Processo n.º 615/2017
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 28/Setembro/2017
ASSUNTOS:
- Causa prejudicial
SUMÁRIO :
1. A decisão da causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, ou onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
2. O n.º 1 do art. 223º do CPC não deixa até de consentir um alcance da prejudicialidade, seja "por razões de economia processual", seja, em última instância, para "garantir a coerência dos julgamentos"
3. O recurso contencioso de anulação do acto que declarou a caducidade da concessão e consequente reversão do terreno constitui causa prejudicial em relação a uma acção cível de resolução de contrato-promessa de compra e venda proposta contra aquela concessionária, em que o A. alega impossibilidade definitiva e culposa no cumprimento do contrato, por parte da Ré, defendendo-se esta que ainda não se verifica incumprimento definitivo e culposo, pois se o recurso contencioso em que pede a anulação do acto, onde invoca, nomeadamente culpa da Administração, vier a ser julgado procedente, em abstracto, pode ser reposta a situação de concessionária e poderá então concluir as obras.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 615/2017
(Recurso Civil)
Data : 28/Setembro/2017
Recorrente : A Limitada
Objecto do Recurso : Despacho que indeferiu o pedido de suspensão da instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
1. A "A Limitada", Ré nos autos supra referenciados, havendo interposto Recurso a fls. 422 da decisão que indeferiu o pedido de suspensão da instância, a qual consta de fls. 273 a 283, e tendo o Recurso interposto sido admitido por despacho constante de fls. 428 dos mesmos autos, vem, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 613º do Código de Processo Civil, apresentar as suas alegações, concluindo:
1ª - O artigo 223. ° do CPC prevê duas situações de suspensão judicial da instância, isto é, duas hipóteses em que o tribunal tem o poder de ordenar que determinada instância fica suspensa, podendo ser exercido pelo tribunal (i) "quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta" ou (ii) "quando ocorrer outro motivo justificado".
2ª - É causa prej udicial "toda aquela cuja resolução constitui pressuposto necessário da decisão de mérito" , necessidade essa que pode resultar "quer da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência de uma excepção, peremptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objeto do processo", podendo "ser mais ou menos directa a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou thema decidendum" (cfr. LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Lisboa, 2014, vol. I, p. 184).
3ª - Neste sentido, haverá causa prejudicial, por exemplo, “sempre que numa acção se ataca ou acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção”, caso em que "aquela será prejudicial em relação a esta" (cfr. Acórdãos do STJ de 30/04/2002 (Proc. n.º 02A323) e de 13/11/2008 (Proc. n.º 08B3526) ) .
4ª - Ou, dito de outro modo, "a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa influir ou modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão do outro pleito" (cfr. Acórdãos do STJ de 06/07/2005 (Proc. n.º 05B1522) e de 04/02/2003 (Proc. n.º 02A4475)).
5ª - Verificado esse nexo de prejudicialidade, é conveniente - ou, quando o nexo é mais forte, é mesmo necessário que o tribunal suspenda a causa dependente até ao julgamento da causa prejudicial seja "por razões de economia processual", seja, em última instância, para "garantir a coerência dos julgamentos" (cfr. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, p. 272).
6ª - Mesmo não se verificando uma causa prejudicial, o tribunal pode considerar que existe um "outro motivo justificado" (cfr. artigo 223.º, n.º 1 do CPC) , que determina a suspensão existindo, neste caso, "uma grande liberdade de acção" do tribunal, que pode ordenar a suspensão sempre que nisso vir utilidade, em face do obj ecto do thema decidendum (cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, voI. I, 2012, 3ª ed. (reimp.), p. 384).
7ª - O tribunal conhece oficiosamente dos casos de suspensão tratados no n° 1 do artigo 223°, seja por causa prejudicial, seja por motivo justificado.
8ª - O presente Recurso visa demonstrar que, caso o acto que declarou a caducidade da concessão seja anulado por via do mencionado Recurso Contencioso de Anulação, a Ré poderá continuar com o respectivo projecto de construção e dar cumprimento ao contratopromessa em questão, não sendo de discutir, nesta sede, se a impugnada decisão de declaração de caducidade da concessão diz respeito a uma caducidade preclusão ou a uma caducidade sanção.
9ª - Acresce também que, por um lado, esse Venerando Tribunal ad quem apenas abordará, eventualmente, a questão da qualificação da caducidade, quando proferir acórdão decisório tendo por objecto o referido Recurso Contencioso de Anulação e, por outro lado, poderá, ainda, a parte vencida, dele recorrer para o Tribunal de Última Instância.
10ª - Salvo o devido respeito, que é muito, afigura-se que no caso subjudice estão verificados, indiscutivelmente, os pressupostos para o decretamento da suspensão da presente instância.
11ª - Desde logo, porque a decisão deste litígio está dependente da decisão de um outro processo já em curso, verificando-se, portanto, existir uma causa prejudicial.
12ª - Com efeito, neste processo, a Autora pretende que seja declarado resolvido o contrato-promessa celebrado com a Ré e que, consequentemente, esta seja obrigada a indemnizar a Autora, pagando o sinal recebido em dobro e restituindo-lhe tudo o que recebeu em execução do contrato-promessa.
