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Processo nº 401/2016
Data do Acórdão: 19OUT2017


Assuntos:

Seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação
Direito de regresso
Abandono de sinistrados


SUMÁRIO

Face ao disposto no artº 16º-c), in fine, do D. L. nº 57/94/M que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação, a seguradora tem direito de regresso contra o causador do acidente independentemente da prova do nexo de causalidade entre acto de abandono e os danos ou o agravamento dos danos.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 401/2016


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV2-14-0083-CAO, do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

I – Relatório :
  Companhia de Seguros de X S.A. (X保險股份有限公司), Pessoa Colectiva matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º …, com sede em Macau na…;
  veio intentar a presente
  Acção Ordinária
  A (A), casada, residente em Macau na…;
  com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 9,
  concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada a presente acção, e em consequência, fosse o Réu condenado no pagamento à Autora do montante de MOP269,237.00, acrescido de juros à taxa legal, a contar da citação até efectivo pagamento integral, bem como em custas, honorários de presente cobrança coerciva, bem como, em resultado de uma eventual acção executiva, em montante a liquidar em execução de sentença.
*
  O Réu contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 85 a 88 dos autos
  Concluiu pedindo que seja julgado improcedente o pedido da Autora.
*
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam".
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
*
  Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- Correu termos no 3º Juízo Criminal, o Processo Comum Colectivo nº CR3-09-0110-PCC, onde foi discutido um acidente de viação ocorrido no dia 24 de Outubro de 2004, cujos intervenientes foram o A que conduzia um ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX e a B que seguia no veículo ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX conduzido por C (alínea A) dos factos assentes).
- No referido processo a entidade acusadora foi o Ministério Público, a Demandante Cível a B, o Arguido e Demandado Cível o ora Réu, A, tendo sido também Demandada Cível a ora Autora, a Companhia de Seguros de X (alínea B) dos factos assentes).
- Nos termos do Acórdão, os seguintes factos ficaram provados nos seguintes termos (alínea C) dos factos assentes):
a) No dia 24 de Outubro de 2004, pelas 17:40, a C conduzia o ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX, transportando B, que seguiam na Estrada Marginal do Hipódromo em direcção à Rua Um do Bairro Iao Hong.
b) Ao chegar ao cruzamento entre a Estrada Marginal do Hipódromo, em direcção à Rua Um do Bairro Iao Hon, o ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX, conduzido pelo Arguido A, ultrapassou repentinamente, pelo lado esquerdo, o ciclomotor conduzido pela C para entrar na faixa de rodagem direita.
c) Durante o processo, o lado direito do ciclomotor conduzido pelo arguido embateu no guiador do lado esquerdo do ciclomotor da C.
d) Devido ao embate ocorrido, tanto a C bem como a passageira B foram lançadas ao chão, juntamente com o ciclomotor.
e) Após o embate o Arguido não parou o seu veículo, com vista a resolver a questão do acidente, e, sem tomar conta do sucedido virou para o lado direito em direcção à Avenida da Longevidade, afastando-se do local do acidente.
f) O referido acidente causou directamente ferimentos às lesadas C e B.
g) O referido acidente causou à lesada C contusões do tecido mole do seu cotovelo esquerdo, tendo sido necessário dois dias para se restabelecer.
h) O mesmo acidente causou também à lesada B a fractura da articulação do seu quadril esquerdo e fractura do colo do fémur esquerdo, tendo sido necessário 128 dias para se restabelecer, mais 10 dias para a intervenção cirúrgica para a extracção da fixação interna. Relativamente à gravidade dos ferimentos, trata-se de ofensas graves à integridade física da lesada B.
