Proc. nº 131/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 01 Novembro 2017
Descritores:
- Comodato
- Benfeitorias voluptuárias
SUMÁRIO:
I. Se o réu ocupa uma fracção por empréstimo, fá-lo ilicitamente a partir do momento em que é interpelado para a desocupar e entregar aos seus legítimos donos.
II. As benfeitorias que o R nessa situação tiver efectuado no imóvel são consideradas de má fé (art.1066º, nº1, do CC), o que significa que não tem que ser indemnizado das voluptuárias que ali tiver realizado (art. 1200º, nº2, do CC).
Proc. nº 131/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, casado, no regime da separação de bens, de nacionalidade australiana, titular do Passaporte da Austrália n.º …, emitido em 16/05/2005, residente na Austrália, …,----
e ---
B, casado, no regime da separação de bens, de nacionalidade australiana, titular do Passaporte da Austrália n.º …, emitido em 16/05/2005, residente na Austrália, …, ---
Instauraram acção declarativa comum com processo ordinário, contra:
C, casado, residente em Macau, ….
Pediram a procedência da acção e, em consequência:
a) Fossem os AA. declarados os legítimos proprietários da fracção autónoma acima identificada;
b) Fosse o R. condenado a:
- Reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício;
- Restituir aos AA. a mencionada fracção autónoma, e
- A pagar aos AA a quantia de MOP$30.000,00, correspondente a honorários de advogado acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação do R. até efectivo e integral pagamento.
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Na contestação o réu deduziu impugnação e reconvenção.
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Foi, oportunamente, proferida sentença que declarou os AA titulares do domínio útil da fracção autónoma, que absolveu o réu do pedido de condenação como litigante de má fé, que absolveu o réu do pedido indemnizatório e que absolveu os AA de todos os pedidos reconvencionais formulados pelo R.
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É contra esta decisão que ora se insurge o R no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1) Não se conformando com a sentença proferida no presente processo em 12 de Outubro de 2016, ora sentença recorrida, vem o recorrente interpor o presente recurso. O conteúdo da sentença recorrida é o seguinte:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos decide-se:
- Condenar o Réu a reconhecer os Autores como titulares do domínio útil da fracção autónoma “H1” do primeiro andar direito, sita em Macau, para habitação, com entrada pelo n.º 35 da Rua..., inscrito na matriz predial da freguesia de Sé, Conselho de Macau, descrito na C.R.P. n.º ... e a entrega-la aos Autores livre e devoluta de pessoas e bens no prazo de 20 dias.
- Absolve-se o Réu do pedido de condenação como litigante de má-fe.
- Absolve-se o Réu do pedido indemnizatório formulado pelos Autores e absolvem-se os Autores de todos os pedidos reconvencionais.
Custas a cargo dos Autores e Réu quanto aos pedidos dos Autores na proporção 1/10 para aquele e 9/10 para este e a totalmente a cargo do Réu quanto ao pedido reconvencional.”
- Cfr. Páginas 14 e 15 da sentença do presente processo.
2) Porém, o recorrente entende que a sentença recorrida enferma dos vícios de “não preencher as situações aplicáveis da lei”, “erro no julgamento da matéria de facto” e “omissão de pronúncia” ou “ falta de fundamentação detalhada”;
3) Tais vícios conduzem a que a sentença recorrida deva ser revogada nas partes a que dizem respeito;
4) Cujos fundamentos de facto são os seguintes:
5) O recorrente entende que a “acção de restituição da posse de imóvel” tem de preencher dois pressupostos: o primeiro é confirmar que o proprietário do imóvel tem legitimidade para invocar o seu direito perante todos - isto é, o “direito erga omines” sobre o imóvel na doutrina do direito real; o segundo é comprovar que o possuidor ocupa ilegitimamente o imóvel do caso concreto.
6) No caso vertente, apesar de já ter sido confirmado que os recorridos possuem o direito de propriedade sobre a fracção em causa, não se provou que o recorrente utilizou ilegalmente a fracção em causa.
7) Pelo que, nesta parte, a sentença recorrida incorreu em insuficiência da matéria de facto provada para a sentença recorrida, constituindo grave vício.