13ª - Como causa de pedir, alega, desde logo, a existência de uma impossibilidade de cumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa: no seu entendimento, o cumprimento deste acordo tornou-se impossível por causa imputável à Ré, que não concluiu no prazo acordado o aproveitamento do terreno em causa, originando a declaração de caducidade da concessão e a reversão desse terreno para a RAEM, decretadas pelo Despacho do Chefe do Executivo de 26 de Janeiro de 2016.
14ª - Neste quadro, constitui um facto constitutivo determinante da situação jurídica que a A. pretende fazer valer a perda da disponibilidade jurídica da Ré sobre o terreno onde a fração a adquirir iria ser edificada, efeito produzido pelo referido Despacho do Chefe do Executivo.
15ª - Sendo também facto integrante da causa de pedir a imputabilidade desse efeito jurídico a uma conduta culposa da Ré, que, no entendimento da Autora, deu causa à declaração de caducidade da concessão, ao não cumprir, por responsabilidade sua, o prazo de aproveitamento do terreno fixado no contrato.
16ª - Ora, a esta luz, tendo em conta a pretensão deduzida neste processo e a causa de pedir em que tal pretensão se funda, é evidente a existência de um nexo de prejudicialidade entre a presente acção e o recurso contencioso de anulação em que se impugna o Despacho do Chefe do Executivo de 26 de Janeiro de 2016 (recurso que corre termos no TSI com o n.º 179/2016).
17ª - Com efeito, a procedência deste recurso contencioso, eliminando da ordem jurídica o acto administrativo que produziu o efeito extintivo da relação contratual em apreço, é susceptível de "destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda", integrando-se, assim, naquela que é a definição típica de uma situação de prejudicialidade.
18ª - Como resulta pacífico na jurisprudência, "sempre que numa acção se ataca ou acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção", "aquela será prejudicial em relação a esta" (cfr. Acórdãos do STJ de 30/04/2002 (Proc. n.º 02A323) e de 13/11/200S (Proc. n.º 08B3526).
19ª - É exactamente isso o que sucede no caso em apreço: a declaração de caducidade da concessão - e consequente reversão do terreno concedido - é o pressuposto central da presente acção, sendo nesse acto jurídico que a A. fundamentalmente se baseia para invocar a existência de uma impossibilidade de cumprimento definitiva do contrato-promessa; ora, se esse acto jurídico, que não está ainda consolidado na ordem jurídica, é objecto de uma acção impugnatória que está pendente, então esta acção será necessariamente causa prejudicial em relação àquela, justificando-se e, mais do que isso, impondo-se tendo em conta a intensidade que assume no caso o nexo de prejudicialidade - a suspensão do presente processo,
20ª - A virtualidade de uma efectiva e real influência desse recurso neste litígio resulta ainda da circunstância de a A. invocar, como fundamento constitutivo da sua causa de pedir, a imputabilidade à Ré da pretensa impossibilidade de cumprimento, o que constitui uma das questões em apreciação no recurso contencioso de anulação.
21ª - A suspensão da instância também não será de recusar mesmo quando a Autora invoca, como fundamento subsidiário da pretensão de resolução do contratopromessa e condenação da Ré no pagamento de uma indemnização, a perda do interesse na prestação.
22ª - Com efeito, também em relação à questão de se saber se houve ou não perda de interesse da Autora na prestação da Ré a decisão do recurso em que se impugna o Despacho do Chefe do Executivo de 26 de janeiro de 2016 é relevante porque é susceptível de afectar de forma determinante a consistência jurídica da posição que a Autora pretende subsidiariamente fazer valer no processo.
23ª - A perda de interesse é uma figura que permite a conversão da mora em incumprimento definitivo, passando o devedor a estar sujeito às consequências desse incumprimento.
24ª - Neste contexto, a perda de interesse na prestação pressupõe, necessária e impreterivelmente, a prévia configuração de uma situação de mora: só em relação a um devedor em mora pode o credor invocar que a prestação que lhe era devida já não traz, objectivamente, a utilidade pretendida (cfr. ANTUNES VARELA, Direi to das Obrigações, Coimbra, 7.ª ed., p. 124; ALMEIDA COSTA, Direi to das Obrigações, Coimbra, 12.ª ed., p. 1055).
25ª - Sucede que, como prevê o artigo 793.°, n.º 2 do Código Civil, "o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido".
26ª - A mora "é o atraso (demora ou dilatação) culposo no cumprimento da obrigação", pelo que, para que haj a mora, "é necessário a culpa do devedor" (cfr. ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações cit., p. 115).
27ª - No caso em apreço, para que um (pretenso) atraso no cumprimento do contrato-promessa fosse imputável à Ré era necessário que o atraso na execução do edifício a implementar no Lote "p" lhe fosse censurável, resul tando do seu comportamento - só nesse caso se poderia concluir haver uma situação de mora que poderia ser convertida em incumprimento definitivo por perda do interesse do credor.
28ª - Ora, como se referiu, uma das questões em apreciação no recurso contencioso de anulação - e que compete à jurisdição administrativa dirimir - é exactamente a de saber se a não conclusão do aproveitamento no prazo fixado resultou da conduta da Ré ou, ao invés, se ficou a dever à actuação da RAEM.
