Processo n.º 78/2017
(Recurso em matéria cível)
Data: 18 de Janeiro de 2018
ASSUNTOS:
- Insuficiência de matéria de facto
- Documento assinado apenas pela potencial promitente-compradora
- Cláusula de assinar e receber o respectivo sinal pela promitente-vendedora como requisito da perfeição do acordo
- Princípio da indivisibilidade das declarações documentadas e consequência
- Incompatibilidade entre a decisão proferida e as provas documentais constantes dos autos
- Anular a decisão recorrida e proferir nova decisão em conformidade com as provas directamente resultantes dos autos, insusceptíveis de serem destruídas por outras provas
SUMÁRIO:
I – Na base instrutória, devem ser seleccionados os factos articulados pelas partes que interessem à decisão da causa de acordo com algumas das soluções plausíveis da questão de direito.
II – Quando o Tribunal Colectivo deu provado que as partes chegaram a um acordo verbal sobre a compra e venda de um bem imóvel, sem que essa resposta contivesse outros elementos típicos e essenciais de um contrato de compra e venda, tais como o preço total da transacção e a forma e o prazo de cumprimento de obrigações pelas partes (ainda que existe um documento que menciona esta matéria, mas ele não foi objecto de remissão em resposta nem objecto de análise na fundamentação), há insuficiência da resposta, senão uma obscuridade.
III - Entende-se que são obscuras as respostas dos quesitos quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança. São deficientes quando aquilo que se respondeu não responde a tudo quanto foi quesitado (Ac. do STJ, de 4/2/1997, in Sumário do STJ, nº 8, de Fevereiro de 1997, pág. 17).
Ensinava o Prof. A. dos Reis, dentro da expressão “resposta deficiente” cabem, para além da omissão sobre algum facto inserido no quesito, a “falta absoluta de decisão, a decisão incompleta, insuficiente ou ilegal” (…) (in CPC, anotado, Vol. IV, pág. 553).
IV – Um documento, denominado “contrato provisório” de compra e venda que incorpora várias cláusulas contratuais em que a Autora apôs a sua assinatura e riscou uma frase e rubricou ao lado do risco, constitui prova de que a Autora sabe e percebe todo o conteúdo deste documento, ainda que esse documento inclui uma cláusula que lhe é desfavorável, por força do princípio da indivisibilidade das declarações documentadas, fixado pelo artigo 370º do CC de Macau.
V – Se o mesmo documento contém uma cláusula com o seguinte teor “o sinal, pago pelo promitente-comprador, recebido pelo agente da mediação imobiliária em representação, só se torna definitivo quando tal sinal for recebido pelo promitente-vendedor e este assinar o respectivo recibo comprovativo. Caso contrário, o sinal recebido pelo agente será devolvido em singelo e o agente não terá qualquer responsabilidade”, e, se em face deste documento a potencial promitente-vendedora recusou assinar tal documento e recusou também receber o sinal respectivo, não obstante a promitente-compradora já o ter assinado, não se pode concluir pela existência de um contrato-promessa, por o acordo não estar ainda perfeito.
VI – A insuficiência de factualidade e a incompatibilidade entre a decisão proferida e as provas documentais constantes dos autos são razões bastantes para o Tribunal ad quem anular a decisão proferida pela primeira instância e proferir nova decisão em conformidade com as provas directamente resultantes dos autos.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 78/2017
(Autos de recurso jurisdicional cível)
Data : 18 de Janeiro de 2018
Recorrente : A (1ª Ré)
Recorrida : B(Autora)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A, identificada nos autos, 1ª Ré do processo cível CV2-14-0038-CAO, tendo sido condenada no Tribunal Judicial de Base (TJB) por sentença de 06/07/2016 nos seguintes termos:
“ - Condenar a 1ª Ré a pagar à Autora a quantia de HK$220,000.00;
- Condenar a 1ª Ré a pagar à Autora juros legais calculados sobre:
a) – Juros legais calculados sobre o valor de HK$400,000.00, contados desde o dia 12 de Julho de 2014 até à data em que a Autora pode levantar a ordem de caixa junta a fls. 60; e
b) – Juros legais calculados sobre o valor de HK$220,000.00 contados a partir da data em que a Autora pode levantar a ordem de caixa junta a fls. 60 até efectivo e integral pagamento da quantia de HK$220,000.00.
