“Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau ...”
   Esta norma não poderá deixar de significar que todos os terrenos sitos em Macau são propriedade do Estado, salvo aqueles sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por particulares (como se expressa o n.º 1 do art. 5.º da Lei de Terras), de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM.
   Por conseguinte, o n.º 4 do art. 5.º da Lei de Terras, tem de considerar-se revogado pelo art. 7.º da Lei Básica pois que, se todos os solos são propriedade do Estado, salvo aqueles que tenham sido reconhecidos como privados antes do estabelecimento da RAEM, não se pode adquirir o domínio útil – de que não há título de aquisição ou registo deste - sobre terrenos após 19.12.1999, já que este direito real menor é incompatível com o direito de propriedade do Estado.
No entanto, sobre o domínio público dos autos foi constituído definitivamente, de acordo com a lei então vigente, um direito de propriedade privada, que estava reconhecido como tal, como se expressa a Lei Básica, porque foi adquirido por escritura pública e tinha um registo na respectiva Conservatória.
Ora, a Lei Básica não impede que a propriedade privada se adquira pelas formas previstas na lei ordinária (art. 1242.º do Código Civil vigente). E a usucapião é uma delas.
Antes pelo contrário, a Lei Básica protege o direito à propriedade privada no seu art. 6.º.
Por outro lado, este TUI já teve oportunidade de se pronunciar, a propósito de uma questão diferente da que agora nos ocupa, sobre o art. 7.º da Lei Básica, no Acórdão de 5 de Julho de 2006, no Processo n.º 32/2005.
Estava em causa a pretensão de particular de ver reconhecida a propriedade de imóvel, de que não tinha um título de aquisição nem o mesmo estava registado na Conservatória do Registo Predial. Subsidiariamente, o autor pedia o reconhecimento da titularidade do domínio útil, nos termos do n.º 4 do art. 5.º da Lei de Terras.
Nesse Acórdão dissemos o seguinte:
“... o domínio útil só constitui a excepção prevista no art. 7.º da Lei Básica quando for reconhecido legalmente antes do estabelecimento da Região, e assim continua a integrar na esfera de particulares após a sua criação”.
Foi o caso. O domínio público dos autos foi reconhecido legalmente como propriedade privada antes do estabelecimento da Região. Foi isto que defendeu, e bem, o voto de vencido de um dos Juízes do TSI.
O Acórdão recorrido, ao valorizar o facto de o domínio directo pertencer à RAEM, como que expandindo a sua força para o domínio útil, fez errada interpretação da lei.

6. Usucapião de imóveis. Composse.
Nenhuma dúvida se pôs no processo que os factos provados integram a aquisição do domínio útil por usucapião, por parte dos autores. A essa conclusão chegou a sentença de 1.ª instância.
Na verdade, os autores, por si e pelo seu antecessor, pai do autor marido, vêm praticando desde 1970, sobre 2/3 indivisos do prédio um conjunto de actos como os que pratica um proprietário do domínio útil, com a convicção de serem os seus titulares.
Esta situação configura o conceito de posse do domínio útil.
A posse caracteriza-se por uma situação de facto, o corpus, os actos materiais praticados sobre a coisa e por um elemento psicológico, o animus, a intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere.
Ora, existem os actos materiais praticados sobre a coisa e os autores agem como titulares do domínio útil.
A posse dos autores é pacífica, pois foi adquirida sem violência e é publica, já que todos a podem conhecer (arts. 1261.º e 1262.º do Código Civil de 1966).
O art. 1287.º do Código Civil de 1966 determina que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo (no máximo 20 anos), faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito de propriedade a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
A posse do domínio útil foi adquirida pelos autores em 1970, é pública e pacífica, pelo que os autores adquiriram a titularidade de 2/3 do domínio útil do prédio, por usucapião, nos termos dos arts. 1261.º, 1262.º, 1287.º e 1296.º do Código Civil de 1966.
O Código Civil de 1999 deixou de prever a enfiteuse e a partir da entrada em vigor do Código é nula a constituição de qualquer nova enfiteuse sobre bens do domínio privado dos particulares (art. 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto). Mas às situações de enfiteuse, relativas a bens do domínio privado dos particulares constituídas antes da entrada em vigor do novo Código continua, até à sua extinção, a ser aplicável o regime constante do Código Civil de 1966 (art. 25.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto).