29ª - Assim, a apreciação de tal recurso tem, pois, uma efectiva e real influência na configuração de um pressuposto em que assenta, de forma decisiva, a alegação subsidiária da perda de interesse na prestação: para que exista essa perda de interesse é necessário que o devedor se encontre numa situação de mora e para que exista mora é imprescindível que o atraso na prestação - no caso, o atraso na conclusão do aproveitamento do terreno e na consequente celebração do contrato de compra e venda - se deva à conduta do Réu, questão que está a ser dirimida no referido recurso contencioso, que se afigura, portanto, como uma causa prejudicial em relação à presente acção também no que respeita à sua causa de pedir subsidiária.
30ª - Acresce que, mesmo que não se reconhecesse essa relação de prejudicialidade - o que só por mera cautela de patrocínio se admite - nunca poderia este Tribunal julgar a presente acção limitando-se a apreciar o fundamento subsidiário da causa de pedir.
31ª - A causa de pedir subsidiária serve para fundar a pretensão da Autora quando a causa de pedir principal não proceda; ela não serve para fundar uma decisão judicial quando a causa de pedir principal esteja dependente do julgamento de um outro processo já proposto, por forma a evitar uma suspensão de instância que, nessas circunstâncias, se impõe.
32ª - Para que se reconheça uma causa prejudicial justificativa da suspensão da instância,. não é necessário, em absoluto, que a decisão proferida na instância em que essa causa prejudicial está a ser apreciada seja apta a constituir caso julgado na instância dependente.
33ª - A causa prejudicial, ao contrário da causa repetida, não pressupõe que entre dois processos exista uma identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
34ª - Ela pressupõe apenas uma relação de dependência ou proximidade entre dois objectos processuais, que pode resultar seja da configuração da causa de pedir, sej a da arguição ou existência de uma excepção, sej a ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo.
35ª - O que releva, na causa prejudicial, é, tão simplesmente, a existência de um processo em que esteja a ser decidida uma situação substancial que é de algum modo relevante para a decisão de outro processo.
36ª - De resto, se, para se reconhecer uma causa prejudicial justificativa da suspensão da instância, se exigisse que a decisão proferida na instância em que essa causa prejudicial está a ser apreciada fosse apta a constituir caso julgado na instância dependente, então isso significaria que nunca haveria suspensão da instância por aplicação do mecanismo previsto no artigo 223.°, n.º 1 do CPC.
37ª - Com efeito, para que existisse essa virtualidade de se constituir caso julgado, era imprescindível que as acções fossem idênticas quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
38ª - Ora, se existisse essa tríplice identidade entre determinado processo e uma outra causa, então estaria verificada uma excepção de litispendência nesse processo, e o tribunal teria obrigatoriamente, que reconhecer essa excepção dilatória e determinar a absolvição da instância (cfr. artigos 412.º, n.º 2, 413º, al. f) e 414.° do CPC de Macau).
39ª - Em suma, estando a decisão da presente acção dependente do julgamento do recurso contencioso de anulação do Despacho do Chefe do Executivo de 26 de Janeiro de 2016, que corre termos no TSI, estão verificados os pressupostos para a suspensão da instância por verificação de uma causa prejudicial, suspensão essa que não só se justifica como se impõe, tendo em conta a intensidade que assume no caso a relação de prejudicialidade entre os dois processos.
40ª - Mas mesmo que esse Venerando Tribunal de Segunda Instância não venha a reconhecer a existência dessa causa prejudicial hipótese que por mero dever de patrocínio aqui se admite - ainda assim haveria lugar à suspensão de instância por ocorrência de um "motivo justificado" (cfr. artigo 223.º, n.º 1, in fine, do CPC) .
41ª - Há que reconhecer que existe um nexo de proximidade entre os dois processos, em que se discutem questões fortemente interligadas entre si, pelo que, em qualquer caso, será avisado e conveniente - nem que seja para garantir a credibilidade da decisão a proferir neste processo, que seria sempre minada por uma eventual decisão contrária que, quanto a alguns dos seus pressupostos ou premissas, viesse a ser tomada na jurisdição administrativa - sobrestar nessa decisão até ao julgamento do recurso contencioso de anulação.
42ª - Tal como resulta do requerimento de fls. 295 e documentos que o acompanham, o próprio Governo da RAEM assim o defende na sua actuação mais recente.
43ª - Também em processos distribuídos a diferentes Meritíssimos jtiízes do Meritíssimo juiz titular dos presentes autos, pendentes no Tribunal Judicial de Base, onde são idênticas as situações em apreço naqueles e neste processo, nomeadamente, as respectivas causas de pedir, há a assinalar diversas decisões em sentido contrário ao da decisão recorrida, como sucedeu, por exemplo, no Proc. n° CV3-16-0069-CAO e no Proc. n° CV1-16-0062-CAO, dos 3° e 1° Juízos Cíveis.
44ª - Assim e em conclusão: quer pelas razões jurídicas invocadas, quer na óptica do Governo de Macau, quer pelo impacto social do caso vertente, quer por várias decisões judiciais em sentido contrário que já foram proferidas no Tribunal de la Instância, tudo concorre a favor da decisão de suspensão da presente instância conforme requerido pela R. na sua contestação, seja por causa prejudicial, seja por outro motivo justificado.
