Processo nº 657/2017
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Dezembro/2017
Assuntos: Marca
Concorrência desleal
SUMÁRIO
A concorrência desleal é toda aquela actuação contrária às normas e usos honestos da actividade económica, designadamente aquela que seja idónea a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos e o que configure aproveitamento da reputação empresarial de outrem.
A consequência da concorrência desleal traduz-se num desvio de clientela, pelo que, para se poder afirmar que o concorrente pretende fazer concorrência desleal ou que esta é objectivamente possível, é necessário provar a existência de conexão entre o comportamento do concorrente e o desvio de clientela.
Uma vez que os factos provados não permitem inferir uma situação objectiva de concorrência desleal, muito menos conseguem revelar qualquer intencionalidade por parte da recorrida particular, não se pode concluir que haja concorrência desleal.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 657/2017
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Dezembro/2017
Recorrente:
- A limited
Recorrida:
- B, Ltd
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A Limited, sociedade comercial com sede em British Virgin Islands, com sinais nos autos, interpôs junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM recurso do despacho do Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual dos Serviços de Economia, que concedeu o registo da marca “one+”, com o número N/XXX, a favor de B, Ltd, sociedade comercial com sede na R.P.C.
Por sentença do Tribunal Judicial de Base, foi julgado improcedente o recurso.
Inconformada, recorreu A Limited para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“a) A lei que regula a Propriedade Industrial visa, prima facie, evitar a susceptibilidade de confusão dos sinais quanto à fonte empresarial.
b) O Tribunal a quo determinou que a Recorrente não demonstrou que a marca
c) “” é notória em Macau (e que tampouco demonstrou a titularidade da marca) tendo, para tanto, partido de pressupostos de facto errados.
d) Como facilmente se pode observar através dos vários documentos juntos pela Recorrente com a Reclamação e para os quais se remeteu em sede de recurso, foi junta prova que evidencia que a marca é comercializada em Macau - tal como resulta do Doc. 7 da Reclamação, composto por facturas das vendas dos produtos desta marca emitidas pela subsidiária AC (Macao Commercial Offshore) Limited que opera em Macau.
e) O volume de vendas dos produtos “” da Recorrente em Macau é demonstrativo de que uma faixa significativa do público de Macau conhece e procura os produtos da Recorrente, pelo que, pelo menos nessa fatia de mercado a marca é notória.
f) Esses documentos demonstram o conhecimento da marca pelo consumidor de Macau que procura esse tipo de produtos.
g) A Recorrente provou igualmente que é titular do registo da marca “” em várias jurisdições em todo o mundo, nomeadamente na Austrália, Canadá e China, Cfr. Doc. 5 da Reclamação, sendo que junta agora cópia de alguns dos certificados de registo, como Doc. 1, e protesta juntar os respectivos originais.
h) A Recorrente ofereceu ainda exemplos de imagens da marca “” aposta nos produtos, juntas como Doc. 2 da Reclamação, assim como fez referência ao seu website oficial www.ttigroup.com, onde pode ser encontrada informação detalhada acerca da marca, assim provando a pré-existência da sua marca em relação à registanda.
i) Face à prova apresentada pela Recorrente, certamente reveladora da consolidação da marca “” a nível internacional e em Macau, a posição do Tribunal a quo é censurável, pois é evidente que a marca goza de grande reputação no mercado global, com destaque para a Ásia, incluindo Macau.
j) O Tribunal a quo entendeu ainda que não se verifica possibilidade de existência de concorrência desleal, sem adiantar qualquer tipo de explicação para o não reconhecimento da probabilidade de existência de concorrência desleal no caso em apreço nos autos.
k) Ficou provado, através dos documentos juntos aos autos, que a marca “” está registada noutras jurisdições, sendo publicitada, nomeadamente, na internet e, mais relevante, é usada e comercializada em Macau.
l) Tais factos só podem levar à conclusão de que a utilização e registo, pelo requerente da marca, de marca idêntica ou manifestamente semelhante à da Recorrente é objectivamente causadora de actos de concorrência desleal em Macau, na medida em que não se pode ignorar a pré-existência da marca da Recorrente para produtos manifestamente afins, o que possibilita risco de confusão no consumidor.
m) A marca da Recorrente existe há vários anos e, sendo uma marca pertencente ao ramo da electrónica e conhecida dos consumidores interessados nesse tipo de produtos, é óbvio que ao serem confrontados com a marca registanda em Macau irão associar uma marca à outra.
n) Ao que acresce a gravíssima consequência da diluição da marca da Recorrente resultante do uso e registo da marca registanda, a qual provocará danos irressarcíveis na imagem da marca.
o) É premente que o Tribunal ad quem reconheça que deve a séria probabilidade de existência de concorrência desleal (intencional ou não) actuar como mecanismo de bloqueio do registo de marcas idênticas ou manifestamente semelhantes a outras que, embora não tendo sido registadas em Macau, seja facto notório a sua pré-existência no mercado global - assim como se deve atender ao facto de as entidades relevantes do sector em Macau conhecerem a marca e de a mesma ser aí comercializada (como se provou a partir da junção das facturas as quais respeito a produtos da marca “” da Recorrente).
p) Atente-se na jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto no Proc. Número 3607/10.4TJVNF.P2 de 11/07/2013 (citado nas alegações supra).
q) Mais, deve o Tribunal ad quem ter em consideração que a marca “” foi entretanto registada em Macau com o número de registo N/100XXX, na classe 7, a favor da Recorrente, em 27 de Novembro de 2015, Cfr. Doc. 2, que ora se junta (protesta-se juntar certificado de registo dessa marca).
r) Esse facto superveniente deve ser aqui relevado na medida em que entretanto foi concedido registo à marca da Recorrente em Macau para produtos incluídos na classe 7, os quais também pertencem ao ramo da electrónica, são manifestamente afins aos produtos para os quais a marca registanda solicita registo e, por isso, susceptíveis de serem confundidos pelo consumidor relevante para esse tipo de produtos.
s) Da análise do no art. 219º Nº 1 do RJPI, deve entender que, in casu, a forte semelhança entre os sinais em confronto cria no espírito do consumidor um risco de confusão que compreende o risco de associação entre o sinal e a marca, fazendo com que o consumidor a associe à marca da Recorrente, sendo levado a pensar que existe vínculo comercial entre as duas entidades (o que não é verdade).