i) Aquando da ocorrência do acidente o tempo estava bom, o chão não estava escorregadio e a intensidade do trânsito era normal.
j) O Arguido praticou o acto acima mencionado de forma livre e consciente.
k) O Arguido não conduziu com prudência, não tendo prestado atenção às regras de condução que devia prestar, fazendo uma ultrapassagem no cruzamento, em contravenção ao artigo 28º, n.º 3, alínea c) do Código da Estrada. Além disso, quando estava a conduzir em paralelo com o veículo da lesada C, não manteve a distância suficiente entre os dois veículos, pelo que causou o presente acidente, em contravenção ao artigo 14º, n.º 3 do Código da Estrada.
l) O Arguido bem sabia que o não cumprimento das regras de trânsito poderia causar acidentes e ferimentos a pessoas, … ao praticar o acto, não prestou atenção à situação que devia e podia prestar, pelo que causou o presente acidente, resultando directa e necessariamente ofensa simples à integridade física da lesada C e ofensa grave à integridade física da lesada B.
m) O Arguido foi o causador do referido acidente de viação, contudo, fora dos meios legais ao seu alcance furtou-se à eventual responsabilidade civil ou criminal.
- Resultou do douto Acórdão proferido naqueles autos que o A foi condenado na pena de prisão de um ano e nove meses, suspensa por dois anos, pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 142º, n.º 3, conjugado com o artigo 14º, alínea a) do Código Penal e artigo 66º, n.º 1 do Código da Estrada (Código da Estrada antigo), tendo sido absolvido do crime ofensa simples à integridade física em virtude da desistência de queixa da C, e ainda na prática de um crime de fuga à responsabilidade, previsto e punido pelo artigo 64º do Código da Estrada (código da Estrada antigo), e, a Companhia de Seguros de X foi condenada no pedido de indemnização cível a pagar à B, por danos patrimoniais e não patrimoniais, o montante global de MOP230.237,00 (duzentos e trinta mil, duzentos e trinta e sete patacas), acrescido de juros legais desde o trânsito em julgado (alínea D) dos factos assentes).
- Através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., foi transferida à Companhia de Seguros de X, no período entre as 00:00 de 15-10-2004 até as 24:00 de 14-10-2005, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela utilização do veículo ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX. (fls. 58 dos autos) (alínea E) dos factos assentes)
- Do Acórdão, a Demandada Seguradora, ora Autora, por não concordar com a fixação do montante por compensação dos danos não patrimoniais interpôs recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instancia, o que foi julgado improcedente (alínea F) dos factos assentes).
**
Da Base Instrutória:
- No dia 8 de Abril de 2014, a Autora entregou a B MOP$230.237,00 a título da indemnização e MOP$50.000,00 a título dos juros de mora (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- A Autora no processo referido na al. A dos Factos Assentes despendeu, ainda, as quantias de MOP30.000,00 a título de gestão do sinistro e MOP9.000,00 a título de custas judiciais (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
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III – Fundamentos:
  Pela presente acção, pretende a Autora exercer a acção de regresso contra o Réu nos termos do artigo 16º, c), do Decreto-Lei nº 57/94/M, de 28 de Novembro.
  Conforme a Autora, num determinado dia e local, quando o Réu estava a conduzir um ciclomotor, este atropelou a vítima B razão por que foi considerado criminalmente culpado pela produção do acidente; uma vez que a Autora estava contratualmente obrigada a responder pelos danos causados por terceiros pela utilização do ciclomotor então conduzido pelo Réu, a Autora foi condenada a indemnizar a vítima tendo a mesma feito, entretanto, o devido pagamento; após o embate, o Réu, em vez de parar para tomar conta do sucedido, afastou-se do local do acidente razão por que também foi condenado pelo cometimento de um crime de fuga à responsabilidade.
