Processo n.º 450/2017 Data do acórdão: 2017-9-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código Penal
S U M Á R I O
Como depois de examinados crítica e globalmente todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da sentença recorrida, não se vislumbra como patente que o tribunal sentenciador recorrido tenha violado alguma norma jurídica sobre o valor legal da prova, alguma regra da experiência da vida humana quotidiana ou alguma lege artis vigente na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, não pode ter ocorrido qualquer erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 450/2017
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 229 a 233 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR1-16-0481-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que a condenou como autora material de um crime consumado de ameaça, p. e p. pelo art.o 147.o, n.o 1, do Código Penal (CP), na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, veio a arguida B, aí já melhor identificada, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 240 a 254 dos presentes autos correspondentes, que houve, por parte do Tribunal sentenciador, erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) (entendendo a recorrente, pois, que tendo ela conflito de dinheiro com a ofendida e a outra testemunha de acusação, as declarações prestadas pela ofendida e por essa testemunha na audiência de julgamento não seriam credíveis nem imparciais), para além de se verificar o uso de um método proibido de prova (já que conforme a lei processual penal, a ofendida e a outra testemunha de acusação não deveriam ter deposto na audiência sobre o teor das palavras ditas pela arguida recorrente num dos telefonemas então feitos àquela testemunha, mas levadas em tempo simultâneo real ao conhecimento da ofendida, por tal testemunha ter deixado a ofendida ouvir na altura ao mesmo tempo real tais palavras ditas ao telefone pela recorrente, sem prévio consentimento prestado por esta), e subsidiariamente falando, também houve violação, pelo Tribunal recorrido, do tipo legal do art.o 147.o do CP (uma vez que a recorrente não agiu com o dolo, nem tão pouco com o dolo eventual, de ameaçar a ofendida), e por isso tudo deveria a própria recorrente ser absolvida do crime de ameaça ou pelo menos o processo deveria ser reenviado para novo julgamento.
Ao recurso respondeu a fls. 259 a 263v o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal a quo no sentido de improcedência manifesta do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 272 a 273v, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame do processo, sabe-se que a sentença recorrida se encontra proferida a fls. 229 a 233, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
Atenta a matéria de facto aí descrita como provada, sabe-se que:
– em meados de Março de 2015, por ocasião do encontro da ofendida com a testemunha de acusação (aludida na motivação de recurso) num jardim para falarem do caso de reembolso de empréstimo, a arguida telefonou para essa testemunha de acusação, a qual ligou o amplificador do auscultador do seu telemóvel. No telefonema, a arguida disse à testemunha de acusação (originalmente em chinês) que: “a ofendida pensava que eu a tratava realmente bem, mas a verdade é que ando a aproveitar ela, porque as pessoas da sua volta podiam emprestar dinheiro a ela. Ela provoca tantas coisas, vou arranjar o “XX” para a agredir, e vou arranjar os soldados do “YY” para bater porta da casa dela” (cfr. o facto provado 4);
– a arguida telefonou por várias vezes para a ofendida, afirmando que ia arranjar outrem para agredir a ofendida (cfr. o facto provado 5);
– em 16 de Abril de 2015, a arguida disse ao telefone à ofendida (originalmente em chinês) que “Vai tu participar à Polícia! Sei onde é a Polícia Judiciária! Ensino-te até como ir para lá. Logo que chegues à entrada da Polícia Judiciária, arranjarei outrem para bater o teu pé até que sejas coxa!” (cfr. o facto provado 6);
– a conduta e as palavras acima referidas da arguida fizeram com que a ofendida tenha sentido medo e inquietação, e a ofendida foi então, na companhia da dita testemunha de acusação, à Polícia Judiciária para participar o caso e pedir auxílio (cfr. o facto provado 7);
– a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de praticar a conduta acima referida (cfr. o facto provado 8);
– a arguida sabia claramente que a conduta acima referida era proibida e punível por lei (cfr. o facto provado 9).
A M.ma Juíza autora da sentença recorrida fundamentou a sua decisão de verificação do crime de ameaça da arguida de moldes seguintes (originalmente em chinês, no último parágrafo da página 6 dessa decisão, a fl. 231v dos autos):
– segundo os factos provados, a arguida sobretudo telefonou por várias vezes para a ofendida, afirmando que ia arranjar outrem para agredir a ofendida, tendo a conduta e as palavras referidas feito com que a ofendida tenha sentido medo e inquietação, tendo, então, a ofendida ido à Polícia Judiciária para participar o caso e pedir auxílio. A conduta da arguida já constituiu um crime de ameaça por que vinha acusada.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Vem a recorrente suscitar o problema de erro notório na apreciação da prova, alegando que a existência de conflito de dinheiro entre ela e a ofendida e a testemunha de acusação em causa faz desacreditar a imparcialidade das declarações prestadas por essas duas senhoras na audiência de julgamento.