8) Assim sendo, a sentença recorrida deve ser revogada nesta parte;
9) A fracção em causa sita na …, 1.º andar H, Macau (originalmente inscrita em “2.º andar D”) já tem mais de 40 anos desde à sua conclusão até agora - A inscrição do registo de aquisição em regime de propriedade horizontal constante da certidão de registo predial de Macau anexa à petição inicial foi no dia 5 de Novembro de 1966;
10) O edifício onde se situa a fracção em causa é um edifício tradicional com 4 andares, sem elevador;
11) Desde à sua chegada a Macau no ano de 1982, o recorrente começou a residir na fracção em causa em conjunto com a madrasta do pai dos Autores, D, e até agora, já há mais de 30 anos;
12) Antes da instauração do presente processo, mesmo antes da instauração do [Processo de Inventário] n.º CV2-14-0072-CIV por parte dos Autores, a “obra de reparação e conservação” realizada pelo recorrente na fracção em causa é, evidentemente, “obra necessária” e que pode valorizar a fracção em causa;
13) Conforme a alínea p) dos factos assentes, provou-se que o recorrente realizou, pelo menos por uma vez, a obra de reparação na fracção em causa em 2011, cuja quantia é de MOP$496.750,00;
14) Conforme a relação dos itens da obra de reparação constante do Doc. 10 da Contestação, as paredes mofadas, a infiltração de água, as janelas velhas e danificadas e seus aros ferrugentos e a substituição dos cabos eléctricos e canalizações da fracção em causa são os motivos que levaram à realização da maioria dos itens da obra de reparação;
15) Razão pela qual o recorrente entende que esses itens da obra foram “necessários” e a sua verba não foi elevada.
16) Pelo que, o recorrente entende que nesta parte, ao provar os factos, nomeadamente ao qualificar as despesas da aludida obra realizada na fracção em causa no montante de MOP$496.750,00 como “benfeitorias voluptuárias”, a sentença recorrida incorreu em “erro na comprovação dos factos”.
17) Ao qualificar a “obra de reparação da fracção em causa” como “benfeitorias voluptuárias”, a sentença recorrida não fez comentário mais objectivo sobre tal qualificação, nomeadamente não descreveu ou analisou detalhadamente os “itens da obra” constantes do Doc. 10 da Contestação, pelo que, é difícil suportar os seus fundamentos quanto ao entendimento de “benfeitorias voluptuárias”.
18) Pelo que, o recorrente entende que a sentença recorrida nesta parte enferma de vício - “erro na comprovação dos factos”.
19) E em consequência deve o recurso, nesta parte, ser julgado procedente e deve a sentença recorrida ser revogada nesta parte, e o tribunal superior tem competência para alterar nos termos da lei a decisão já proferida, no sentido de condenar os Autores, ora recorridos, a pagar ao recorrente uma quantia de MOP$496.750,00, a título de compensação pelas despesas pagas na reparação necessária e na valorização da fracção em causa.
20) A sentença recorrida também não tomou a decisão sobre o ponto 63.º na parte do pedido reconvencional da Contestação, isto é, o recorrente pagou as contribuições prediais da fracção em causa desde 1982 a 2001, num total de 34 anos, no montante de MOP$8.670,00.
21) Ou, ao tomar genericamente a decisão de indeferimento na parte final da sentença, a sentença recorrida não mencionou detalhadamente os fundamentos para sustentar o indeferimento dos pedidos nesta parte - Cfr. Páginas 10 a 14 da sentença recorrida.
22) O recorrente não sabe qual é a razão, mas, na réplica, os Autores nunca invocaram impugnação contra essa parte.
23) Nestes termos, deve o recurso, nesta parte, ser julgado procedente, e o tribunal superior tem competência para proferir directamente a decisão nos termos da lei, no sentido de condenar os recorridos a restituir ao recorrente uma quantia de MOP$8.670,00, a título de compensação pelas contribuições prediais já pagas pelo recorrente ao longo dos anos.
24) Senão, a sentença recorrida incorre em “omissão de pronúncia” ou “falta de fundamentação detalhada”.