  Dispõe o artigo 16º, c) do Decreto-Lei nº 57/94/M, de 28 de Novembro que “Satisfeita a indemnização, a seguradora tem o direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.”
  Tendo em conta o alegado pela Autora e o disposto na norma acima transcrita, urge, antes de mais, aquilatar se a Autora tinha a obrigação de indemnizar os danos sofridos pela vítima por força do contrato indicado pela Autora e se, no presente caso, há lugar ao regresso nos termos peticionados.
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  No que à primeira questão se refere, não se coloca grandes dificuldades.
  Em primeiro lugar, na sentença crime que apreciou o acidente ora em discussão provou-se que o Réu dera causa ao acidente provocando ferimentos à vítima, porque não conduzira com prudência nem manteve a distância suficiente entre o seu ciclomotor e ciclomotor então conduzido por um terceiro de que a vítima era passageirae acabou por embater no guiador do lado esquerdo do segundo ciclomotor e causar a queda do respectivo condutor e da vítima bem como lesões físicas a estes.
  Ora, a forma como o réu conduziu o seu ciclomotor consubstancia uma transgressão à norma do artigo 14º, nº 3, do Código da Estrada,1 lei então em vigor.
  Há, portanto, um facto ilícito visto que o Réu violou ilegalmente a integridade física da vítima sem qualquer causa que justifique tal acto.
  Trata-se de um facto culposo visto que está assente que o Réu sabia que o não cumprimento das regras de trânsito podia causar lesões a terceiros mas, mesmo assim, não prestou atenção na sua condução quando podia fazê-lo.
  Os danos a que se refere o presente caso são os ferimentos que a vítima sofreu.
  Há também nexo de causalidade uma vez que se provou que esses ferimentos foram causados pelo embate e não há indicação sobre a existência de qualquer facto anormal que tivesse interrompido esta causalidade.
  Ora, conjugado isso tudo, havia por parte do Réu a obrigação de indemnizar os danos sofridos pela vítima, por força da responsabilidade civil em que o Réu incorrera.
  Em segundo lugar, provou-se que entre a Autora assumiu a responsabilidade pelas indemnizações resultantes de acidentes provocados pelo ciclomotor então conduzido pelo Réu por força da apólice de seguro nº ....
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  Quanto à segunda questão acima suscitada, está assente que a Autora foi condenada a indemnizar a vítima dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo acidente, no valor total de MOP230.237,00, acrescidos de juros legais desde o trânsito em julgado da sentença condenatória e pagou à vítima a quantia de MOP230.237,00 a título de indemnização e MOP50.000 a título de juros.
  A isso acresce que está provado que, após o embate, o Réu não parou o seu veículo, com vista a resolver a questão do acidente, e, sem tomar conta do sucedido virou para o lado direito em direcção à Avenida da Longevidade, afastando-se do local do acidente.
  Precisamente por isso o Réu foi também condenado pela prática de um crime de fuga à responsabilidade.
  Ora, será isso suficiente para impor ao Réu a obrigação de restituir à Autora as quantias que esta despendeu por causa do acidente discutido nos presentes autos?
  Julga-se que não.
  Senão vejamos.
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  Os tribunais portugueses já tiveram ocasião de a analisar essa questão cuja jurisprudência é aqui citada a título de direito comparado. Com efeito, consta do ordenamento português uma norma cujo conteúdo é exactamente igual à do artigo 16º, c) do Decreto-Lei nº 57/94/M acima transcrito: a norma do artigo 19º, c), do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
  Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, de 2 de Novembro de 2003, http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2a9aa13c53736d898025741100380fb4?OpenDocument “A norma do art. 19º, alínea c), do DL nº 522/85 - ao preservar que, «satisfeita a indemnização», a seguradora «tem direito de regresso» «contra o condutor», quando este «haja abandonado o sinistrado» - inscreve-se no regime do seguro obrigatório da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação. Por sua vez, esta responsabilidade civil - regulada nos art.s 483º e segs do Cód. Civil - tem como pressuposto, designadamente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano. A própria obrigação de indemnização, que tem a sua génese na responsabilidade civil, só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º do Cód. Civil).” (sublinhado nosso)
  Exactamente por isso que mais acima foi debruçada sobre a questão de saber se o Réu tinha obrigação de indemnizar a vítima para daí accionar o contrato de seguro donde decorria para a Autora a obrigação de pagar a respectiva indemnização à vítima.
  Continuando a sua análise, o Acórdão acabado de citar acrescentou o seguinte: “O contrato de seguro é um contrato cujo objecto abrange duas prestações: a da seguradora, "de conteúdo complexo e consistente na assunção do risco pelo qual liberta o segurado da preocupação e insegurança de vir a suportar os danos decorrentes da verificação do sinistro típico do risco coberto, e na obrigação de pagar um determinado capital, se o sinistro se verificar" e a do segurado, "consistente na obrigação de pagamento do prémio" (cf. Maria Clara Lopes, "Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel", págs. 15/16. A actuação do condutor de um veículo que, após o acidente, abandona a vítima pode dar origem a situação que sai fora do esquema normal do risco assumido pela seguradora, na medida em que traduz um comportamento não previsível no homem médio. Sendo assim, é justo que a seguradora que pagou a indemnização de todos os danos - aqueles que resultaram do acidente de viação e os que foram causados pelo abandono do sinistrado - tenha o direito de reaver do condutor a parte da indemnização que corresponde aos segurados. Por um lado, compreende-se que, não sendo o abandono um risco assumido pela seguradora, não deva ser ela a suportar os danos resultantes desse abandono: deve, por isso, quanto à parte da indemnização que a seguradora pagou, reconhecer-lhe o direito de regresso. Por outro lado, nada justifica que esse direito abranja, também, a parte da indemnização respeitante aos danos que sempre se produziriam com ou sem abandono, sendo este de todo irrelevante quanto ao risco assumido. O acto de abandono da vítima de um acidente de viação, embora seja reprovável no domínio da ética e do direito criminal, não justifica um benefício para a seguradora, isentando-a da responsabilidade que assumira através do respectivo contrato de seguro, quanto aos danos que nada têm a ver com esse abandono. Nos casos em que o abandono não foi causa determinante de outros danos para além dos causados pelo acidente em si ou do agravamento destes danos, não pode falar-se em agravamento do risco coberto pela apólice. … Do precedentemente explanado, resulta, por conseguinte, que o direito de regresso não se basta com a simples ocorrência material do abandono. Importa, sempre, um juízo de ligação do dano à previsão legal, o que significa que o direito de regresso só existe se, efectivamente, da situação prevista na lei emergir, em concreto, um dano exorbitante do risco normal assumido pela seguradora.” (sublinhado nosso)
  De facto, o contrato de seguro automóvel tem como ponto de referência o risco de lesão de direitos de terceiros inerente ao próprio veículo ou ao uso do mesmo e da consequente obrigação de indemnizar. O que se transfere é exactamente esse risco mesmo nos casos em que haja culpa do tomador do seguro ou do utilizador na produção da lesão. A concretizar-se esse risco, nada resta à seguradora senão indemnizar o lesado sem qualquer direito de regresso contra o tomador ou utilizador. Pois, ao celebrar o contrato a seguradora assumiu esse mesmo risco e foi precisamente para se proteger desse risco que o tomador pagou o respectivo prémio.