Por outro lado, salienta a recorrente que o Tribunal sentenciador não devia ter valorado as declarações dessas duas senhoras acerca da matéria de facto acusada correspondente ao facto provado 4, pois o conteúdo das palavras por ela ditas no telefonema feito em meados de Março de 2015 para o telemóvel da testemunha de acusação foi, sem prévio consentimento dela própria, conhecido em tempo real pela ofendida, por a testemunha de acusação ter ligado na altura o amplificador do auscultador do telemóvel. Por isso, houve uso de uma prova proibida.
Por fim, entende a recorrente que fosse como fosse ela nunca agiu com dolo de ameaçar a ofendida.
É de resolver primeiro a alegada prova proibida.
O art.o 113.o, n.o 1, do CPP reza que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral da pessoa. E o n.o 3 desse artigo determina que ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
Por outro lado, segundo o art.o 172.o, n.o 1, do CPP, a intercepção ou gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada, por despacho do juiz, se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova quanto a crime nomeadamente de ameaça. E o art.o 337.o, n.o 7, do CPP preceitua que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
No caso dos autos, desde já se nota que:
– o acto de a testemunha de acusação ter ligado o amplificador do auscultador do seu telemóvel quando a arguida lhe telefonou não é acto de intercepção ou gravação do telefonema então em curso, feito pela arguida para a própria testemunha de acusação, daí que não é aplicável o art.o 172.o, n.o 1, do CPP;
– mesmo que a ofendida e a testemunha de acusação em causa tivessem deposto na audiência de julgamento sobre o conteúdo desse telefonema então feito em meados de Março de 2015 pela arguida para o telemóvel da testemunha de acusação, isso não ficaria sob a alçada da norma do n.o 7 do art.o 337.o do CPP, visto que quando a arguida fez tal telefonema, ainda não existiu o subjacente processo penal.
Voltando ao cerne da questão de alegada prova proibida, a tese da recorrente tem que cair por terra, porquanto ainda que a ofendida e a testemunha da acusação tivessem deposto na audiência de julgamento sobre o conteúdo do acima dito telefonema, todas as declarações verbalmente prestadas por essas duas senhoras nessa sede de julgamento não teriam sido obtidas mediante qualquer tortura, coacção ou ofensa da integridade física ou moral da própria pessoa dessas duas senhoras, nem poderiam ter sido obtidas mediante intromissão num telefonema em curso (visto que tal como se notou acima, não se tratou, no caso dos autos, de qualquer intercepção ou gravação de qualquer telefonema em curso).
E cabe frisar que a M.ma Juíza a quo condenou a arguida pelo crime de ameaça desta vez, não por a arguida ter feito tal telefonema em meados de Março de 2015 para a testemunha de acusação, nem pelo teor das palavras ditas pela arguida nesse telefonema, mas sim por a arguida ter telefonado por várias vezes para a ofendida, afirmando que ia arranjar outrem para agredir a ofendida, tendo essas conduta e palavras ditas pela arguida feito com que a ofendida tenha sentido medo e inquietação.
Assim sendo, há que naufragar mesmo o recurso na parte respeitante à alegada valoração de uma prova proibida.
Passa-se a conhecer do arguido vício de erro notório na apreciação da prova.
Pois bem, depois de examinados crítica e globalmente todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da sentença recorrida, realiza o presente Tribunal de recurso que não se vislumbra como patente que o Tribunal recorrido tenha violado alguma norma jurídica sobre o valor legal da prova, alguma regra da experiência da vida humana quotidiana ou alguma lege artis vigente na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, pelo que não pode ter ocorrido qualquer erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP. De salientar que a existência de conflito de dinheiro entre a arguida e a ofendida e a testemunha de acusação não compromete necessariamente a credibilidade das declarações prestadas por essas duas senhoras na audiência de julgamento, pois tudo se resume no foro da livre apreciação da prova, permitida ao Ente Julgador à luz do art.o 114.o do CPP.
Por fim, quanto à subsidiariamente levantada questão de não verificação do dolo do crime de ameaça, a argumentação da recorrente já ficou materialmente precludida pela matéria de facto já apurada pelo Tribunal sentenciador.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela recorrente, com duas UC de taxa de justiça e duas mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
O presente acórdão é irrecorrível nos termos do art.o 390.o, n.o 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Comunique à ofendida.
Macau, 28 de Setembro de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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