Pelos acima exposto, conforme os factos provados, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando a sentença recorrida nas partes a que dizem respeito.”
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Os AA responderam ao recurso, concluindo as suas alegações pelo seguinte modo:
“a) O R. ocupa ilicitamente a fracção autónoma em causa desde a morte da sua presumível tia D, ocorrida em 25 de Dezembro de 1998, ou pelo menos desde a interpelação dos AA. ao R. para desocupar a fracção, pelo que o Tribunal a quo decidiu bem ao condenar o R. a reconhecer os AA. como titulares do domínio útil da fracção e a entregá-la aos AA. livre e devoluta de pessoas e bens no prazo de 20 dias;
b) O R. não fez prova de as benfeitorias que realizou na fracção, no valor de MOP$496.750,00, terem sido necessárias ou úteis, pelo que bem decidiu o Tribunal a quo ao considerar tais benfeitorias como voluptuárias e em negar ao R. o direito a ser indemnizado pelo seu valor;
c) O R. não fez prova de ter pago as contribuições prediais, no valor de MOP$8.670,00, pelo que o Tribunal a quo fez bem ao decidir não lhe reconhecer o direito a ser indemnizado por esse valor.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pelo R. ser totalmente indeferido, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA!”.
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Cumpre decidir.
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II – Os factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
“a) Os AA. são titulares do domínio útil1 da fracção autónoma “H1” do primeiro andar direito, sita em Macau, para habitação, com entrada pelo nº 35 da Rua..., inscrito na matriz predial da freguesia de Sé, Conselho de Macau, descrito na C.R.P. nº ..., a fls. …, do livro … e aí registada a favor de ambos sob o nº …, conforme a certidão do registo predial junta aos autos a fls. 7 a 13, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) Os direitos dos AA. sobre a fracção autónoma referida em a) são provenientes de os mesmos terem sucedido hereditariamente aos seus pais. – proc. nº CV2-14-0072-CIV que corre os seus termos no T.J.B.-;
c) D era a tia do Réus;
d) D faleceu em 25 de Dezembro de 1998 em Zhong Shan;
e) Os pais dos AA. deixaram D a qual era conhecido como tia do Réu viver na fracção autónoma referida em a);
f) Este empréstimo de utilização apenas foi verbal;
g) A fracção autónoma referida está a ser ocupada pelo R.;
h) Nunca os AA. nem seus pais assinaram qualquer contrato de arrendamento com o R. que lhe permitisse permanecer na habitação em causa;
i) Os Autores estão impedidos de utilizar a fracção autónoma referida em a) dos factos assentes em virtude da ocupação pelo Réu;
j) O R. foi interpelado para sair da fracção acima referida, mas continua a recusar fazê-lo;
k) D era conhecida como madrasta de E pai dos Autores;
l) Depois de o Réu C ter vindo a Macau do Interior da China em 1982, ele começou a cuidar de D e, para ser conveniente, morava junto com ela na fracção autónoma em causa;
m) O Réu cuidou de D até ao falecimento desta;
n) O Réu tem morado na fracção autónoma em causa a partir de 1982 o que era do conhecimento de E pai dos Autores;
o) Pelo menos uma vez o Réu fez obras na fracção autónoma referida em a);
p) As despesas de obras de acabamentos realizadas pela última vez, isto é, em 2011, totalizaram MOP496.750,00;
q) O pai dos Autores ao adquirir a fracção autónoma referida em a) estava casado”.
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III – O Direito
1 – O recorrente entende que, independentemente do título dos AA sobre a fracção, a acção de reivindicação não poderia proceder em virtude de ele estar a ocupá-la lícita e legitimamente, face à autorização do pai dos demandantes quando ainda vivo.
Contudo, face à matéria provada, não tem razão.
Na verdade, apenas se sabe que o R ocupa a fracção por empréstimo verbal feito pelos pais do AA e que nunca foi feito qualquer contrato de arrendamento.
Provado ainda está que os AA estão impedidos de utilizar a fracção, porque o R., não obstante interpelado a sair dela, se recusa a fazê-lo.
