Processo nº 697/2017 Data: 28.09.2017
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Julgamento à revelia.
Declarações do arguido.
Leitura.
Oposição do Defensor.
SUMÁRIO
1. Ainda que em sede de Inquérito tenha o arguido autorizado a leitura das suas anteriores declarações para o caso de não (poder) comparecer a audiência de julgamento, não deve o Tribunal proceder à sua leitura se, em audiência, o Defensor do arguido a esta leitura se opuser, pois que se se reconhece ao Defensor o poder de, em situação idêntica, (ausência do arguido), autorizar a leitura das suas declarações antes prestadas, não se vislumbram razões para que, nas mesmas circunstâncias, não possa também o Defensor – a quem compete assegurar a defesa do arguido ausente – opor-se à dita leitura.
2. Sendo o processo penal o “ponto de equilíbrio” (que em determinado momento se consegue obter) entre o “jus puniendi”, (a “necessidade de prevenção e repressão criminal”), e os “direitos (de defesa) do arguido”, evidente é que aquele não pode ser alcançado a “todo o custo” ou “sem se olhar a meios”.
3. Então, se se reconhece ao arguido o (legítimo) direito de em audiência de julgamento se manter silente, óbvio nos parece que adequada não é a leitura das suas anteriores declarações quando, em audiência, e na sua ausência, o seu Defensor a tal se oponha.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 697/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar os (1° e 2ª) arguidos A e B, como co-autores de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18° da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos; (cfr., fls. 211 a 218 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, os arguidos recorreram para, na sua motivação, e em conclusões, imputar à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 239 a 241-v e 243 a 245-v).
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Respondendo, diz o Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 249 a 253).
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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Recorrem os arguidos A e Li Junham do acórdão exarado a fls. 211 e seguintes dos autos, que os condenou na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, pela co-autoria de um crime de falsificação previsto e punível pelo artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004.
Sustentam que, ao autorizar a leitura de declarações prestadas pela 2.ª arguida perante o Ministério Público, em Inquérito, que ela própria solicitara em escrito por si assinado e junto ao processo, mas a que o defensor se opôs em audiência, o tribunal incorreu em erro na interpretação das normas atinentes ao papel do defensor quando representa o arguido ausente, acrescentando que há erro notório na apreciação da prova.
O Ministério Público, na sua resposta, veicula o entendimento de que não há razões válidas, antes pelo contrário, para recusar a leitura das declarações, pronunciando-se pelo acerto da decisão tomada pelo tribunal colectivo a tal propósito.
Vejamos, começando pelo vício de erro notório na apreciação da prova.
Uma coisa é apreciar mal, erradamente, a prova. Outra coisa, diversa, é levar em conta provas que não podiam ser consideradas na formação da convicção. Só no primeiro caso, e desde que o erro seja notório, é que ocorre o vício previsto no artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal, traduzido numa falha evidente na análise da prova, e sendo-lhe indiferente a catalogação da prova como válida ou inválida. Na segunda hipótese, a utilização e a valoração de prova não permitida integra erro de direito, a conhecer nos termos do artigo 400.°, n.° 1, do Código de Processo Penal.
Pois bem, a nosso ver, o caso trazido a escrutínio reconduz-se à segunda das hipóteses, não tendo sido invocada matéria que possa integrar o falado vício de erro notório na apreciação da prova, que assim se deve ter por improcedente.
Quanto à questão da leitura das declarações da 2.ª arguida em audiência, partilhamos aqui inteiramente as judiciosas reflexões da Exm.a colega vertidas na sua resposta à motivação do recurso.
A intervenção do defensor, no processo penal, não pode deixar de estar subordinada à vontade e orientação do arguido, no que toca a actos por este exercitáveis e, em particular, quando estão em causa questões de consciência, como a Exm.a colega explica com proficiência. Se o arguido quer prestar declarações sobre o objecto do processo, o que é aliás um direito seu, não pode o defensor impedi-lo. Do mesmo passo, se o arguido quer que declarações suas, prestadas em fase anterior, sejam lidas em sede de audiência – o que é também uma prerrogativa sua –, não se vê com que fundamento pode o defensor sobrepor a sua vontade à expressa vontade do seu representado. E não se crê que a situação seja diversa pela circunstância de o arguido não estar presente na audiência e ter formulado a sua vontade em escrito por si firmado. Não se pode encarar a questão apenas do ponto de vista daquilo que, numa pura perspectiva técnico-jurídica, pode ser mais conveniente aos interesses do arguido em matéria probatória. Há, como se referiu, razões de consciência, que, no critério do arguido, podem revelar-se incomensuravelmente mais importantes que a tentação de escapar à reacção penal por efeito de um pormenor probatório.