  Ora, o mesmo não acontece quando a lesão e o consequente dever de indemnizar resultam de uma qualquer acção ou omissão do tomador ou condutor não previsto no quadro negocial estabelecido entre o tomador e a seguradora. É que, nesse cenário a respectiva responsabilidade não foi contratualmente transferida para a seguradora. O risco, pura e simplesmente, não foi assumido pela seguradora. Em tais situações, não deve a seguradora arcar com qualquer obrigação de indemnizar o lesado.
  No entanto, o Decreto-Lei nº 57/94/M que veio disciplinar o seguro obrigatório automóvel impôs à seguradora a obrigação de indemnizar todo e qualquer prejuízo de que o proprietário, adquirente com reserva de propriedade, locatário ou usuário do veículo, bem como os legítimos detentores ou condutores são responsáveis – cfr artigo 3º, nº 1, do mesmo diploma – salvaguardando apenas o direito de regresso da seguradora nos casos previstos no artigo 16º.
  Daí que, não se deve perder de vista que há uma grande diferença entre o que a seguradora contratualmente assumiu e o que está já fora do contrato de seguro mas que o regime de seguro obrigatório impõe à seguradora.
  Como no segundo caso se está perante uma obrigação de que a seguradora é alheia porque a mesma não acordou assumi-la, é mais que justificado reconhecer-lhe o direito de pedir a restituição do valor pago ao lesado a título de indemnização tão-só porque a lei do seguro obrigatório assim impõe. Contudo, é preciso que haja dados para concluir que se está esse segundo caso. Dito por outras palavras, indispensável é demonstrar que a lesão se deu fora do risco previsto no contrato.
  No presente caso, será esse o caso se a lesão sofrida pela vítima não for causada pelo acidente mas sim pelo abandono porque, em relação aos prejuízos causados pelo acidente, a Autora é integralmente responsável por força do contrato de seguro enquanto que no que diz respeitos os danos provocados pela abandono não. Para o que é ainda imprescindível a alegação e prova dos factos que demonstram o nexo de causalidade entre a lesão sofrida pela vítima e o abandono do local por parte do Réu.
  Trata-se de uma exigência também defendida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, de 30 de Maio de 2006, http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/663c865feb09405580257184005252d1?OpenDocument: “… para que haja lugar a direito de regresso da seguradora necessário se torna que os prejuízos suportados por esta derivem, como consequência típica e adequada, do abandono de sinistrado, que seja feita a prova de que os prejuízos reclamados por aquela resultam especificamente de tal abandono, não sendo suficiente a mera alegação e prova deste … .”
  Ora, flui dos factos provados nestes autos que o Réu abandonou o local depois do acidente e a vítima sofreu determinadas lesões físicas. Porém, nada indica que essas lesões ou parte delas resultou do abandono porque nada foi alegado a esse respeito. Antes, dos factos provados relativos às lesões sofridas pela vítima, aliás, exactamente como vem alegado pela Autora, as lesões resultaram do acidente.
  Pelo que, nada permite concluir que a indemnização paga pela Autora diz respeito a um risco não coberto pelo contrato de seguro a que os presentes autos se referem e, como tal, o pagamento efectuado lhe confere o direito de regresso previsto no artigo 16º, c), do Decreto-Lei nº 57/94/M.
  Por força disso, nada resta senão julgar improcedentes todos os pedidos formulados pela Autora, pois, todos esses pedidos têm por base o citado direito de regresso.
*
IV – Decisão (裁 決):
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção, em consequência, absolver o Réu, A, dos pedidos formulados pela Autora, Companhia de Seguros de X S.A..
*
  Custas pela Autora.
*
  Registe e Notifique.
*
  據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,駁回原告X保險股份有限公司針對被告A提出之請求,開釋被告。
*
  訴訟費用由原告承擔。
*
  依法作出通知及登錄本判決。