Disposição legal violada: Artigo 223°, n° 1 do CPC.
Para os efeitos previstos no artigo 615°, n° 1 do CPC, requer sej am extraídas certidões das seguintes peças processuais: Petição inicial, Contestação e Requerimentos de fls. 295 e fls. 422, acompanhados dos respectivos documentos juntos, sem prejuízo do disposto no n° 2 do mesmo normativo (certidão obrigatória da decisão recorrida).
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, sendo, em consequênc ia, revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que ordene a suspensão dos presentes autos.
2. B Recorrida nos autos à margem identificados, tendo sido notificada da apresentação das alegações de Recurso da Recorrente vem, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 613.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (doravante designado por “CPC”), apresentar a sua RESPOSTA, o que fez, em síntese:
I. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que indeferiu o pedido de suspensão da instância, a qual consta de fls. 273 a 283.
II. Em sede de contestação, a Recorrente pediu a suspensão da instância tendo, para o efeito sustentado que «Sucedeu que por acto do Chefe do Executivo, de 26 de Janeiro de 2016, tornado público através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 6/2016, publicado no Boletim Oficial da RAEM, II Série, 4.º Suplemento ao n.º 4, de 29 de Janeiro de 2016, foi declarada a caducidade da concessão do terreno supra referido (cfr. Doc. 7 junto com a p.i.).» e que «[...] Todavia, tal decisão não transitou em julgado.»
III. Como replicou a Recorrida, a decisão do Exmo. Senhor Chefe do Executivo é uma decisão administrativa. Contudo, as decisões administrativas não transitam em julgado, pela elementar razão de que não resultam de um julgamento.
IV. Foi pretensão da Recorrente usar a linguagem processual para a decisão administrativa para distrair o intérprete do essencial: a eficácia ou ineficácia imediata da decisão.
V. Essa decisão do Chefe do Executivo é definitiva e executória, facto que não é controvertido.
VI. Nem se argumente, como argumentou a Recorrente na sua contestação, que a mesma impugnou a decisão nos tribunais administrativos.
VII. Sendo a decisão definitiva e executória, é imediatamente eficaz, como resulta do disposto no art. 22º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
VIII. E essa eficácia só pode ser suspensa mediante procedimento judicial próprio, qual seja, o pedido de suspensão de eficácia do acto.
IX. Como bem alegou a Recorrente, a mesma «[…] reagiu e impugnou atempadamente a referida decisão por duas vias: Pela via da instauração de um pedido de suspensão de eficácia do acto administrativo em questão, ao abrigo do disposto nos artigos 120º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), […]» Mais alegando a Recorrente que «O pedido de suspensão de eficácia corre por apenso ao mesmo Recurso, sob o n° 179/2016/A e encontra-se pendente no Venerando Tribunal de Última Instância (TUI), na sequência de Recurso interposto de decisão de indeferimento proferida pelo Distinto Tribunal de Segunda Instância (TSI)»
X. A Recorrente reconhece que o seu pedido de suspensão de eficácia foi alvo de uma decisão de indeferimento, pelo que significa isso que os Tribunais da RAEM ainda não emitiram nenhuma decisão que suspendesse essa eficácia.
XI. A decisão foi, é e nunca deixou de ser eficaz.
XII. Resulta também que a declaração de caducidade da concessão em causa produziu os seus efeitos na ordem jurídica, efeitos esses que nunca deixaram de se verificar por via de qualquer decisão judicial.
XIII. A concessão, para todos os efeitos jurídicos ... caducou.
XIV. Razão pela qual se não verifica nenhum nexo de prejudicialidade entre os presentes autos e os aludidos autos de impugnação contenciosa administrativa promovidos pela Ré.
XV. Não existe nenhuma dependência da presente acção com as acções administrativas (recursos ou acções em sentido próprio) interpostas ou propostas pela Ré.
XVI. Sendo eficaz a declaração de caducidade na ordem jurídica, é impossível a prestação da Recorrente no âmbito da relação material controvertida nos presentes autos, pelo que não se verifica qualquer fundamento para que seja decretada a suspensão da instância nos presentes autos.
XVII. Argumenta a Recorrente que, de outra forma, no Recurso contencioso de anulação em que a Recorrente impugna a decisão de declaração de caducidade da concessão diz respeito a uma caducidade preclusão ou a uma caducidade sanção.
XVIII. Pretende a Recorrente, com o presente recurso, restringir a sua responsabilidade no contrato promessa em causa nos presentes autos no sentido de a concessão ter cessado por preclusão, i.e., pelo decurso do tempo.
XIX. Dito de outro modo, a Recorrente inviamente sustenta que não é responsável com culpa da impossibilidade resultante do decurso do tempo em que não aproveitou o terreno. Tal pretensão é descabida e ilegal nos presentes autos.
XX. A Recorrente obrigou-se a um resultado.
XXI. E esse resultado dependia da manutenção de uma concessão que só esteve na sua esfera jurídica e controle a possibilidade da manter válida, possibilitando desse forma dar cumprimento aos contratos promessa em que se comprometeu.
