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Processo nº 625/2017 Data: 28.09.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla (simples)”.
Legitimidade do Ministério Público.
Queixa.
Ratificação.



SUMÁRIO

1. Se a acção penal por crime semi-público é exercida pelo Ministério Público sem queixa do ofendido, falta uma condição de procedibilidade por carência de legitimidade daquela entidade para a promoção do processo, pelo que o respectivo procedimento está ferido de nulidade insanável, susceptível de ser conhecida a todo o tempo e, por isso, mesmo em sede de recurso.

2. Porém, mesmo a existir qualquer (eventual) irregularidade no que toca à queixa apresentada logo no início dos autos, há que dar a mesma por sanada se, em sede de saneamento e preparação do processo para o julgamento foi o ofendido expressamente notificado por despacho do Tribunal e, em resposta, vem juntar nova procuração e declaração com expressa referência à matéria dos autos, (inclusivé, com o número do processo), impondo-se considerar tal atitude como uma (clara) manifestação de vontade no sentido da ratificação de todo o processado e de prosseguimento do procedimento criminal.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 625/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público respondeu no T.J.B., A, arguida com os sinais dos autos, vindo a ser condenada como autora de 1 crime de “burla (simples)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses e no pagamento ao ofendido da indemnização de MOP$10.315,00 e juros; (cfr., fls. 128 a 134 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu, alegando que a decisão recorrida padece de “nulidade por falta de legitimidade do Ministério Público”; (cfr., fls. 154 a 164-v).

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Em resposta, pugna o Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 167 a 170-v).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.155 a 165 dos autos, a recorrente assacou, à douta sentença em escrutínio (cfr. fls.128 a 134 dos autos), ofensa das disposições nos arts.38° do CPP e 107° do Código Penal, arrogando a inexistência da queixa válida e eficaz, bem como a consequente ilegitimidade do Ministério Público para promover a presente acção penal.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explanações do ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.167 a 170v dos autos), no sentido do não provimento do recurso em exame.
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Nos termos do preceito no n.°3 do art.38° do CPP, a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais. Neste último caso, a brilhante doutrina alerta (Manuel Leal-Henriques: Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Vol. I, Centro de Formação Jurídica e Judiciária 2013): Ao mandante cabe especificar duas coisas: que confere poderes ao mandatário para, em seu nome, apresentar queixa pela prática do ilícito ou ilícitos que expressamente indicar; que esta queixa será dirigida contra o agente ou agentes do facto ou factos referenciados, que também expressamente identificará, se forem conhecidos.
O que nos permite a inferir que a locução «poderes especiais» no referido n.°3 exige que no mandado necessariamente escrito, o mandante deva especificar, de forma tanto precisa quanto possível, o(s) ilícito(s) e o agente já conhecido, não bastando conferir (ao mandatário) poderes genéricos ou abstractos para a prática de uma classe ou categoria de actos (neste sentido, vide. Acórdão do Venerando TSI no Processo n.°133/2002).
Apesar disso, não pode perder da vista que o legislador não estabelece forma ou expressão sacramentais da queixa, é suficiente a expressa declaração da vontade inequívoca de prosseguir a responsabilidade penal do correspondente agente do(s) facto(s) ilícito(s).
Posto isto e voltado ao caso sub judice, impõe-se-nos logo apontar que se encontram duas procurações (授權書) passadas por B a C, respectivamente de fls.18 e 118 dos autos, indicando-se na primeira procuração «為……在本店押假鑽石戒指尋求司警協助», e na segunda «代表本人追究A在D押典當假鑽石戒 (CR3-17-0085-PCS) 一案», cuja assinatura vê notarialmente reconhecida.
Ressalvado elevado respeito pela opinião diferente, inclinamos a entender que a segunda procuração confere suficientes poderes especiais a C para efeitos de ele poder apresentar queixa contra a recorrente. D’outro lado, passada propositadamente em cumprimento do despacho determinando «通知被害人以法定方式追認其職員C所作之告訴» (cfr. fls.106 dos autos), tal procuração produz efeito de ratificar a denúncia verbal apresentada por C em 03/10/2014 (fls.2 a 4 dos autos).
Por outra banda, os documentos de fls.16 e 17 dos autos demonstra que B é o único dono da empresa (estabelecimento comercial) denominada «D押» onde ocorreu o facto ilícito praticado pela recorrente, facto que veio a ser enquadrado no crime de burla pelo MM° Juiz a quo na douta sentença em sindicância.
Nesta medida, e de acordo com o preceituado no n.°1 do art.105° do CPM, colhemos que B é ofendido da conduta ilícita da recorrente e, deste modo, titular do direito de queixa. Daí decorre que ele tinha, na devida altura, legitimidade e poderes para passar procuração a C, conferindo-lhe poderes especiais para devidos efeitos.
Tudo isto aconselha-nos a concluir que tanto a procuração como a denúncia verbal supra aludidas são válidas e eficazes, por isso, existe in casu queixa para os efeitos contemplados nos arts.105° do CPM e 38° do CPP, pelo que o recurso em apreço não pode deixar de ser insubsistente.
(…)”; (cfr., fls.180 a 181).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Vem a arguida recorrer da decisão que a condenou como autora de 1 crime de “burla (simples)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses e no pagamento ao ofendido da indemnização de MOP$10.315,00 e juros, alegando que por falta de queixa do ofendido carecia o Ministério Público de legitimidade para promover o processo que culminou na referida condenação.

Vejamos.

Nos termos do art. 38° do C.P.P.M.:
“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais”.

Perante o estatuído no n.° 1 do transcrito preceito legal, impõe-se concluir que tendo a acção penal por crime semi-público sido exercida pelo Ministério Público sem queixa do ofendido, falta uma condição de procedibilidade por carência de legitimidade daquela entidade para a promoção do processo, pelo que o respectivo procedimento está ferido de nulidade insanável, susceptível de ser conhecida a todo o tempo e, por isso, mesmo em sede de recurso; (como recentemente sucedeu no âmbito do Ac. deste T.S.I. de 15.06.2017, Proc. n.° 428/2017, do mesmo Colectivo deste).

Porém, face ao processado nos presentes autos, afigura-se-nos claro que não se pode reconhecer razão à ora recorrente, muito não se mostrando de consignar.

Com efeito, basta ter em conta que mesmo que existisse qualquer (eventual) questão no que toca à queixa apresentada no início dos autos, (cfr., fls. 18), de olvidar não é que, por decisão do Mmo Juiz a quo, e em sede de saneamento e preparação do processo para o julgamento, foi o ofendido expressamente notificado para suprir qualquer irregularidade na dita queixa, vindo o mesmo, em resposta ao assim determinado, a juntar nova procuração e declaração com expressa referência à matéria dos autos, (inclusivé, com o número do processo), o que não pode deixar de ser visto como uma clara manifestação de vontade no sentido da ratificação de todo o processado e de prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido; (cfr., fls. 118).

Nesta conformidade, visto está que o agora alegado pela recorrente mais não é do que uma “falsa questão” que, como se mostra óbvio, não pode proceder.

Outra questão não havendo, e sem necessidade de mais alongadas considerações resta decidir.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a arguida a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 28 de Setembro de 2017
José Cândido de Pinho
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 625/2017 Pág. 10

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