t) A tese aqui defendida foi adoptada pela Superintendência de Indústria e Comércio (a entidade Colombiana decisora em assuntos de Propriedade Intelectual) (cfr. Doc. 3), mais tarde confirmada em sede de Recurso (cfr. Doc. 4), e pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial do Chile (cfr. Doc. 5), os quais, num caso em que a Recorrente também reclamou contra o pedido de registo de marca igual à marca registanda da Parte Contrária, decidiram que a marca requerida pela Parte Contrária reproduzia na totalidade a expressão “”, pelo que se considera que estavam em causa sinais idênticos, entendendo-se que a comparação entre as marcas não requer o recurso a métodos e técnicas sofisticadas, sendo suficiente a comparação simples.
u) Importa frisar que a confusão entre as entidades que oferecem os respectivos produtos ou serviços, surge reforçada pela circunstância de que hoje em dia ser cada vez mais frequente as empresas possuírem objectos sociais polivalentes, não sendo obrigação do consumidor conhecer, de per si, a origem dos produtos.
v) No caso da decisão chilena acima referida, caso semelhante ao presente, no que respeita ao facto de as marcas distinguirem produtos em classes diferentes (classe 9 a marca da Parte Contrária, e classes 7, 9 e 11 as marcas da Recorrente, tal como no caso em questão), a decisão Colombiana entende que, ainda assim os produtos distinguidos pelas marcas poderão ser considerados como afins, pois estas classes identificam os chamados electrodomésticos e dispositivos electrónicos que, em alguns casos, são complementares entre si, pois são manufacturados pelos mesmos agentes e circulam nos mesmos canais de comercialização. Pelo que, em caso de coexistência, o consumidor não estaria em condições de diferenciar as marcas, e iria associar as mesmas a uma origem empresarial específica, havendo, por conseguinte, um risco de confusão e de associação no mercado por haver produtos que são complementares, se comercializam nos mesmos canais e cumprem finalidades diferentes (Doc. 3, pág. 8).
w) Para além de se considerar que os produtos em confronto são próximos, ou que entre eles possa haver alguma conexão, ainda que mediata ou indirecta, o certo é que não temos dúvidas em afirmar que a utilização e registo da marca registanda, por esta ser composta de sinais idênticos ou muito semelhantes, podem induzir em erro sobre a titularidade desses sinais distintivos, verificando-se uma confusão no espírito do consumidor que abrange o risco inegável de associação entre ambas as partes.
x) Não subsistem dúvidas de que o registo da marca registanda é idóneo a causar confusão com os produtos da Recorrente, pelo que se trata de um acto de manifesta concorrência desleal.
y) Deve relevar nos autos o facto de a Parte Contrária ter apresentado uma série de pedidos de registo para variantes da marca registanda, tendo já obtido registo na classe 9 para e “”, respectivamente números N/80XXX e N/80XXX para a mesma especificação de produtos, tendo também apresentado pedido de registo para “”, ao qual foi atribuído o número N/92XXX (Cfr. Doc. 6).
z) A apresentação a registo de tais variantes da marca composta por “”, revela que a Parte Contrária conhece a marca da Recorrente - daí tentar o registo de várias versões, todas elas semelhantes à marca da Recorrente.
aa) No entender da Recorrente, tendo a Parte Contrária entretanto obtido registo para “” e “” na classe 9, e considerando que a marca registanda é a que guarda semelhanças mais profundas com a marca da Recorrente, deve esta ser-lhe recusada, por de forma intencional, conhecendo a marca prévia da Recorrente, pretendendo copiá-la.
bb) A adopção da marca pela Parte Contrária constitui um aproveitamento ilegítimo da fama e reputação da Recorrente, podendo concluir-se que deseja aproveitar-se do esforço comercial, usando sinais distintivos de comércio quase idênticos.
cc) A Parte Contrária age de má-fé.
dd) Do exposto se conclui que a marca constante do pedido de registo da Parte Contrária é uma imitação da marca da Recorrente, susceptível de constituir um acto de concorrência desleal, devendo pois, proceder o presente Recurso e ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual, como se explicou ex abundanti, fundou-se em pressupostos de facto errados e cuja motivação é manifestamente insuficiente.
ee) Devendo a marca registanda ser recusada por se verificarem os fundamentos de recusa previstos nos art. 214º N.º 2 al, b) ex vi art. 215º N.º 1 e art. 9 º N º 1 al. c), todos do RJPI.
III. Do Pedido
Nestes termos e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes, requer-se, muito respeitosamente, seja considerado procedente o presente Recurso e, em consequência a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que recuse o registo da marca impugnada, como é de JUSTIÇA!”
*
A entidade recorrida ofereceu o merecimento dos autos.
A recorrida particular respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“1.ª A Recorrente, para defesa da sua tese (no sentido de que a marca de que é titular é notória em Macau) e depois de ter perdido a oportunidade de ter apresentado 6 (seis) dos 7 (sete) documentos referidos nas suas duas anteriores peças processuais, vem, em sede de recurso jurisdicional para o Venerando Tribunal de Segunda Instância, juntar, com as suas Alegações de Recurso, 6 (seis) documentos, alegando que “não estavam disponíveis aquando da apresentação do recurso na Primeira Instância”.
2.ª Na fundamentação de facto da douta sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo fez consignar que a Recorrente não juntou os documentos 2 a 7 com a Reclamação, tal como havia alegado na petição inicial do recurso judicial de marca.
3.ª No modesto entendimento da Alegante, não pode a Recorrente juntar tais documentos, nesta fase do processo, não só porque nenhum fundamento há para serem juntos com as Alegações de Recurso pela Recorrente mas porque é uma forma de a Recorrente rectificar o lapso cometido com a falta de apresentação de tais documentos oportunamente.
4.ª Pese o facto de a DSE e o Tribunal a quo terem feito consignar, nas respectivas decisões, que a Recorrente não juntou os documentos que mencionou como sendo os numerados de 2 a 7, na sua Alegação de recurso jurisdicional, remete para o documento 7 junto com a Reclamação para provar que a sua marca é comercializada em Macau; para o documento 5 para provar que a sua marca se encontra registada em várias jurisdições em todo o mundo; para o documento 2 para provar as imagens que são apostas nos seus produtos, o que demonstra a contradição em que se envolveu ao elaborar a sua Alegação de recurso jurisdicional interposto para essa Superior Instância.
5.ª Pretende a Recorrente que, através do presente recurso jurisdicional, seja revogada a douta Sentença de 24 de Outubro de 2016, que manteve o despacho da DSE, que concedeu, à aqui Recorrida, a marca mista, para assinalar produtos integrados na classe 9.ª, que consiste em e que tomou o n.º N/80XXX.