Significa isto, portanto, que o R é mero detentor do imóvel (art. 1177º, do CC).
Por outro lado, não estando demonstrado o prazo para a restituição da coisa mutuada, o comodatário fica obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (art. 1065º, nº2, do CC).
Portanto, a partir da interpelação ficava o R constituído no dever de fazer entrega da coisa livre de pessoas e vens aos seus legítimos titulares.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
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2 – A seguir, o recorrente R acha que a sentença lhe deveria ter reconhecido o direito ao pagamento pelos AA do pedido reconvencional respeitante ao valor das obras por si efectuadas de reparação e conservação, no valor de MOP$ 496.750,00. Obras que tem por necessárias e não voluptuárias, ao contrário do que o afirmou a sentença.
Como se sabe, relativamente às benfeitorias, o comodatário é equiparado ao possuidor de má fé (art. 1066º, nº1, do CC), sendo que, no entanto, mesmo o possuidor de má fé tem direito a ser indemnizado pelas benfeitorias “necessárias” que haja feito (art. 1198º, nº1, do CC), mas já não em relação às benfeitorias voluptuárias (art. 1200º, nº2, do CC).
Ora, o que está provado a este respeito foi que ele se limitou a fazer as obras, sem estar justificada a causa delas. Efectivamente, no art. 16º da Base Instrutória perguntava-se se a fracção apresentava rupturas, razão pela qual o réu realizou obras por três vezes. A resposta, porém, foi apenas que o R fez obras pelo menos uma vez e que as despesas respectivas referentes aos acabamentos na fracção se cifraram naquele valor (também resposta ao art. 17º da BI).
E não há motivos para alterar a respostas dadas, sendo certo até que o recorrente nem sequer fez uso da prerrogativa prevista no art. 599º do CPC.
Consequentemente, foram obras não necessárias, mas sim voluptuárias, pelo que o R não podia ser indemnizado por elas, tal como foi decidido na sentença em análise.
Improcede, pois, também o recurso nesta parte.
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3 – Por fim, o recorrente acha que a sentença deveria ter condenado os AA a pagar o valor das contribuições prediais da fracção no valor de MOP$8.670,00 que ele mesmo, fraccionadamente, pagou ao longo de 34 anos. Chega mesmo a alvitrar que a sentença nesta parte incorreu em “omissão de pronúncia”, em virtude de não ter apresentado fundamentação detalhada sobre esta matéria.
Não tem razão, uma vez mais.
É que à pergunta contida no art. 18º da BI – sobre se “a partir de 1982 até hoje, a contribuição predial de tal fracção autónoma tem sido paga pelo réu, em total de 34 anos e por cada ano ele pagou MOP$255,00 (não se alterou o valor desde 1982 até 2001) e ele pagou totalmente um montante de MOP$8.670,00” – foi dada resposta de “não provado”. Com esta resposta negativa ficou pelo caminho qualquer hipótese de ser proferida uma sentença condenatória a este título.
Após a sentença afirmar que restaria apreciar o pedido subsidiário de condenação dos AA a pagarem ao réu uma indemnização, assente em “várias causas”, considerou imediatamente que “de tudo quanto se alegava apenas se provou que o Réu fez obras no que gastou o valor referido em p)”. Ou seja, limitou-se a discorrer sobre a possibilidade de condenar os AA no pagamento da quantia referente à importância das despesas com as obras que efectuou (MOP$ 496.750,00). Sendo assim, não se verifica qualquer nulidade por omissão de pronúncia, tanto mais quanto é certo que a decisão declarou expressamente que os AA eram absolvidos de “todos os pedidos reconvencionais”.
Obviamente, não estando provada a matéria alusiva à contribuição predial não seria preciso fazer qualquer outra referência adicional para negar a procedência do pedido nessa parte.
Em suma, também nesta parte a sentença não merece qualquer censura.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 01 Novembro 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Correcção à redacção inicial dos factos dados por assentes onde contava “donos e proprietários” uma vez que o que resulta da certidão do registo predial é que o prédio se encontra no regime de aforamento sendo os autores apenas titulares do domínio útil.
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