Contra esta decisão a Recorrente/1ª Ré veio interpor o recurso em 11/10/2016 (fls. 216 a 231), em cujas alegações formularam as seguintes conclusões (fls. 216 a 231):
1. A Sentença recorrida incorre em erro considerar que a 1ª Ré se encontrava validamente representada através da 3ª Ré. Esta questão não levanta quaisquer dúvidas atento o disposto e afirmado pela própria 3ª Ré:
A 3ª Ré sustenta que a 1ª Ré nunca assinou qualquer contrato com a Autora. Além disso, refuta o alegado pela Autora de que a 3ª Ré actuou como representante da 1ª Ré e recebeu, em nome desta, a quantia de HK$200.000,00. Mais afirma que a quantia de HK200.000,00 foi entregue à 2ª Ré e a um outro indíviduo que intervieram como agentes imobiliários da 1ª Ré não tendo o contrato-promessa sido assinado porque a Autora assiná-lo e recusou receber o sinal porque pretendia aumentar o preço já acordado.
2. A Sentença recorrida vincula a 1ª Ré a um negócio formal que nunca foi celebrado e que a 1ª Ré atempadamente informou que não desejaria celebrá-lo.
3. Se fosse um negócio que a Lei não prescrevesse de uma forma legal até seria de conceder uma hipotética situação de abuso de poder ou de um Venire contra factum proprium.
4. Mas sucede que o negócio em causa trata-se da celebração de um contrato promessa de compra-venda. Para que este negócio seja válido, não chega a vontade das partes para a celebração do mesmo! Com efeito o artigo 404 do CC em conjugação com o artigo 866 do mesmo código e artigo 94 n.º 1 do Código do Notariado exige que a atribuição dos poderes em questão, bem como o mandato conste de documento assinado pelo representado.
5. O negócio até se encontrar formalizado pode ser alterado pelas partes, não se encontrando as mesmas vinculadas a declarações negociais interlocutórias, pois, tratando-se de negócio formal, o que conta são as declarações negociais acordadas e reduzidas a escrito por meio de documento outorgado por ambas as partes.
6. A razão porque o legislador sentiu necessidade de dotar certos negócios jurídicos com a observação de normas formais cuja falta conduziria necessariamente à invalidação do mesmo negócio radica exactamente num valor de justiça e não se deixando subjugar por outros princípios de forma a facilitar a realização de certo tipo de negócios e a certeza de que os mesmos iriam produzir os seus habituais efeitos.
7. Às partes é lícito o respeito pela Pacta Sunt Servandal ou seja, é lícito acordarem as condições do negócio, mas no que respeita à forma do mesmo é-lhes vedado a inobservância do requisito de forma sob pena do negócio ser nulo.
Finalmente,
8. A 1ª Ré agiu em defesa dos seus interesses e num íato temporal legalmente válido não se tendo vinculado por si própria ou pela 3ª Ré à celebração de um contrato que se encontrava a ser composto, mas, em que não havia um mandato representativo e não houve declaração escrita outorgada pela 1ª Ré a consentir na celebração de qualquer negócio.
Nestes termos, terá de proceder o presente recurso, o que acarretará a revogação da Sentença ora recorrida, com prolação da decisão que julgue a acção procedente. (sic)
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Notificada, a Autora/Recorrida veio a apresentar as suas contra-alegações (fls. 245 a 250), em sede de conclusões, pede que seja confirmada a sentença da primeira instância.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- A 1ª Ré adquiriu, em partilha por divórcio, a fracção autónoma designada por "XX", correspondente ao XX° andar XX do prédio sito em Macau, na Avenida XX, n.º XX, Edifício XXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XX, a fls. XX, do Livro XX (alínea A) dos factos assentes).
- Em data posterior a 22 de Outubro de 2013, a 1ª Ré vendeu tal imóvel a terceira pessoa, estando a fracção autónoma em questão actualmente registada em nome de C (alínea B) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória :
- Em 22 de Outubro de 2013, a Autora, através da 3ª Ré, sua intermediária, e a 1ª Ré, (através da 2ª Ré, sua intermediária), chegaram a um acordo verbal, em que a Autora prometia comprar à 1ª Ré e a 1ª Ré prometia vender à Autora a fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- Por causa do acordo referido na resposta ao quesito 1º, a Autora entregou à 2ª Ré HK$20.000,00 em dinheiro e uma ordem de caixa no montante de HK$180.000,00, sacada sobre o Banco XX, S.A., os quais seriam entregues pela 2ª Ré à 1ª Ré, a título de sinal (resposta ao quesito 2° da base instrutória).