6.ª A Recorrente não entra, apenas, em contradição no que se refere aos documentos de prova que diz ter juntado nas fases anteriores; também, entra em contradição quando se refere aos fundamentos que pretende que o Venerando Tribunal ad quem dê por verificados pois, pese o facto de ter, sempre, alegado que a sua marca é notória, a final, pede que seja dado por verificado o fundamento de recusa que tem por base a protecção de marcas registadas (art.º 214.º, n.º 2, alínea b)), invocando o facto de lhe ter sido concedido o registo em Macau da sua marca para produtos da classe 7.ª, que tomou o n.º N/100XXX.
7.ª Acontece que a sua marca não tinha qualquer protecção à data em que foi apresentado o pedido de registo da marca aqui em apreciação , com o n.º N/80XXX, para a classe 9.ª.
8.ª Ao contrário do que afirma a Recorrente, na sua Alegação do recurso jurisdicional, no sentido de que o Tribunal a quo ao decidir apresentou uma motivação manifestamente insuficiente, dúvidas não podem existir no sentido de que o Tribunal recorrido fundamentou, de forma muito clara e, portanto, eficaz, a sua decisão, designadamente, no que respeita as razões por que considerou que, no caso em apreço, não se verificam, quer o fundamento de recusa que tem por base a protecção de marca notória e a que alude o art.º 214.º, n.º 1, alínea b), quer o fundamento de recusa a que alude o art.º 9.º, n.º 1, alínea c), do RJPI, que visa obstar a prática de actos de concorrência desleal.
9.ª A norma contida no art.º 214.º, n.º 1, alínea b), do RJPI é uma transposição, para a legislação da RAEM, de uma norma prevista na Convenção de Paris que concede às marcas notórias uma especial protecção, acontecendo que, quer na legislação da RAEM, quer no mencionado tratado internacional, não existe uma definição para “marca notória”, sendo que se tem que recorrer à Doutrina para saber o que é uma marca notória ou o que significa a expressão “marca notoriamente conhecida”.
10.ª É unânime o entendimento de que uma marca diz-se “notoriamente conhecida” quando concentra um alto poder de conhecimento pelo consumidor, mas conhecimento restrito ao seu ramo de actividade e difere, da marca de prestígio ou, também, dita de “alto renome”, que é aquela que detém um alto grau de conhecimento pela população em geral, independentemente da actividade comercial ou industrial em que actua e, a título exemplificativo, podem indicar-se as teses defendidas pelo Professor Pinto Coelho; por Carlos Olavo e por Luís Couto Gonçalves.
11.a Não logrou a Recorrente provar, em sede administrativa, e no âmbito do recurso judicial de marca que a marca, para assinalar produtos na área da energia, designadamente, ferramentas eléctricas e acessórios para ferramentas eléctricas é uma marca notória; não juntou a Recorrente quaisquer novos documentos (uma vez que não juntara os mencionados doc.s 2 a 7 com a Reclamação) para que, em sede judicial, pudessem ser apreciados e, quiçá, demonstrar que a sua marca é, de facto, uma marca notória, sem se perder de vista que essa notoriedade deve ser aferida pelos consumidores de Macau pois, assim, se encontra formulada a norma invocada: “ (…) de outra notoriamente conhecida em Macau (...) ”.
12.a Não tendo provado que a marca é uma marca notória internacionalmente e muito menos em Macau, a Recorrente não pode reivindicar uma protecção especial para tal marca, apenas, porque se encontra registada noutras jurisdições; se pretendia protecção para a marca de que se diz titular, teria que a registar em Macau.
13.a Acresce que, ainda que tivesse provado a notoriedade da sua marca em Macau - o que se diz por mera cautela de patrocínio sem conceder -, não poderia dar-se por provado tal fundamento de recusa, porquanto, sempre, falharia o requisito da “afinidade de produtos”.
14.a Entre os produtos fabricados e comercializados pela ora Alegante e os produtos fabricados e vendidos pela Recorrente, não existe afinidade, nem complementaridade, uma vez que os produtos, alegadamente, vendidos pela Recorrente e os produtos vendidos pela Recorrida não se situam no mesmo mercado relevante, não existindo qualquer concorrência entre Recorrente e Recorrida, nem potenciando uma procura conjunta, ou mesmo alternativa.
15.a Os consumidores a quem a Recorrente se dirige são as pessoas e empresas interessadas em adquirir produtos do segmento da energia designadamente ferramentas eléctricas e seus acessórios; já o consumidor dos produtos da Recorrida são os interessados na aquisição de produtos informáticos e da área da comunicação, nomeadamente, “computadores, televisões, telefones e seus acessórios”.
16.ª No caso, também, não se verifica o fundamento que visa obstar a prática de actos de concorrência desleal.
17.ª Nos termos do artigo 1.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, a atribuição de direitos de propriedade industrial “ (…) visa assegurar a protecção da criatividade e do desenvolvimento tecnológico, da lealdade da concorrência e dos interesses dos consumidores”.
18.ª A marca é um dos direitos atribuídos para garantir a lealdade da concorrência; só pode invocar o artigo 219.º, n.º 1, do RJPI, quem já for titular de um registo de marca em Macau, pelo que não é perceptível as razões pelas quais a Recorrente se refugia em tal norma para defender que a Recorrida não tem o direito a ver concedida a marca aqui em apreciação.
19.ª Se a marca da Recorrente (i) não foi considerada notória em Macau e não se encontrava registada em Macau à data em que a Recorrida apresentou o pedido de registo da marca , n.º N/808XXX, para a classe 9.ª, não pode a Recorrente invocar que a concessão de tal marca é susceptível de gerar actos de concorrência desleal.
20.ª Como bem fundamentou o douto Tribunal a quo, para se aquilatar a verificação, quer do fundamento de recusa para protecção de marcas notórias, quer do fundamento que visa obviar a prática de actos de concorrência desleal, deve ser invocado o princípio da territorialidade para se concluir que não é de valorar eventual notoriedade da marca (ou do seu prestígio) e de actividades em diversas jurisdições exterior à RAEM, se tais características da marca da Recorrente não se repercutirem no mercado de Macau.
21.ª A concorrência implica uma competição entre os diversos agentes económicos, devendo ser regulamentada por forma a que cada agente económico interfira de modo leal nas escolhas dos consumidores, que deverão ter à sua disposição um leque variado de ofertas para, de forma livre, fazerem as suas opções.