Não se conformando com o decidido, veio a Autora Companhia de Seguros de X, S.A., recorrer da mesma concluindo que:

I
  O presente recurso é interposto do acórdão proferido nos autos, que absolveu o Réu, A, do pedido de pagamento de uma indemnização no montante de MOP269.237,00, a título de direito de regresso em virtude de abandono do sinistrado no acidente de viação, tendo em face da matéria dada por provada sido julgado improcedente a acção, o que não colhe a concordância da Recorrente que entende haver violação do artigo 16.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M.
II
  O Tribunal a quo formulou a sua convicção com base num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, mas nesta matéria o mesmo tribunal já produziu decisões que analisam a questão em sentido oposto.
III
  A posição assumida no acórdão recorrido transforma a interpretação do direito de regresso previsto no Decreto-Lei n.º 57/94/M num instrumento inexistente, esvaziando o preceito legal que o prevê, sendo certo que se a lei quisesse que o regresso se delimitasse ao excesso devido ao abandono tê-lo-ia dito claramente, fazendo uma restrição ou uma explicação detalhada, não devendo, por isso, ser acolhida a interpretação expressa na fundamentação da decisão.
IV
  O artigo 16.º, alínea c), não menciona que é necessário demonstrar que a lesão se deu fora do risco previsto no contrato e que as lesões, ou parte delas, devem resultar do abandono, dizendo, sem mais, que há direito de regresso quando o condutor haja abandonado o sinistrado.
V
  O direito de regresso previsto do decreto-lei é incondicionado, quem tiver abandonado o sinistrado tem de repor a indemnização, e não há que restringir o regresso ao que, eventualmente, se tenha pago a mais.
VI
  O legislador não impôs qualquer condição no direito de regresso para o abandono de sinistrado, constituindo a regra o pagamento da indemnização a cargo do prevaricador como castigo por ter abandonado o lesado.
VII
  Se a lei quisesse que o regresso fosse relativo ao excesso devido ao abandono, tê-lo-ia expresso claramente, fazendo uma restrição como fez para a alínea e) do artigo 16.º.
VIII
  Reforçando a ideia de que o legislador não se equivocou é que pretendeu sancionar o efectivo responsável pela condução do veículo, tendo tido o cuidado de se expressar no sentido de actuar não contra o segurado, mas sim contra o condutor responsável do abandono, e, por outro lado, o legislador quando redigiu a lei não ignorou que são muito poucos os casos em que a omissão de auxílio determina o agravamento dos danos na prática, englobando-os no próprio direito de regresso.
IX
  O acórdão recorrido baseia-se em jurisprudência de um outro ordenamento jurídico, os Tribunais da R.A.E.M. são autónomos e independentes, tais como os seus magistrados, e não estão obrigados a seguir a jurisprudência comparada, prevendo o artigo 2.º, n.º 6, alínea b) do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8 de Outubro, preambular do Código de Processo Civil de Macau, que não há obrigatoriedade para os Tribunais de Macau, independentemente da pertinência, ou não, da posição jurídica uniformizada para a solução do caso, podendo decidir em oposição ao uniformizado pelos Tribunais portugueses.
X
  O Tribunal de Segunda Instância trata os casos de direito de regresso em caso de abandono do sinistrado em acidente de viação numa perspectiva oposta à do douto acórdão recorrido, in casu o acórdão do T.S.L, n.º 505/2008, de 12.5.2011, expressa que a alínea c) do artigo 16.º, do Decreto-Lei n.º 57/94/M, não pode ser interpretada no sentido de que a seguradora que tiver satisfeito a indemnização só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado "em relação à indemnização que resulte especificamente desse abandono ou do agravamento dos danos do acidente daí derivados': visto que, a montante, essa tese "interpretativa restritiva" não tem na letra dessa alínea c) um mínimo de correspondência verbal, (...) porquanto ele já soube consagrar expressamente, na letra da alínea e) do mesmo art.º 16.º, uma restrição ou excepção respeitante à procedência do direito de regresso da seguradora contra o "responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica': qual seja, a de o sujeito contra o qual se pretende exercer o direito de regresso "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
XI
  O douto acórdão reforça a sua posição mencionando que mediante o confronto da diferença na redacção da alínea c) e na da alínea e) dentro do mesmo artigo 16º, é de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
XII
  A Recorrente tem direito de regresso sobre o Réu, o que se diz ao abrigo do artigo 16.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, fez prova integral do que era exigido pela lei, requerendo, de acordo com o exposto e o anteriormente decidido pelo douto Tribunal de Segunda Instância, se dê provimento ao recurso.
  Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. certamente suprirão, deverá o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo JUSTIÇA.