7. Composse.
A sentença de 1.ª instância julgou improcedente a acção com dois fundamentos:
- Não é possível a posse sobre uma fracção de um bem (2/3, como no caso dos autos), pelo que isso inviabilizaria a usucapião, que se baseia na posse sobre um bem;
- O art. 5.º, n.º 3 da Lei de Terras fala da aquisição de domínio útil de prédio urbano e não de terreno rústico.
- Desconhece-se se a área das construções não exerce 10%, e o art. 2. º, n.º 1 da Lei n.º 2/94/M estatui que o domínio útil só pode ser adquirido por usucapião se a extensão dos prédios urbanos não exceder em 10% a área ocupada pelos edifícios que nela estejam incorporados.
Trata-se de manifestos equívocos.
Quanto à primeira questão:
Diz o Ex.mo Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo que obviamente que não há posse de 2/3 de um livro, pelo que não se pode usucapir 2/3 de um livro ou de um imóvel.
Mas não é assim.
Suponhamos que W oferece a X e Y, em conjunto, um livro. Claro que X e Y passam a ser comproprietários do livro e compossuidores do mesmo, cabendo a cada um 1/2 indiviso, tanto da propriedade, como da posse deste direito.
Suponhamos que W vende a X, Y e Z um terreno. Cada um destes passa a ser proprietário de 1/3 indiviso do terreno (n.º 2 do art. 1299.º do Código Civil e n.º 2 do art. 1403.º do Código Civil de 1966) e a possuir 1/3 do direito de propriedade do terreno.
Aliás, nunca vimos defender a tese que agora vem sustentada e sempre se teve como pacífico que a titularidade de um direito real correspondente à posse pode ser em comum, por mais de uma pessoa7.
De resto, a lei prevê expressamente a composse no art. 1286.º do Código Civil de 19668:
“ARTIGO 1286.º
(Defesa da composse)
1. Cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro.
2. Nas relações entre compossuidores não é permitido o exercício da acção de manutenção.
3. Em tudo o mais são aplicáveis à composse as disposições do presente capítulo”.
Nada obsta, pois, à composse e à usucapião, em relação a uma fracção indivisa de um imóvel.

8. Lei de Terras
No que toca à questão de o art. 5.º, n.º 3 da Lei de Terras falar da aquisição de domínio útil de prédio urbano e não de terreno rústico, há que ter em atenção que tal norma está directamente relacionada com o n.º 4 do mesmo artigo.
Os n. os 3 e 4 do art. 5.º da Lei de Terras foram aditados pela Lei n.º 2/94/M, de 4 de Julho. Esta Lei foi elaborada face à divisão da jurisprudência, de que se falou atrás e tinha por finalidade resolver a questão da titularidade de terrenos em que não havia título de aquisição ou registo deste.
Ora, o n.º 4 do art. 5.º da Lei de Terras não se aplica ao caso dos autos uma vez que tal norma só visa os imóveis em que não havia título de aquisição ou registo deste.
Dispõe tal norma: “Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil”.
Não era o caso do imóvel dos autos, que foi adquirido por escritura pública e que está registado há dezenas de anos.
Por consequência, também se não aplica à aquisição por usucapião do domínio público do prédio dos autos o disposto no art. 2.º da Lei n.º 2/94/M (invocado pelo Ex.mo Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo) onde se estatui:
“A extensão dos prédios urbanos a que se refere o n.º 4 do artigo 5.º da Lei n.º 6/80/M, na redacção dada por esta lei, não pode exceder em dez por cento a área ocupada pelos edifícios que nela estejam incorporados”.
Logo, o n.º 3 do mesmo art. 5.º também não se aplica aos imóveis como o dos autos.
De resto, mesmo que se aplicasse aos imóveis com título de aquisição ou registo, esta norma não impede a aquisição do domínio útil dos prédios rústicos objecto de concessão pelo Território, por usucapião. A tal aquisição é, naturalmente, aplicável a lei civil, como vimos atrás.
Improcedem, portanto, os obstáculos suscitados à aquisição por usucapião de fracção do imóvel dos autos.

IV – Decisão
  Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido, julgam a acção procedente e declaram que os autores são titulares do domínio útil de dois terços indivisos do prédio rústico do Largo da Cordoaria, em Coloane, que confronta a Norte com terreno do Instituto, a Sul com Caminho da Cordoaria, a Este com terreno foreiro e a Oeste com Largo da Cordoaria, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. XXX, do Livro X-XX.
Sem custas em todos os graus de jurisdição.

Macau, 16 de Janeiro de 2008.
   
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 Tribunal Superior de Justiça, Jurisprudência, 1993, p. 189.
2 Tribunal Superior de Justiça, Jurisprudência, 1993, p. 268.
3 Tribunal Superior de Justiça, Jurisprudência, 1993, p. 108.
4 Sublinhado nosso.
5 Sublinhado nosso.
6 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 1972, 1.ª edição, Volume III, p. 485 a 487.
7 Cfr., por exemplo, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., 1987, 2.ª edição, Volume III, p. 19.
8 Corresponde ao art. 1211.º do Código Civil vigente.
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Processo n.º 41/2007