22.ª Afirma a Recorrente que o pedido de registo da marca foi apresentado de má-fé; quando, em sede da extinção dos direitos de propriedade industrial, o RJPI refere que “o título obtido de má fé não prescreve” é porque, na verdade, existem situações em que um pedido de registo de marca pode ter sido apresentado de má-fé, cero sendo que tem que se tomar em consideração qual a acepção deste conceito.
23.ª É unânime o entendimento de que, para demonstrar a existência da má- fé do requerente do pedido de registo de uma marca, importa tomar em consideração todos os factores relevantes próprios do caso concreto e existentes no momento da apresentação do pedido de registo, não podendo a circunstância de o requerente de um pedido de registo saber ou dever saber que um terceiro utiliza uma marca no estrangeiro no momento da apresentação do seu pedido, que pode ser confundida com a marca cujo registo é pedido, por si só, ser suficiente para demonstrar a existência da má-fé do autor do referido pedido.
24.a No caso, a Recorrente não alegou nem provou factos concretos que possam ser enquadrados no conceito de má-fé, não podendo introduzir-se um regime de protecção específica de marcas estrangeiras, distinto do estabelecido no RJPI - como a protecção de marcas notórias, marcas de prestígio (art.º 214.º, n.º 1, alíneas b), c)), marcas que gozam do direito de prioridade nacional (art.ºs 15.º e 202.º) ou internacional (art.º 16.º) -, baseado no facto de um requerente do pedido de registo de uma marca conhecer ou dever conhecer uma marca estrangeira.”
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença impugnada deu por assente a seguinte factualidade:
a) - Em 20/11/2013 a sociedade comercial denominada “B, Ltd, com sede na China continental, requereu o registo de marca relativamente ao sinal “” para assinalar produtos da classe 9ª.
b) - Os produtos para que foi requerido o registo da marca consistem em: “Computador; periféricos de computador, software de computador (gravado); computador portátil, software de jogos de computador, dispositivos de gravação de tempo, equipamentos de fax; cartazes de néon; telemóveis; dispositivo de comunicações internas, equipamentos de navegação por satélite, armários de-alto-falante; TV; câmaras de media player portáteis, máquina de tampões de ouvido; medição aparelhos e instrumentos, câmara (fotografia); linhas telefónicas; telescópio de materiais (fios, cabos); circuitos integrados, transformador; tomadas, soquetes e outros contactos (conexões eléctricas); conectores eléctricos, monitores de vídeo; dispositivo de prevenção de acidentes pessoais; alarme, óculos, bateria, carregador de bateria; caricaturas; telemóveis; escudo protector telefone celular, aparelhos de telefone celular; telefones móveis e telefone equipamentos e acessórios para pacotes especiais e unidades especiais; titular telefone inteligente; linhas de dados; poder de carregamento móvel, telefones e computadores tablet com auriculares de ouvido sem tio; pode se conectar à Internet e enviar e receber chamadas telefónicas, e-mails e informações electrónicas pulseiras de relógios, braceletes forma de dispositivos electrónicos digitais portáteis, receptor sem fio pode ser dados ou informações, armazenamento sem fio, transmissão sem fio e pode controlar e gerenciar informações pessoais relógios, pulseiras, braceletes forma de dispositivos portáteis electrónicos vestíveis”.
c) - O pedido recebeu o número N/080XXX e, por despacho de 10/12/2014 proferido nos autos de Processo Administrativo apensos, foi concedido o registo.
d) - Tal despacho foi publicado no Boletim Oficial da RAEM de 07/01/2015.
e) - Em 09/02/2015 foi apresentado neste tribunal o presente recurso.
Face aos elementos documentais disponíveis, são acrescentados os seguintes factos:
- A recorrente é titular da marca , entre outros países, na Austrália, Canadá e República Popular da China (doc. fls 346 e sgs.)
- A recorrente requereu em 17/03/2014 na Direcção dos Serviços de Economia o registo da marca para produtos da classe 9.
- À recorrente foi concedido o registo da marca , com o nº N/100XXX, para produtos da classe 7 em 27/11/2015 (doc. fls. 344 e 381-384 dos autos).
- A recorrida apresentou vários pedidos de registo para variantes da marca registanda, tendo já obtido registo na classe 9 para “” e “”, respectivamente números N/80XXX e N/80XXX para a mesma especificação de produtos, tendo também apresentado pedido de registo para “”, ao qual foi atribuído o número N/92XXX.
- Damos por integralmente reproduzidos os documentos juntos aos autos e aos quais se não tenha referência expressa anteriormente.
*
Submetido o projecto do acórdão à conferência, ficou vencido o inicial relator, por não merecer o voto favorável dos juízes adjuntos, pelo que passa o acórdão definitivo a ser lavrado pelo primeiro juiz-adjunto, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 631º do CPC.
Veja-se a fundamentação jurídica constante do projecto do acórdão elaborado pelo inicial relator:
“III – O Direito
1 – Da junção de documentos com a alegação do recurso
Insurge-se a recorrida particular contra a junção dos referidos documentos apenas nesta fase do processo.
Abreviando caminho, somos desde já a dizer que a sua junção é possível neste momento, não por se tratar do caso previsto no art. 451º do CPC, mas sim por a sua junção se poder mostrar útil e necessária, na tese da recorrente, em virtude do julgamento proferido na primeira instância (Cfr. art. 616º, nº1, 2ª parte, do CPC).
Ora bem. Nós compreendemos a atitude processual da recorrente com a junção dos documentos neste momento. Em primeiro lugar, porque um deles apenas foi obtido na sequência do registo concedido em 27/11/2015. Obviamente, não podia ter sido junto antes.
Quanto aos restantes, eles fazem parte de um processo administrativo que deveria ter sido junto aos autos de forma integral (com todos os documentos anexados à reclamação da ora recorrente) com a resposta da entidade recorrida, o que só não aconteceu por ela se não ter dignado fazer oposição ao recurso, nem ter feito essa junção no momento em que no recurso jurisdicional se limitou a oferecer o merecimento dos autos. Fosse tal junção feita em devido tempo, logo o tribunal teria tido oportunidade de constatar tais elementos por observação directa.
Por outro lado, tendo este processo judicial uma matriz de plena jurisdição, e uma vez que a Administração não juntou em tempo oportuno aquele processo administrativo, nunca poderia haver obstáculo à junção pela própria recorrente aquando das alegações de recurso, como tentativa de fazer vingar nesta sede a sua posição, em harmonia, portanto, com a previsão da parte final do nº1, do art. 616º citado.