Se o arguido, faltando à audiência, nada exterioriza a propósito de declarações anteriormente prestadas, é de aceitar que o defensor, na interpretação do interesse do arguido, dê ou não o seu aval à leitura. Mas se o arguido, válida e expressamente, faz chegar ao processo o seu posicionamento pessoal quanto ao assunto, não vemos justificação plausível para que o defensor possa “anular” a vontade daquele que lhe incumbe servir. Quer se trate de impedir a leitura, quer se trate de a viabilizar. Será aceitável que o defensor, contrariando instrução expressa e válida que o arguido ausente tenha feito chegar ao processo no sentido de não permitir a leitura de anteriores declarações, será aceitável, dizíamos, que o defensor dê o seu aval a essa leitura em audiência e neutralize aquela “proibição” do arguido? Não creio. E da mesma forma, porque de situações substancialmente idênticas se trata, também não se pode aceitar que o defensor se oponha com sucesso à leitura de declarações solicitada pelo próprio arguido.
Em suma, a vontade dos arguidos na exercitação de prerrogativas que o processo penal lhes concede, desde que validamente expressa e firmada, não pode deixar de prevalecer sobre a avaliação casuística do defensor acerca daquilo que melhor serve os interesses do arguido.
Ante o exposto, somos a concluir pelo acerto da decisão que autorizou a questionada leitura e pela improcedência dos fundamentos dos recursos, sem embargo de estarmos convictos que, face à expressividade e concludência das demais provas, a referida leitura não se revelou de todo imprescindível à formação da convicção do tribunal colectivo.
Termos em que os recursos não merecem provimento”; (cfr., fls. 319 a 320-v).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 214 a 216, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem os arguidos recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18° da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos.
Alegam que o Acórdão recorrido padece de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Cremos que ainda que com fundamentação diversa se terá de anular a decisão recorrida, pois que em audiência de julgamento procedeu-se à leitura das declarações pela (2ª) arguida antes, em sede de inquérito prestadas, e que se encontrava a ser julgada à sua revelia, não obstante oposição do seu Exmo. Defensor.
Como temos vindo a entender, “ainda que em sede de Inquérito tenha o arguido autorizado a leitura das suas declarações em audiência de julgamento para o caso de nela não (poder) comparecer, não deve o Tribunal proceder à sua leitura se, em audiência, o Defensor do arguido a esta leitura se opuser”, pois que “se se reconhece ao Defensor o poder de, em situação idêntica, (ausência do arguido), autorizar a leitura das suas declarações antes prestadas, não se vislumbram razões para que, nas mesmas circunstâncias, não possa também o Defensor – a quem compete assegurar a defesa do arguido ausente – opor-se à dita leitura”; (cfr., v.g., o Ac. de 22.09.2016, Proc. n.° 455/2016).
Com efeito, se na ausência do arguido o mesmo é – “para todos os efeitos” – representado pelo seu Defensor, (cfr., art. 314°, n.° 5 e 315°, n.° 2 e 3 do C.P.P.M.), motivos não se divisam para que este, no exercício de tal faculdade, (e em nome do arguido), se oponha à leitura das suas declarações antes prestadas.
E se assim é, como no caso dos autos sucedeu, porque não reconhecer valor (jurídico) a tal “oposição”?
Como dar-se tal manifestação de vontade como irrelevante e, mesmo assim, proceder-se à leitura das declarações antes prestadas e, posteriormente, valorar-se tais declarações para efeitos de decisão da matéria de facto (com a condenação da arguida)?
Ora, sendo o processo penal o “ponto de equilíbrio” (que em determinado momento se consegue obter) entre o “jus puniendi”, (a “necessidade de prevenção e repressão criminal”), e os “direitos (de defesa) do arguido”, evidente é que aquele não pode ser alcançado a “todo o custo” ou “sem se olhar a meios”; (neste sentido, vd. v.g., o recente Ac. da Rel. do Porto de 12.07.2017, Proc. n.° 731/09, onde igualmente se considera que a “verdade material não pode ser obtida a todo o custo”).
E, então, se se reconhece ao arguido o (legítimo) direito de em audiência de julgamento se manter silente, óbvio nos parece que adequada não é a leitura das suas anteriores declarações quando, em audiência, e na sua ausência, o seu Defensor a tal se oponha, (assim o fazendo constar em acta).
Perante isto, (ainda que não se verifique o alegado “erro notório na apreciação da prova”, mas) tendo-se procedido a uma “ilegal” leitura de anteriores declarações da (2ª) arguida B, correspondendo tal situação à “produção de meio de prova não permitido”, (que influiu na decisão final proferida), há que anular a decisão em questão – que decidiu pela dita leitura – e, consequentemente, o julgamento efectuado, devendo os autos voltar ao Tribunal recorrido para, após novo julgamento, proferir nova decisão.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, declara-se nula a decisão que ordenou a leitura das anteriores declarações da (2ª) arguida B, com a consequente anulação do julgamento efectuado.
Pelo decaimento – quanto ao alegado “erro notório” – pagarão os recorrentes a taxa de justiça de 3 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor dos arguidos no montante de MOP$2.000,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 28 de Setembro de 2017
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (vencido, por entender ser de relevar apenas a vontade expressa declarada então pela pessoa arguida no sentido de consentimento de leitura das suas declarações na futura audiência de julgamento, por um lado, e por outro, ser de manter todo o julgado recorrido).
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