XXII. Se é culpa da RAEM ou não, tal relação contratual constitui res inter alios acta entre a Recorrente e a RAEM, na qual a Recorrida é alheia, na medida em que não foi tida ou achada para participar em tal relação administrativa.
XXIII. A culpa administrativa, no âmbito do contrato de concessão não se confunde com a culpa contratual civil no âmbito dos contratos promessa celebrados entre a Recorrente e os particulares.
XXIV. Neste plano civil só a Recorrente é que podia gerir a sua expectativa de conseguir ou não, aproveitar o tempo no prazo da concessão, pelo que a Recorrente, nesse sentido aceitou um risco contratual.
XXV. Do ponto de vista jurídico-administrativo, a decisão que declarou a caducidade produziu efeitos na ordem jurídica não tendo logrado a Recorrente obter vencimento no pedido de suspensão de eficácia do acto.
XXVI. No âmbito da gestão do seu risco, a Recorrente tem, independentemente do sucesso ou insucesso do seu recurso administrativo, que aceitar as consequências da impossibilidade de cumprimento a que deu causa.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. douta mente suprirão, deverá ser negado provimento aos recurso interposto e, consequentemente, deverá ser confirmada na íntegra a douta decisão recorrida.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II – Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido:
“(…)
Da suspensão da instância:
A autora, invocando como causa de pedir um incumprimento definitivo de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma de um imóvel a construir em que é promitente-compradora, vem pedir a condenação da ré, promitente-vendedora inadimplente, na indemnização dos danos decorrentes do incumprimento. Diz a autora que há incumprimento definitivo porque a celebração do contrato prometido se tomou impossível por causa imputável à ré, que, devido a atraso injustificado, já não pode construir o referido imóvel por já não ter a necessária disponibilidade jurídica sobre o terreno que a RAEM lhe havia concessionado para construção, e que, mesmo que fosse possível a celebração do contrato definitivo, a autora já perdeu o interesse naquele contrato prometido. Invoca pois a autora o direito a indemnização fundado no incumprimento definitivo decorrente da impossibilidade da prestação por causa imputável à ré ou decorrente da perda do interesse na prestação durante a mora do devedor.
A ré vem dizer que ainda não se venceu a sua obrigação de celebrar o contrato prometido; que está a tentar recuperar nos tribunais a referida disponibilidade jurídica e, assim, remover a causa que a impede temporariamente de construir, impossibilidade que decorre de causa imputável a terceiro que a obrigou a atrasar-se, e que, se conseguir a remoção, será possível a celebração do contrato prometido. Diz também que se não conseguir remover o entrave, a causa da impossibilidade de celebração do contrato prometido não lhe é imputável, não havendo incumprimento culposo da sua parte. Impugna ainda a ré que a autora tenha perdido o interesse na celebração do contrato prometido. Diz pois a ré que não está em mora por a sua obrigação ainda não se ter vencido; que não estando em mora não pode ocorrer incumprimento definitivo por perda do interesse na prestação por parte do credor; que há apenas uma impossibilidade temporária do cumprimento e não uma impossibilidade definitiva e que, se tal impossibilidade se tomar definitiva, advém de causa que lhe não é imputável, mas imputável a terceiro.
Pede a ré que se suspenda a instância enquanto tenta remover nos tribunais o entrave que a impede de construir o imóvel prometido vender e enquanto tenta obter indemnização pelos danos que lhe causou o entrave que a RAEM ilicitamente lhe colocou. Diz que há uma relação de prejudicialidade entre esta acção e aquelas que mantém nos tribunais com vista a ser indemnizada e a recuperar a mencionada disponibilidade jurídica que lhe permite construir o imóvel com que cumprirá o contrato-promessa em causa.
Vejamos.
Entre outras situações, pode suspender-se a instância quando a decisão a proferir em tal instância estiver dependente do julgamento de outra causajá instaurada (art. 223°, n.º 1 do CPC).
Prejudicialidade entre decisões é uma relação lógico-jurídica entre elas que implica que uma não possa ser decidida sem previamente ser decidida outra. A prejudicialidade é a necessidade incontornável de que uma questão esteja decidida para que possa decidir-se outra. Não basta a conveniência, só a necessidade serve à prejudicialidade. A conveniência em que uma decisão sej a tomada antes de outra é também razão de suspensão da instância, referida na lei como motivo justificado, mas diversa da prejudicialidade. A prejudicialidade baseia-se na necessidade. Por exemplo, não pode proceder-se à divisão da coisa comum sem se decidir quais as quotas dos comproprietários. Não é possível por razões de lógica jurídica. Há prejudicialidade entre as decisões. A interferência de uma decisão noutra pode não configurar prejudicialidade. Assim a reclamação da relação de bens em que se acusa a falta de bens que deveriam ser relacionados, permite a partilha e a fixação das quotas hereditárias, partilha que poderá vir a ser alterada com a divisão de novos bens se a decisão da reclamação for favorável ao reclamante, mas é conveniente que se decida primeiro a reclamação e só depois a partilha. Se as duas decisões em relação de prejudicialidade estão em apreciação no mesmo processo, a situação é mais simples. Por exemplo, na mesma sentença, decide-se primeiro se o contrato é nulo ou válido e depois aprecia-se a questão do cumprimento ou incumprimento. Mas se as questões estão em apreciação em processos diversos, um processo só deve esperar pela solução do outro por razões de prejudicialidade (não de conveniência) quando não possa decidir sem que previamente seja solucionada a questão "alheia".