*
2 – Da bondade jurídica da sentença
A sentença sindicada considerou que o caso concreto que nos ocupa não revela notoriedade da marca da recorrente e que o registo da marca em favor da recorrida particular não visa imitá-la como marca notória, nem denuncia uma situação de concorrência desleal.
Discorda a recorrente.
Vejamos em primeiro lugar a questão da notoriedade.
*
2.1 – O art. 214º, nº1, al. b) do RJPI dispõe que “ o registo deve ser recusado quando a marca constitua, no todo ou em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória”.
Ora, marca notória é aquela que, por qualquer característica, adquiriu fama, reputação e renome, tornando-se geralmente conhecida por todos aqueles, produtores, comerciantes ou eventuais consumidores, que estão mais em contacto com o produto, e como tal reconhecida1. Para ser notória, portanto, basta que a marca se tenha divulgado de modo particular no círculo de pessoas que é uso designar por «meios interessados2 e apresente uma imagem de qualidade acima da média, reputação3 e renome4.
Veja-se o que já dissemos da notoriedade:
«Bem, notória é a marca “…que adquiriu um tal renome que se tornou geralmente conhecida por todos aqueles, produtores, comerciantes ou eventuais consumidores, que estão mais em contacto com o produto, e como tal reconhecida. Por vezes, a notoriedade assume tal dimensão que o produto que, por via da marca, se procura distinguir passa, genericamente, a ser designado por referência à marca, independentemente da sua origem ou produtor”5.
Notórias, afirma alguma jurisprudência local, são as marcas que “…muito conhecidas pelo público interessado, constituem assim excepções aos princípios do registo e da territorialidade. No entanto, por serem apenas muito conhecidas pelo público interessado, e não público em geral, ficam sempre sujeitas ao princípio da especialidade, ou seja, só beneficiam da protecção determinada em função do produto e serviço especificamente comercializado”6.
Estamos de acordo. Por conseguinte, o que confere notoriedade a uma marca é o seu vasto conhecimento geral no círculo de produtores, comerciantes, dos prestadores dos serviços ou a sua alargada penetração no meio dos consumidores ou utilizadores dos respectivos serviços ou bens. Isto significa que o eixo da marca notória é o seu conhecimento pelos destinatários, não o seu registo - que nem precisa de estar feito7- num determinado universo mais ou menos alargado. O universo pode ser maior ou menor consoante o público a que se destine o bem, produto ou serviço. Se o produto for destinado a consumo geral, a marca deve ser conhecida do público em geral, indistintamente; se ele, pela sua especificidade, se destinar a um determinado público alvo mais restrito, a marca deve ser conhecida por grande parte desse destinatário8. Assim, não é pelo facto de uma marca não estar registada em Macau que deixa de poder ser notória. Pensar o contrário é, esvaziar, precisamente, de conteúdo a noção de marca notória, é retirar-lhe a sua própria essência. Assim se compreende a disposição do RJPI acima transcrita e o mesmo se diz da protecção que emerge igualmente do artigo 6º, bis, 1), da Convenção de Paris, com a redacção que lhe foi dada em Estocolmo (Dec. nº 22/75, de 22/1), que assim estabelece: «Os países da União comprometem-se a recusar ou invalidar, quer oficiosamente, se a lei do país o permitir, quer a pedido de quem nisso tiver interesse, o registo e a proibir o uso de marca de fábrica ou de comércio que constitua reprodução, imitação ou tradução, susceptíveis de estabelecer confusão, de uma marca que autoridade competente do país do registo ou do uso considere que nele é notoriamente conhecida como sendo já marca de uma pessoa a quem a presente Convenção aproveita e utiliza para produtos idênticos ou semelhantes. O mesmo sucederá quando a parte essencial da marca constituir reprodução de marca notoriamente conhecida ou imitação susceptível de estabelecer confusão com esta» 9.
É certo que a marca da recorrente não estava registada antes da concessão do registo à recorrida particular. Mas se por não estar registada em Macau antes do registo concedido à recorrida particular tal não impede que abstractamente ela goze de notoriedade, também do mesmo modo o facto de estar a marca registada em vários países, não faz dela uma marca notória. É que num mercado tão agressivo, como é o da concorrência aberta na “feira global”, poucas são as empresas que não querem levar para longas paragens geográficas o seu nome e a sua marca. Isso, contudo, e como bem se percebe, não quer dizer que a marca presente em vários países seja notória apenas por esse facto. A maior parte das vezes está à procura de mercado, está a fazer-se notar, a dar-se a conhecer. Mas, daí a atingir a notoriedade vai um longo passo.
Ora, vertendo a nossa atenção sobre o caso presente, não parece que a marca da recorrente , apenas registada em 27/11/2015, pertença ao universo das marcas notórias. Isso, pelo menos, não o conseguiu demonstrar a recorrente, como lhe competia, sendo certo que os bens e serviços que fazem parte da classe 9 são tão abrangentes, ao ponto de abarcar públicos tão diversos, que muitas franjas da sociedade de Macau haveriam de reconhecer essa notoriedade. E não há elementos que a demonstrem.
Por outro lado, a circunstância de a marca ser comercializada em Macau, conforme facturas juntas à reclamação administrativa (doc. 7 da reclamação), nem sequer o volume de vendas, é sinónimo de notoriedade, como é bom de entender.
*
2.2 – A sentença julgou ainda inexistir concorrência desleal. Isto é, não considerou que o registo da marca concorra deslealmente com a marca , cujo registo na RAEM foi posterior ao daquela.
Vejamos.
De acordo com o art. 9º, nº1, al. c), do RJPI, invocado pela recorrente, “1. São fundamentos de recusa da concessão dos direitos de propriedade industrial: a)…;b)…; c) O reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção” (destaque nosso).
Porque a lei do regime jurídico da propriedade industrial não descreve as situações que configurem o quadro de concorrência desleal10, haverá que pedir socorro ao Código Comercial, para o qual o simples acto de concorrência é o que se revele “objectivamente idóneo para promover ou assegurar a distribuição no mercado dos produtos ou serviços do próprio ou de terceiro” (art. 156º, nº2).
Mas se ela é lícita e desejável no mundo de hoje, cumpre pôr travão aos desmandos de uma concorrência que configure aproveitamento da reputação empresarial de outrem11, com isso visando a deslocação ou a possibilidade de deslocação da clientela12.
