打印全文
Processo nº 645/2017
(Autos de recurso civil)

Data: 18/Janeiro/2018

Assuntos: Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Rejeição do recurso (artigo 599º, nº 1 e 2 do CPC)

SUMÁRIO
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Verificando-se que a decisão do Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se com base em provas documentais e depoimentos testemunhais, e tencionando a recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, entretanto havendo gravação da prova, ela terá que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.

Não logrando a recorrente indicar as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica, a nosso ver, a rejeição do pedido da reapreciação da prova, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 645/2017
(Autos de recurso civil)

Data: 18/Janeiro/2018

Recorrente:
- A (Ré)

Recorrida:
- B (Autora)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, com sinais nos autos, Ré na acção ordinária que corre termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformada com a sentença que decidiu reconhecer a Autora como titular do direito de propriedade da fracção autónoma designada por “G4”, sita em Macau, na XXXXXXX, descrita na CRP sob o n.º XXXX, a fls. XX do Livro XX, e ordenou a sua entrega à Autora livre e devoluta de pessoas e bens, interpôs recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem por objecto a reapreciação da prova gravada nos termos do n.º 6 do artigo 613º do Código do Processo Civil, por se considerar haver contradição nos fundamentos invocados na douta sentença do Tribunal A Quo.
2. A apreciação dos documentos junto aos autos, nomeadamente os montantes referentes aos pedidos de empréstimo e facilidades bancárias, pagamento mensal das respectivas mensalidades e despesas, bem como os factos considerados provados, que levam à conclusão que a A. esteve cerca de 9 anos sem pedir a devolução da casa, demonstram haver profunda contradição entre os fundamentos e a decisão do “Tribunal A Quo”.
3. Não pode o “Tribunal A Quo” afirmar por um lado que está provado que a R. passou a ocupar a fracção autónoma passado algum tempo da concretização do negócio celebrado entre ambas, (resposta ao quesito n.º 1), e por outro lado considerar provado que a R. sempre residiu na referida fracção autónoma (resposta ao quesito 7º) e concluir o mesmo perante respostas diferentes.
4. As contradições referidas no presente recurso constituem nulidade de sentença nos termos do art.º 571º do Código de Processo Civil, e justificam o pedido de reapreciação da prova gravada, o que desde já se requer a Vas. Exas Venerandos Juízes do Tribunal de Segunda Instância.”
*
Devidamente notificada, apresentou a Autora resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base que julgou procedente a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum ordinário intentada pela Autora, ora Recorrida, e, em consequência, condenou a Ré, ora Recorrente, a reconhecer a Autora como titular do direito de propriedade da fracção autónoma designada por “G4”, sita em Macau, na XXXXXX, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX a fls. XX do livro XX, e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.º XXXX e a entregar a referida fracção autónoma à Autora.
2. A Recorrente considera que existe contradição nos fundamentos invocados na sobredita decisão, e que as referidas contradições constituem nulidade de sentença, nos termos do artigo 571º do CPC, o que, no seu entendimento, justifica o pedido de reapreciação da prova gravada por banda do Venerando Tribunal de Segunda Instância.
3. Nada há a apontar à decisão recorrida devendo, aliás, o Recurso a que ora se responde ser rejeitado nos termos do preceituado no artigo 599º do CPC.
4. A Recorrente não especifica quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados pelo douto Tribunal a quo, nem indica qual a resposta que se imporia relativamente aos quesitos da Base Instrutória que alegadamente queria impugnar, nomeadamente os quesitos 1º e 7º.
5. De igual modo, a Recorrente não especifica quais os meios probatórios, constantes dos autos, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida, nem indica as passagem da gravação da prova em que funda o alegado erro.
6. Não tendo a Recorrente logrado especificar quais os pontos concretos, com referência aos quesitos da Base Instrutória, que considera terem sido incorrectamente julgados pelo Colectivo de primeira instância, implica a rejeição do recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 599º do CPC, conforme já decidido em Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 21/05/2015, no âmbito do processo n.º 668/2014.
7. Sem conceder, sempre se diga que dos elementos probatórios constantes dos autos, e de toda a prova produzida, mormente em sede de audiência de julgamento, não poderia o douto Tribunal a quo ter decidido de modo diferente de como decidiu.
8. O douto Tribunal a quo firmou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de audiência de julgamento e, bem assim, nos documentos constantes dos autos, os quais fizeram desacreditar por completo a tese defendida pela Ré, ora Recorrente, e, ao invés, lograram provar a versão dos factos defendida pela Autora, ora Recorrida.
9. O douto Tribunal a quo mais não fez do que apreciar a prova produzida nos presentes autos de acordo com a observância das regras da experiência ou lógica, com a sua prudente convicção acerca dos factos, socorrendo-se do “Princípio da livre apreciação das provas”, plasmado no artigo 558º do CPC.
10. Ao contrário do que pretende a Recorrente fazer crer, nada no processo impunha que o douto Tribunal a quo tivesse entendimento diverso do acolhido.
11. Não existe a contradição invocada pela Recorrente a qual, aliás, “Só existe (…) quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduziriam logicamente ao resultado oposto àquele que foi decidido”, conforme decidido por esse Venerando Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do processo n.º 35/2016, de 22/09/2016 o que, necessariamente não é o caso dos autos.”