É aqui que surge uma outra vertente da questão da prejudicialidade justificadora da suspensão da instância dependente: só se a decisão da questão discutida na instância prejudicial tiver força de caso julgado material na instância dependente é que deve suspender-se a instância dependente à espera da decisão da instância prejudicial. É sempre conveniente poder ponderar o que se decidiu noutras instâncias, mas só quando se tem de acatar tais decisões é que tem de esperar-se por elas. Quando a decisão da questão prejudicial não faz caso julgado na instância onde se aprecia a questão dependente, tem aqui de voltar a decidir-se a questão prejudicial se fizer parte do objecto do processo. Quando se pode decidir sem obrigação de acatar a decisão "alheia" porque não vincula pelo mecanismo do caso julgado na instância a suspender, esta instância não deve ser suspensa para esperar que seja tomada a decisão "alheia".
Atentemos no caso dos autos. Está em causa apreciar e decidir se (1) já se venceu uma obrigação contraída num contrato-promessa, como defende a autora e a ré nega; se (2) tal prestação ainda é possível, como defende a ré; se (3) ocorreu impossibilidade da prestação do promitentevendedor por causa imputável ao devedor, como defende a autora; se (4) tal impossibilidade, caso tenha ocorrido, é imputável a terceiro (RAEM), como defende a ré e ainda se (5) o credor perdeu o interesse na prestação de devedor em mora - arts. 790º e 797º do CC.
Para poder decidir se a autora perdeu ou não o interesse no contrato definitivo, parece insofismável e dispensador de ociosas considerações que não é necessário esperar para saber se a ré consegue, ou não, demonstrar noutra instância que foi a RAEM que incumpriu o contrato de concessão e se a ré consegue recuperar nos tribunais a disponibilidade jurídica do terreno onde poderá construir o imóvel prometido vender. É possível decidir esta questão da perda do interesse do credor na prestação sem esperar pela decisão da questão da sobrevivência do contrato de concessão e da indemnização em consequência do respectivo incumprimento por parte da RAEM.
O mesmo se diga relativamente à decisão sobre a questão do vencimento da obrigação da ré de celebrar o contrato promessa. Tudo passa por apurar os termos acordados entre promitente-comprador e promitentevendedor quanto ao tempo da prestação ou ao prazo para celebração do contrato definitivo, em nada interferindo as decisões a proferir nas acções onde a ré luta com a RAEM, quer para manter a concessão do terreno onde pretende construir o imóvel que prometeu vender, quer para obter indemnização pela cessação da concessão.
Para poder decidir se a situação fáctica que as partes trouxeram aos presentes autos configura impossibilidade definitiva de a ré cumprir ou se configura impossibilidade meramente temporária, também não é necessário esperar pelo desfecho dos meios judiciais que a ré moveu contra a RAEM. Considerando que ambas as partes aceitam que presentemente a ré está impossibilitada de cumprir, a questão é meramente de direito: ou se conclui que enquanto aqueles meios judiciais não estiverem findos não há incumprimento definitivo e improcede a tese da autora; ou se conclui que independentemente do desfecho já há incumprimento definitivo e improcede a tese da ré. Não está em causa saber se aquele desfecho vem modificar retroactivamente a situação actual. A pendência dos meios movidos pela ré faz da impossibilidade de cumprimento uma impossibilidade temporária, como entende a ré, ou não faz, como entende a autora. Nada interferem nisso as decisões a proferir. É possível decidir a questão do incumprimento que se coloca nestes autos sem esperar. Não é a decisão da outra instância que faz com que se possa qualificar de definitiva ou temporária a impossibilidade actual de cumprimento, uma vez que a questão reside precisamente no facto de saber se há ou não há incumprimento definitivo enquanto a ré não esgotar os meios de reacção à actuação da concessionária que a impede de cumprir.
Resta saber se quanto à decisão a proferir aqui relativamente à imputabilidade à ré ou a terceiro da causa da impossibilidade do cumprimento do contrato-promessa há, ou não há, relação de prejudicialidade com a decisão a proferir nas causas onde a ré luta pela recuperação da possibilidade de cumprir e pela indemnização por danos decorrentes do incumprimento do contrato de concessão por parte da RAEM.