Por isso, o Código Comercial estabeleceu uma cláusula geral no art. 158º, segundo a qual a concorrência desleal é toda aquela que se mostra contrária às normas e usos honestos da actividade económica (art. 158º)13, para logo a seguir estabelecer que o acto desleal é aquele que se revele idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos ou o crédito dos concorrentes (art. 159, nº1).
A concorrência é desleal porque se mostra capaz de, precisamente, levar o consumidor a optar por um bem ou serviço produzido por alguém por pensar que está a optar por um bem ou serviço produzido ou prestado por outrem (cfr. art. 159º, nº2)14.
Pois bem. Se a concorrência desleal encerra na sua estrutura de base uma ideia de violação normativa e de captação desonesta e indigna de mercado, então é necessário indagar até que ponto em cada caso concreto “a actividade de um agente económico atinge ou não a actividade de outro, através da disputa da mesma clientela: inequivocamente, há um acto de concorrência, na sua máxima expressão, quando dois concorrentes, de modo actual e efectivo, produzem ou comercializam um produto ou prestam serviços idênticos, com simultaneidade e no mesmo domínio territorial relevante”15.
Ou seja, numa primeira impressão faz sentido pensar que esse desvalor da deslealdade da concorrência existe sobretudo perante alguém que já esteja nesse mercado concorrencial. É por isso que o erro e a confusão a criar no público só podem ser factores perturbadores de uma concorrência sadia se estivermos perante situações particulares que façam deslocar a clientela de um operador empresarial para outro.
É certo que a marca não é notória e não estava registada em Macau aquando da concessão do registo da marca da recorrida particular - visto que este teve lugar no dia 10/12/2014, enquanto o registo concedido à recorrente apenas ocorreu no dia 27/11/2015, e mesmo assim, para produtos da classe 7.
É, pois, de perguntar: poderá dizer-se que a recorrida particular ao registar a marca está a fazer concorrência desleal?
*
2.3 – É preciso notar que a concorrência desleal não é o mesmo que conflito marcário; são coisas inconfundíveis. Ou seja, pode haver concorrência desleal mesmo que um dos “concorrentes” não tenha marca registada na RAEM, da mesma maneira que a existência de um conflito entre marcas registadas não envolve necessariamente a ideia de concorrência desleal.
Como é dito no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça português (os destaques são nossos)16:
- “A concorrência é um tipo de comportamento: diferentes agentes económicos competem pela realização de planos e interesses individuais que, nalguma medida, não são compatíveis. O acto de concorrência é aquele que é idóneo a atribuir, em termos de clientela, posições vantajosas no mercado; em sentido económico, pressupõe a existência de regras de livre iniciativa económica, bem como a existência de uma pluralidade de agentes económicos e de um público consumidor com liberdade de escolha”;
- “As normas de comportamento são regras constantes dos códigos de boa conduta, elaborados, com crescente frequência, por diversas associações profissionais. Por sua vez, os usos honestos são padrões sociais de conduta de carácter extra-jurídico, correspondentes a práticas sociais, nem sempre uniformes, pois podem variar consoante o sector de actividade considerado”;
- “Existe autonomia entre a concorrência desleal e a violação dos direitos privativos da propriedade industrial: assim, pode haver acto de concorrência desleal sem haver violação do direito privativo, do mesmo modo que pode haver violação daquele direito sem que se registe qualquer acto de concorrência desleal”17.
- “Não se encontra, pois, a repressão da concorrência desleal subordinada necessariamente à existência de um direito privativo violado. Trata-se de institutos distintos na medida em que através dos direitos privativos da propriedade industrial se procura proteger uma utilização exclusiva de determinados bens imateriais, enquanto que através da repressão da concorrência desleal se pretende estabelecer deveres recíprocos entre os vários agentes económicos”.
Ou seja, o instituto da concorrência desleal não visa amparar direitos emergentes do registo de marcas, mas sim proteger os empresários do comportamento desleal dos concorrentes. Nele “discute-se a lealdade da concorrência, independentemente da protecção específica outorgada à marca” 18. Por tal motivo se diz que “A concorrência desleal não pressupõe a violação de um direito privativo”. Mas, reciprocamente, a violação de um direito privativo não implicará necessariamente concorrência desleal19, embora não se exclua que, simultaneamente, o acto que viole a disciplina do sinal privativo, como é a marca, também constitua acto de concorrência desleal. Daí que se possa dizer que em certos casos “aquele que faz concorrência usurpando marcas alheias pratica simultaneamente um acto de concorrência desleal”20.
*
2.4 – Portanto, pertinentemente impõe-se a pergunta: poderá haver concorrência desleal em caso de violação de sinais distintivos não registados? Terão os sinais distintivos não registados alguma tutela ao abrigo do instituto da concorrência desleal?
Como facilmente se perceberá, a situação patente na questão não é de fácil solução.
Oliveira Ascensão, aliás, dá-se conta da dificuldade “….se houvesse a generalização da tutela de todo o sinal distintivo por esta via, acabaria por se verificar a multiplicação de direitos exclusivos, ou mais precisamente, de seus sub-rogados, sem a verificação dos pressupostos a que a lei condicionou a outorga destes”21. Ou seja, se o sinal não registado não confere direito privativo a alguém, é tarefa árdua considerar que o registo feito por terceiro daquele sinal em seu favor nem sempre deverá corresponder a concorrência desleal, sob pena de se dar a este instituto um valor superior ao que deveria derivar do direito privativo provindo do registo.
De qualquer maneira, o autor não avança com uma solução para estes casos no campo do direito de propriedade industrial, e acha que ela só pode ser encontrada no âmbito do direito concorrencial.
Mas atenção: não se deve esquecer que o princípio geral é o da liberdade, no sentido de que “tudo é livre antes de o registo ter sido realizado. Se alguém não registou, podendo fazê-lo, não se pode queixar por outrem o ter ultrapassado nesse registo”, segundo as palavras de Oliveira Ascensão22. Por isso, o utilizador de uma marca sem registo dispõe de um prazo de seis meses que lha confere prioridade para efectuar o registo “podendo reclamar contra o requerido por outrem durante o mesmo prazo” (art. 202º, do RJPI). Ao deixar passar o prazo sem pedir o registo, o utilizador perde aquela prioridade e abre caminho a que outrem o requeira em seu benefício.
Insistimos: o terceiro que regista um sinal - que foi usado por outro sem o registar - incorre em concorrência desleal?