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
Pela Apresentação nº 36 de 02.02.2006, inscrição nº XXX, foi registada em nome da Autora a fracção autónoma “G4”, sita em Macau, na Rua de XXXXXX, registada na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXX a fls. XX do livro XX, e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n° XXX, conforme certidão predial junta a fls. 76 a 86, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. (alínea A) dos factos assentes)
A Autora adquiriu a referida fracção à Ré através de escritura pública de compra e venda celebrada em 26 de Janeiro de 2006, a fls. XX, do Livro XX do Cartório Notarial das Ilhas. (alínea B) dos factos assentes)
Sob o aludido imóvel encontram-se registadas duas hipotecas voluntárias a favor do Banco XX SA, com data de apresentação nº 37 de 02.02.2006 e nº 38 de 23.01.2015. (alínea C) dos factos assentes)
No dia 10 de Abril de 2015, a Autora requereu a Notificação Judicial Avulsa da Ré, com expressa notificação para desocupar a referida fracção autónoma no prazo de 10 dias a contar da realização da notificação, conforme expediente relativo à Notificação Judicial Avulsa averbada sob o n° 19/2015 junta a fls. 17 a 35 e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. (alínea D) dos factos assentes)
A Ré vive na fracção aludida em a) e nega-se a desocupá-la e a entregá-la à Autora. (alínea E) dos factos assentes)
A Ré passou por momentos de grande dificuldade financeira desde que o marido abandonou o lar e foi para os Estados Unidos da América. (alínea F) dos factos assentes)
Em 16 de Dezembro de 2005, Autora e Ré celebraram um contrato­promessa de compra e venda, tendo por objecto a fracção aludida em A), em conformidade com o documento junto a fls. 72, e aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea G) dos factos assentes)
Algum tempo depois da aquisição aludida em A), a Autora autorizou a Ré a permanecer na fracção. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
Sem receber qualquer contrapartida. (resposta ao quesito 1º-A da base instrutória)
O que fez por motivos de amizade pessoal. (resposta ao quesito 1º-B da base instrutória)
Sob a condição de que o empréstimo da fracção apenas subsistiria até ao momento em que a Autora pretendesse reaver a fracção, seja por que motivo fosse. (resposta ao quesito 1º-C da base instrutória)
Pelo menos desde 2015 a Autora pede à Ré para desocupar a fracção e lha restituir. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
A Ré continuou sempre a residir na referida fracção autónoma. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
*
Da impugnação da matéria de facto
A Ré ora recorrente vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto provada, alegando ter havido erro na apreciação da prova, sobretudo no tocante aos quesitos 1º e 7º da base instrutória.
Vejamos.
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
E a parte que não está conformada com a decisão da matéria de facto pode, em sede de recurso, impugná-la, “incumbindo-lhe a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referência às provas produzidas…”1.
Isto é o que resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 599.º do Código de Processo Civil:
“1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios de probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.”
No caso vertente, a recorrente pretende pôr em causa as respostas dadas pelo Colectivo de primeira instância aos quesitos 1º e 7º da base instrutória, alegando falta de incoerência e lógica das mesmas.
Ora bem, não há margem para dúvidas que, para além da prova documental, a decisão proferida pelo Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se ainda com base em depoimentos testemunhais.
E atendendo ao facto de inexistir qualquer disposição expressa na lei que exija para determinados factos certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de qualquer meio de prova, é admissível qualquer meio de prova e cuja valoração encontra-se submetida ao princípio da livre apreciação do juiz.
Sendo assim, tencionando a Ré ora recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, e havendo gravação da prova, ela terá que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.
Conforme referiu Lopes de Rego, “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância manifestando genérica discordância com o decidido.”2
No presente caso, a recorrente não logrou indicar as passagens da gravação que, eventualmente, impunham decisão diversa da recorrida.
Em boa verdade, a razão de ser dessa exigência é permitir ao Tribunal de recurso identificar qual a parte concreta do depoimento que o Tribunal a quo teria julgado ou valorado incorrectamente.
Considerando que a recorrente não logrou indicar as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica, a nosso ver, a rejeição do pedido da reapreciação da prova, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido decidiram, nomeadamente, os Acórdãos deste TSI, nos Processos nº 765/2014 e 988/2015.
E em relação aos documentos, embora se determine na lei (artigo 629º, nº 2, alínea b) do CPC) que o Tribunal ad quem pode alterar a decisão do tribunal de primeira instância se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, mas não é o caso.
Basta-nos verificar que os documentos valorados pelo Tribunal a quo, por si só, não são suficientes para permitir a alteração da decisão da matéria de facto.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso interposto pela recorrente A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
***
RAEM, 18 de Janeiro de 2018
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, página 53
2 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2004, 2ª edição, Almedina, página 584
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




Recurso Civil 645/2017 Página 5