Ao recurso não respondeu o Réu.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Ora, a única questão levantada pela Recorrente é saber se, face ao disposto no artº 16º-c) do D. L. nº 57/94/M, a seguradora só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado em relação aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado, ou o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

A propósito da questão idêntica, este Tribunal de Segunda Instância já chegou a pronunciar-se no sentido de acolher a segunda posição, isto é, o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.

Foram no Acórdão do TSI tirado no processo nº 505/2008, em 12MAIO2011, tecidas as seguintes considerações e conclusões:

“- outrossim, rezando o art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro, que «Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra: ... c) O condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado», esta alínea c) não pode ser, de facto, interpretada no sentido de que a seguradora que tiver satisfeito a indemnização só tem direito de regresso contra o condutor que abandonou o sinistrado "em relação à indemnização que resulte especificamente desse abandono ou do agravamento dos danos do acidente daí derivados", visto que, a montante, essa tese "interpretativa restritiva" não tem na letra da alínea c) do artigo em questão um mínimo de correspondência verbal, e, a jusante, se fosse essa tese o real pensamento legislativo, então o Legislador do dito Decreto-Lei não deveria ter omitido a expressão desse pensamento "restritivo" na letra da alínea c), porquanto ele já soube consagrar expressamente, na letra da alínea e) do mesmo art.º 16.°, uma restrição ou excepção respeitante à procedência do direito de regresso da seguradora contra o "responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica", qual seja, a de o sujeito contra o qual se pretende exercer o direito de regresso "provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo".
Daí que, em suma, mediante o confronto da diferença na redacção da alínea c) e na da alínea e) dentro do mesmo artigo 16.°, é de presumir, por comando plasmado no n.º 3 do art.º 8.° do Código Civil de Macau, que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

Acórdão esse que acabou por ser confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância, tirado no processo nº 52/2011, em 09NOV2011, onde aquele Venerando Tribunal decidiu a questão nos termos seguintes:
Como é sabido, na interpretação da lei, o intérprete tem de partir da sua letra, embora sem se cingir a ela, sendo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 8.º, n. os 1 e 2 do Código Civil).
  A letra da alínea c) do artigo 16.º aponta decisivamente para a solução segundo a qual o abandono de sinistrado conduz ao direito de regresso contra o condutor, independentemente de os danos terem ou não sido especificamente causados ou agravados pelo crime de abandono. Claro que o condutor tem de ter sido o responsável pelo acidente e, por via disso, a seguradora teve de satisfazer indemnização ao lesado. Mas da letra da lei não resulta que o direito de regresso da seguradora só se pode efectivar se a seguradora provar que os danos foram devidos ao abandono e não ao acidente.
  Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
  Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa2. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
  Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, já foi designada.
  Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?
  A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
  Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
  O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
  É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva3, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º)4
  O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.
  Por outro lado, o artigo 517.° do Código Civil não dispõe aquilo que o recorrente alega, que parece antes estar a referir-se ao artigo 490.º do Código Civil, mas também tal como o anterior, completamente estranho ao problema que está em causa.
Conclui-se, assim, que o direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.

Subscrevemos integralmente as sensatas e convincentes razões doutamente expostas em ambos os Acórdãos, que demos aqui por integralmente reproduzidas, para julgar procedente o recurso.

Tudo visto, resta decidir.



III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso interposto pela Autora Companhia de Seguros de X, S.A., revogando a sentença recorrida e passando a condenar o Réu A no pedido nos exactos termos peticionados na petição inicial.

Custas pelo Réu, em ambas as instâncias.

Notifique.

RAEM, 19OUT2017

Lai Kin Hong

João A. G. Gil de Oliveira (junto declaração)

Ho Wai Neng
























Declaração de voto


Não enjeitando as linhas-força alinhavadas no nosso acórdão, de 21/1/2016, Proc. 537/2017, que continuamos a ter como válidas para os casos, como aquele sobre que incidia - condução sob o efeito do álcool -, aceitando uma evolução, no que ao abandono do sinistrado concerne, na linha de uma certa orientação doutrinária e jurisprudencial, também ela acolhida pelo V.º TUI, como flui do texto do acórdão, que propende para enfatizar a natureza sancionatória da responsabilidade civil, propendemos para a adesão à tese plasmada no presente acórdão, pelo que o voto favoravelmente.

Macau, 19 de Outubro de 2017,



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(João Gil de Oliveira)
1 De acordo com essa norma “Os condutores que transitem em sentidos opostos ou em filas paralelas ou que efectuem uma ultrapassagem devem deixar livre entre si uma distância lateral suficiente paar evitar qualquer acidente.”
2 Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Lisboa, Livraria Petrony, 6.ª edição, sem data, p. 668.
3 PATRÍCIA CARLA MONTEIRO GUIMARÃES, Os Danos Punitivos e a Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Direito e Justiça, 2001, Vol. XV, Tomo 1, p. 164 e segs.
4 PAULA MEIRA LOURENÇO, Os Danos Punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2002, Vol. XLIII, n.º 2, p. 1061.
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Ac. 401/2016-23