Duas situações:
Primeira - Se o utilizador de uma marca está a efectuar todos os preparativos para o registo e alguém, sabendo desses preparativos, antecipa-se e apressa-se a requerer ele próprio o registo em seu benefício, parece que aí temos um elemento denunciador de uma intenção concorrencial em deslealdade que inquina o acto de registo.
Segunda – Se o interessado (utente de facto) está a fazer o uso normal da sua marca sem curar de tratar do seu registo (mesmo que a tenha registada noutros países), a prova da concorrência desleal é então muito mais difícil e insegura. Para se concluir pela concorrência desleal, deverá existir algum elemento que acresça ao facto do registo que permita inferir uma violação por parte do terceiro de normas e em usos honestos. À falta de tal elemento, dificilmente estaremos perante uma situação de concorrência desleal23.
Falta ainda falar no disposto no art. 9º, nº1, al. c), “fine”, do RJPI, em que o pedido de registo tanto pode representar uma intenção de concorrência desleal (desconformidade objectiva, caracterizada por uma situação contrária às normas e usos desonestos), como caracterizar, mesmo sem intenção, uma possibilidade objectiva de concorrência desleal (perspectiva preventiva), por outro lado. Em ambos os casos, não há um comportamento traduzido na prática de acto consumado de concorrência desleal24.
Oliveira Ascensão argui, em moldes semelhantes, que o fundamento para a recusa neste caso representa um conceito meramente objectivo da concorrência desleal, em que qualquer intenção de fazer essa concorrência desleal é dispensada25.
Enfim, a concorrência desleal, em sentido próprio e directo, dá-se melhor com um registo prévio. Não havendo registo, mas apenas um uso de facto de uma marca, como é o caso que estamos abordando, só se pode falar em concorrência desleal em sentido impróprio e indirecto, como instrumento excepcional destinado a evitar registos que possam põe em causa posições de concorrência conquistadas no mercado por terceiros de boa fé26.
*
2.5 – Descendo ao caso em análise.
Aplicados os ensinamentos recolhidos da referida doutrina, podemos dizer o seguinte: Uma vez que a recorrente é detentora da marca em vários países, como a República Popular da China, Austrália e Canadá por exemplo, e porque a usava (mesmo sem registo) na RAEM (mas neste momento já registada), pode a sua posição jurídica ser merecedora de protecção, desde que a conduta da recorrida particular seja tida como de concorrência desleal.
Numa primeira e superficial análise, não se vê um comportamento da recorrida particular que enquadre uma concorrência desleal. Pelo menos, a recorrente não trouxe aos autos elementos reveladores nesse sentido.
Mas, se perdermos tempo, logo veremos que não é assim.
Efectivamente, não nos podemos esquecer que a recorrida particular viu recusado por mais de uma vez o registo da marca noutros países com razões que se prendem com a existência da marca da recorrente.
O que prova isto? Prova que a intenção dela era usar a marca da recorrida noutras geografias do mundo. Não foi feliz, porém.
Mas, mesmo assim, não descansou enquanto não tentou fazer o registo na RAEM, onde foi, então, bem sucedido.
Ora, esta atitude de registar na RAEM aquilo que noutros países lhe foi negado, com argumentos ligados à titularidade da marca em favor da recorrida particular, prova bem que a sua intenção era a de usurpar localmente a marca desta.
E o reforço desta ideia, embora não o pareça, está na circunstância de ter insistido no registo da mesma “ideia” marcaria, embora com outra configuração. Assim aconteceu com o registo de sinais bem próximos, tais como “”, por exemplo. Esta insistência revela que ela quer à viva força apoderar-se da simbologia que anda associada à marca da recorrente, quer no seu aspecto gráfico e fonético, quer no seu sentido semântico, para penetrar desta forma no mercado daquela.
E mesmo que esta intenção não se descobrisse a partir desta factualidade, nem por isso se afastaria a noção de concorrência desleal no caso concreto. É que, nessa hipótese, a concorrência desleal seria possível “independentemente da intenção” (art. 9º, nº1, al. c), do RJPI), face aos produtos da classe 9 da classificação de Nice que a recorrida pretende comercializar na marca N/80XXX , tais como computadores; periféricos de computador, software de computador (gravado); computador portátil, software de jogos de computador, dispositivos de gravação de tempo, equipamentos de fax; cartazes de néon; telemóveis; dispositivo de comunicações internas, equipamentos de navegação por satélite, armários de-alto-falante; TV; câmaras de media player portáteis, máquina de tampões de ouvido; medição aparelhos e instrumentos, câmara (fotografia); linhas telefónicas; telescópio de materiais (fios, cabos); circuitos integrados, transformador; tomadas, soquetes e outros contactos (conexões eléctricas); conectores eléctricos, monitores de vídeo; dispositivo de prevenção de acidentes pessoais; alarme, óculos, bateria, carregador de bateria; caricaturas; telemóveis; escudo protector telefone celular, aparelhos de telefone celular; telefones móveis e telefone equipamentos e acessórios para pacotes especiais e unidades especiais; titular telefone inteligente; linhas de dados; poder de carregamento móvel, telefones e computadores tablet com auriculares de ouvido sem tio; etc., etc.
Ora, para além da recorrente ser detentora da marca para produtos da classe 9 em várias latitudes do planeta, também já possui registada em Macau a “sua” marca para produtos da classe 7, que igualmente contempla o universo pertencente ao ramo da electrónica e com afinidade com os da classe 9.
Quer dizer que nos parece que, independentemente da intenção da recorrida, objectivamente o perigo de associação entre sinal e marca existe, criando no espírito do consumidor a noção de que o produto tem a mesma proveniência industrial e comercial, levando-o a optar por um bem ou serviço produzido por alguém por pensar que está a optar por um bem ou serviço produzido ou prestado por outrem (cfr. art. 159º, nº2).
Por tudo isto, entendemos que o caso exemplifica uma situação de concorrência desleal.
*
Em nossa opinião, concordamos com o projecto do acórdão acima transcrito na parte em que diz que a marca da recorrente não é uma marca notória.
Por outro lado, aderimos ainda à doutrina firmada no projecto quanto às considerações tecidas sobre a concorrência desleal.
Entretanto, e salvo o devido respeito, que é muito, não podemos acompanhar a posição perfilhada no projecto do acórdão, em que defende que o caso dos autos se enquadra na situação de concorrência desleal.
Vejamos.