É claro que se se concluir que foi a RAEM que, ilicitamente, impediu a ré de cumprir a promessa de venda do imóvel que se propunha construir, o incumprimento da promessa deriva de causa imputável à RAEM e não à ré e a obrigação da ré extingue-se por impossibilidade da prestação sem que haja obrigação da ré indemnizar a autora. Tal questão de imputação à RAEM da causa da impossibilidade de cumprir a promessa estará em discussão noutras instâncias (administrativas). Porém, a decisão que ali se tomar não faz caso julgado nos presentes autos porquanto a aqui autora não é ali parte. Desta sorte, a questão em causa terá sempre de ser aqui decidida, de nada adiantando esperar que aquela outra instância a decida. Não pode aqui "escapar-se" a apreciar e decidir pelo facto de outrem o ter feito. Mesmo que a ré consiga demonstrar a actuação culposa e causal da RAEM noutra instância, continua a ter de a demonstrar aqui se quiser escapar à presunção de culpa que sobre si poderá recair nos termos do art. 788°, n° 1 do CC e se quiser demonstrar aqui que não lhe é imputável a causa que a impossibilita de cumprir a sua promessa. Por tal razão, também quanto à questão da imputabilidade à ré ou a terceiro da causa de impossibilidade do cumprimento da promessa da ré não há relação de prejudicialidade entre a decisão a proferir nestes autos e naqueles onde a ré defronta a RAEM, uma vez que a decisão a proferir aqui não depende daquela que deve ser proferida na outra instância.
Pelo que fica exposto, conclui-se que não ocorre a causa prejudicial que a ré alegou e que, por essa razão, não deve ser suspensa a presente instância.
Vai, pois, indeferida a requerida suspensão da instância.
(…)”
III - FUNDAMENTOS
1. Em sede de contestação, na acção em que a A. pedia a resolução do contrato promessa de compra e venda de uma dada fracção, em complexo concessionado que a Ré se propôs erigir, esta, ora recorrente requereu que, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 223° do CPC, fosse a presente instância suspensa.
Invocou a recorrente que se encontravam preenchidos todos os requisitos exigidos por lei para os efeitos pretendidos com os fundamentos expostos na referida peça processual e que o recurso contencioso onde pedia a anulação do despacho de caducidade da concessão e reversão dos terrenos fosse anulado constituía causa prejudicial perante a acção cível proposta, o que motivaria a suspensão da instância até à dilucidação da questão administrativa.
O douto despacho recorrido indeferiu o pedido assim formulado, nos termos acima transcritos, sendo essa a decisão que constitui o objecto do presente recurso pelo que importa indagar se se observam os pressupostos da suspensão da instância.
2. Dispõe o art. 223º do CPC:
“1. O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens.
3. Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.”
4. As partes podem acordar na suspensão da instância por prazo não superior a 6 meses.”
A prejudicialidade de uma causa em relação à outra dependerá no caso vertente da 1ª parte do n.º 1, não se invocando, nem vislumbrando qualquer motivo justificado que pudesse conduzir à suspensão da acção cível até ao desfecho do recurso contencioso.
O que é então uma causa prejudicial?
Concorda-se com a análise abstracta feita pelo Mmo Juiz a quo, mas já deixaremos de o acompanhar, quando ele passa a enquadrar a situação concreta naqueles princípios gerais, não deixando de ressalvar a não adesão a quanto se afirma no referente ao requisito do caso julgado - se configurado na sua tríplice vertente (sujeitos, pedido e causa de pedir) -, bastando a utilidade da acção subordinante em termos de definição de uma situação jurídica, por mero efeito de autoridade do caso julgado e que se venha a mostrar essencial para se poder julgar a causa subordinada, de modo a indagar um pressuposto integrante e fundamento da decisão que importe tomar, para definir um pressuposto de uma excepção invocada ou até para evitar uma contradição de julgados.
A decisão da causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando, como se tem afirmado lapidarmente em acórdão deste tribunal, “Uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (…) A decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar a situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.”1
Ou, como se diz, num outro passo, quanto se cita em termos de Jurisprudência Comparada, “quando a decisão desta pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito.
(…) Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
(…) Existindo entre duas acções esse nexo de prejudicialidade, deverá ser suspensa a instância na causa dependente, até à decisão da causa prejudicial.
(…) Todavia, não sendo aconselhável a suspensão da instância na causa dependente – designadamente, por se encontrar em fase mais adiantada – e se a questão prejudicial (discutida, na acção prejudicial, a título principal) já estava a ser discutida na acção dependente (por ter sido invocada, na respectiva contestação, como meio de defesa e com vista a impedir a procedência da pretensão, aí, deduzida), ocorre motivo justificado para a suspensão da instância na causa prejudicial até à decisão da causa dependente, de forma a evitar o risco de incompatibilidade de fundo entre as decisões a proferir em ambas as acções, que poderia decorrer do prosseguimento simultâneo de ambas as acções.
(…) A possibilidade de suspensão da instância na causa prejudicial – como forma de evitar a incompatibilidade de julgados – é reforçada nas situações em que os fundamentos invocados para a pretensão deduzida na causa prejudicial são os mesmos que já haviam sido invocados na contestação da causa dependente, para obstar à procedência da pretensão, aí, deduzida, e não existia qualquer obstáculo legal à dedução dessa pretensão, por via de reconvenção, na causa dependente.”2
Segundo o Prof. Alberto dos Reis – que neste passo acompanha o Prof. Manuel de Andrade3, “verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se, nesta via, em via incidental, como teria de o ser desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro, em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal”.
O primeiro dos autores não deixa até de aludir a uma prejudicialidade, seja "por razões de economia processual", seja, em última instância, para "garantir a coerência dos julgamentos".4
Esta noção é a que tem sido acolhida pela doutrina e jurisprudência relativamente à possibilidade de suspensão da instância5, sempre que estando pendentes duas acções, a decisão de uma possa afectar o julgamento de outra e “dando-se até grande liberdade ao juiz no uso do poder que lhe é concedido, devendo ele orientar-se por critérios de utilidade e conveniência processual.”67
Quando a decisão de uma causa depender do julgamento de outra, isto é, quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito, ou quando numa acção se ataca um acto ou um facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, estaremos perante uma causa prejudicial.