Como observa Luís M. Couto Gonçalves27: “a apreciação tem de ser mais ampla: para haver um acto desleal de confusão entre os produtos não basta a confusão entre os sinais distintivos mesmo que um deles se encontre registado. É necessário ainda que à usurpação de marca registada (o que implica um uso típico dos sinais) se junte ainda, por exemplo, a confusão objectiva dos produtos (para a qual pode não ser bastante a confusão dos sinais ou o seu uso típico), a relação de concorrência (e não um simples comportamento de mercado de um não concorrente) e a contrariedade de normas ou usos honestos comerciais (para além da violação da norma legal).”
A nosso ver, para chegar lá, é necessário provar a prática, pela recorrida particular, de actos de concorrência e que estes sejam contrários às normas e usos honestos.
Estamos de acordo que existe “autonomia entre a concorrência desleal e a violação dos direitos privativos da propriedade industrial”, mas no vertente caso, salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que apenas estamos no âmbito dos direitos da propriedade industrial, e não resulta da pouca matéria de facto constante dos autos na conclusão de que a recorrida particular tenha ou pretenda praticar actos de concorrência desleal.
Em boa verdade, a consequência da concorrência desleal traduz-se num desvio de clientela, pelo que, para se poder afirmar que o concorrente, neste caso a recorrida particular, pretende fazer concorrência desleal ou que esta é objectivamente possível, é necessário provar a existência de conexão entre o comportamento do concorrente e o desvio de clientela.
Ora bem, o que temos no caso é a recorrente ser detentora da marca em alguns países do mundo, como a República Popular da China, Austrália e Canadá por exemplo, e que usava a referida marca na RAEM sem registo (mas neste momento já está registada), enquanto a recorrida particular é titular da marca registada na RAEM.
Aquando da concessão do registo da marca da recorrida particular, a marca da recorrente ainda não estava registada em Macau, mais precisamente, o registo da marca da recorrida particular teve lugar no dia 10/12/2014, enquanto o registo concedido à recorrente apenas ocorreu no dia 27/11/2015, e mesmo assim, para produtos de classe diferente.
É verdade que a recorrida particular tentou registar a marca noutros países do mundo, e que alguns desses pedidos não foram deferidos, e quando tentou fazer o registo na RAEM, foi bem-sucedido.
Em nossa modesta opinião, somos a entender que a atitude de os empresários comerciais fazerem ou tentarem fazer registar marcas em diferentes países do mundo não é coisa fora do normal, antes constitui prática comum no âmbito dos direitos privativos da propriedade industrial.
Assim sendo, por que os factos alegados e que se encontram provados não permitem inferir uma situação objectiva de concorrência desleal, muito menos conseguem revelar qualquer intencionalidade por parte da recorrida particular, não se pode concluir que haja concorrência desleal.
Posto isto, há-de negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente em ambas as instâncias, fixando-se o valor da causa em 500 U.C.
Registe e notifique.
***
RAEM, 7 de Dezembro de 2017
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
José Cândido de Pinho (vencido conforme voto anexo)
Voto de Vencido
Concederia provimento ao recurso com fundamento na “concorrência desleal”, uma vez que esta causa de recusa de registo não implica necessariamente a prova da sua verificação concreta, nem sequer obriga à prova da intenção de deslealdade concorrencial, mas antes se basta com a mera potencialidade abstracta de ela ocorrer. Tal é o que, de resto, resulta do art. 9º, nº1, al. c), do RJPI (a concorrência desleal é possível “independentemente da sua intenção”) e do art. 159º, nº1, do Código Comercial (o acto desleal é aquele que se revele objectivamente “idóneo” a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos). Ou seja, dispensam-se factos e atitudes concretos dos quais se possa extrair uma presunção judicial, uma vez que a situação não é de presunção, mas de características de “potencialidade” e “idoneidade” de concorrência desleal. E para tanto, a própria marca, em si mesma, é elemento bastante para se concluir pela verificação destas características.
É bom lembrar, por outro lado, que a concorrência desleal é diferente de conflito marcário. Ou seja, mesmo que não haja razões para recusa de registo em função de conflito de marcas, podem existir motivos de recusa em razão da concorrência desleal.
Reitero, portanto, as razões expostas no projecto por mim apresentado nos pontos 2.2 a 2.5, inclusive.
T.S.I., 7/12/2017
______________________
José Cândido de Pinho
1 Carlos Olavo, in ob. cit., pág. 55
2 Pinto Coelho, RLJ 89/23; Ver também, Ac. do TSI, de 14/05/2015, Proc. nº 239/2015.
3 Ac. do TSI, de 6/03/2014, Proc. nº 305/2010
4 Ac. do TSI, de 8/03/2012, Proc. nº 98/2011
5 Ac. TSI, de 8/03/2012, Proc. nº 98/2011; também Ac. TSI de 26/11/2009, Proc. nº 507/2008. Na doutrina, ver Carlos Olavo, Propriedade Industrial Almedina, 1997, pag. 55; José Mota Maia, Propriedade Industrial, II, Almedina, pag. 427.
6 Ac. TSI, de 15/07/2010, Proc. nº 873/2009
7 José Mota Maia, ob. cit., pag.429.
8 Neste sentido, Luis M. Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, pag. 242. Também, Acs. do TSI, de 19/01/2012, Proc. nº 740/2010.
9 Ac. do TSI, de 25/04/2013, Proc. nº 842/2012
10 Ac. TSI, de 31/03/2011, Proc. nº 707/2010
11 Ac. TSI, de 17/07/2014, Proc. nº 226/2014
12 Ac. TSI, de 7/02/2013, Proc. nº 844/2011
13 Ac. TSI, de 18/10/2012, Proc. nº 447/2012
14 Ac. TSI, de 17/07/2014, Proc. nº 226/2014
15 Ac. do STJ, de 24/02/2012, Proc. nº 424/05
16 Ac. STJ de 24/02/2012, Proc. nº 424/05
17 No sentido da autonomia dos institutos da concorrência desleal e os direitos privativos da propriedade industrial, como é o caso da marca, ver tb. Ac. do STJ, de 6/07/2004, Proc. nº 04A2303
18 José de Oliveira Ascensão, Concorrência Desleal, Almedina, 2002, pág. 426.
19 Autor e obra citados, pág. 434.
20 Autor e obra citados, pág. 435
21 Ob. cit., pág. 436.
22 Ob. cit., pág. 438
23 Neste sentido, em ambas as situações, Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 438-439.
24 Luis Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, 5ª ed., 2014, pág.252.
25 Ob. cit., pág. 13.
26 Luis Couto Gonçalves, ob. cit., pág. 253.
27 Luís M. Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, 2005, pág. 350 e 351
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Recurso civil 657/2017 Página 35