3. No caso sub judice há que averiguar se o recurso contencioso e a respectiva decisão pode influir na decisão a proferir na acção cível.
Para tanto há que analisar o que se pede numa e noutra acção e quais as causas de pedir.
Na acção cível, a A. pede a resolução do contrato-promessa por impossibilidade de cumprimento definitivo e culposo da Ré, promitente-vendedora; ou, subsidiariamente, na perda do interesse da A.; pede ainda o pagamento do sinal em dobro; o montante do imposto de selo; juros respectivos.
No recurso contencioso, a Ré, ali promitente vendedora, instaura recurso de anulação do acto administrativo do Chefe do Executivo, de 20/1/2016,,que declarou a caducidade da concessão por arrendamento do terreno onde seria edificado o prédio com a fracção prometida vender àquele A. na acção de resolução do contrato-promessa aludido.
No recurso contencioso invocam-se diferentes vícios, tendo como pano de fundo a imputação de culpa à Administração pela impossibilidade de ter cumprido os prazos da concessão, concretizados como violação de lei, erro sobre os pressupostos de facto, violação de princípios do procedimento administrativo.
Deste confronto resulta que, a proceder o recurso contencioso, uma vez anulado o acto, a Ré, apodada de inadimplente e a quem se imputa uma impossibilidade absoluta de cumprir, veria reposta a sua situação de concessionária e poderia continuar as obras, colocando-se em posição apta ao cumprimento do contrato
Atente-se ainda no facto de que não se questiona a necessidade de observância de um prazo fixo, de um qualquer termo final, pelo que, sempre a simples mora teria de ser convertida em incumprimento definitivo (art. 794º) e, perante os dados que se nos antolham, o certo é que, alegando-se uma impossibilidade absoluta e culposa da Ré na acção cível, esta aí se defende em duas vertentes: numa, dizendo que não há ainda uma impossibilidade absoluta; noutra, dizendo que a culpa, por não ter construído, não é sua, mas sim da Administração.
O pedido formulado baseia-se no disposto no artigo 790º do CC:
“1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
2. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.”
O argumento da Ré não deixa de radicar, para além do não reconhecimento da impossibilidade, no disposto no art 779º do CC, segundo o qual a obrigação se extingue quando a prestação se torna impossível por causa que não lhe seja imputável.
Como está bem de ver, a peticionada resolução do contrato pressupõe um apuramento de uma culpa do promitente-vendedor, que este afasta, discutindo-a na acção cível e no recurso contencioso perante a entidade recorrida.
Então, se assim é, não é difícil configurar uma situação em que, ainda sem força de caso julgado, poderíamos ter duas decisões diferentes sobre a mesma matéria: uma, em que se decidia pela culpa da concessionária; outra, em que se se decidia pela falta de culpa dessa mesma pessoa. Evidencia-se aqui toda uma vantagem e harmonização de julgados, retirando-se essa relevância, se já não da força do caso julgado, da autoridade do caso julgado definidor de uma dada situação jurídica.
De todo o modo, o que não deixa de relevar é que não se deixa de observar, neste momento, teoricamente considerando, a possibilidade de sobrevir uma anulação do acto, pelo que nem sequer de culpa há que falar.
É verdade que resta a questão da perda do interesse e esta pode motivar uma resolução do contrato. Mas essa é uma questão que vem a jusante, face à formulação do pedido com tal fundamento, em termos subsidiários, pelo que a razão de ser do fundamento de não paralisação da acção esbarra com aquele escolho decorrente da formulação do pedido principal, isto é, ter-se-á de apurar primeiramente se há ainda possibilidade de a Ré cumprir, independentemente até da questão da culpa, que sempre podia ser apurada nas duas acções, se bem que com o risco de pronúncia contraditória.
Nestes termos e sem necessidade de outros desenvolvimentos somos a considerar que há todas as razões, por se verificarem os respectivos pressupostos, para suspender a instância nesta acção cível, por prejudicial o recurso contencioso pendente.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, decidir pela suspensão da instância até à decisão a proferir no recurso contencioso.
Sem custas.
Macau, 28 de Setembro de 2017,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Ac. do TSI, de 12/11/2014, Proc. n.º 240/2014
2 - Ac. da RP, de 7/1/2020, Proc. n.º 940/08.9TVPRT.P1
3 - Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, 269
4 - O. cit., 272
5 - Ac. STJ de 28/2/75, BMJ 244,239; STJ de 29/7/80, BMJ 299,280; RC de 5/1/82, CJ,1982, 1º,77: STJ de 18/2/92, BMJ 314,267; STJ de 2/12/93, BMJ 432,285;STJ de de 9/6/87, BMJ 368, 491
6 - Lebre de Freitas, in CPC Anot., I, 1999, 501
7 - Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. I, pag. 286 e vol. III, pág. 206 e Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. II, pag.42.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
615/2017 30/30