- A 1ª Ré recusou o recebimento do sinal referido na resposta ao quesito 2º bem como a assinatura do documento donde constaria por escrito o acordo referido na resposta ao quesito 1º porque pretendia aumentar o preço da venda da fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes fixado aquando do acordo verbal referido na resposta ao quesito 1º (resposta ao quesito 3° da base instrutória).
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IV - FUNDAMENTAÇÃO
A Recorrente/1ª Ré (A) assaca à sentença ora posta em crise os seguintes vícios:
1) – Erro de direito relativamente às regras de representação dos contraentes em negócio formal;
2) – Erro de direito relativamente à interpretação da declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789.
Estas questões serão analisadas e abordadas em sede própria.
Mas, antes de mais, não é supérfluo relembrar aquilo que o legislador do processo civil manda em matéria da possível modificação da matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a quo em sede de recurso, nomeadamente o que consta do artigo 629º do CPC, que tem o seguinte teor:
1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade.
Vamos ver se estão reunidos ou não os pressupostos de que depende a aplicação do normativo citado.
À primeira vista, parece-nos que é um caso simples, pois só há 5 factos assentes com base nos quais o Tribunal procurava resolver o litígio entre as partes.
Mas olhando com atenção para o fundo da matéria discutida, não é difícil verificar que estamos perante um caso complexo, em que, para além de se levantarem questões de natureza jurídica complexa, se notam várias “particularidades”, senão “anormalidades.”
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Vamos ver a primeira.
Começando pelo lado da Recorrente/1ª Ré.
Não se conformando com a decisão da primeira instância, contra ela a 1ª Ré A, ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional, mas a Ilustre Mandatária da 1ª Ré veio, em sede de conclusões do recurso, pedir julgar procedente a acção(??) (fls. 231, última folha das alegações do recurso).
Se é um lapso? Então é seguramente um lapso relevante, na medida em que o pedido delimita o âmbito cognocivo do Tribunal a quem, por força do princípio dispositivo do processo civil.
Verdadeiramente o que a 1ª Ré quer é julgar procedente o recurso e revogar a sentença de primeira instância. O pedido não está esclarecidamente formulado. Mas como já estamos na fase final do recurso, não nos parece que seja adequado neste momento convidar a Recorrente para aperfeiçoar o seu pedido do recurso.
Todavia, estas “particularidades” verificam-se também no lado do Tribunal a quo.
Como? Vejamos de imediato.
1. Fundamentação “contraditória” da matéria de facto:
Nos termos já citados, o Tribunal Colectivo respondeu aos quesitos da base de instrução em 09/11/2015, conforme o que consta de fls. 163.
A resposta dada ao quesito 1º é a seguinte:
“Provado que, em 22 de Outubro de 2013, a Autora, através da 3ª Ré, sua intermediária, e a 1ª Ré, através da 2ª Ré, sua intermediária, chegaram a um acordo verbal (sublinhado nosso), em que a Autora prometia comprar à 1ª Ré e a 1ª Ré prometia vender à Autora a fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes.”
Mas na fundamentação do Acórdão, concretamente na parte constante de fls. 164/verso, o Colectivo afirma:
“Ora, articulando isso tudo com as demais declarações citadas das testemunhas da Autora e das 2ª e 3ª Rés, o Tribunal ficou convencido que o acordo verbal acabou por não ser celebrado (sublinhado nosso)porque a 1ª Ré recusara receber o sinal entregue à 2ª Ré e assinar o contrato-promessa respectivo porque a 1ª Ré pretendia aumentar o preço já acordado. …”
Pergunta-se, afinal, houve acordo verbal ou não?
Poder-se-á entender que se trata de um lapso escrito, se o é, então é seguramente um lapso relevante na medida em que esta palavra (acordo verbal ou escrito) é uma palavra chave, cuja alteração terá repercussões necessárias sobre a decisão final.
Mas não só este aspecto, existem ainda outros que não podem deixar de ser o nosso foco de atenção.
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2. Matéria de facto insuficiente contida na resposta do quesito 1º:
O Tribunal Colectivo deu a seguinte resposta ao quesito 1º da base de instrução:
PROVADO que, em 22 de Outubro de 2013, a Autora, através da 3ª Ré, sua intermediária, e a 1ª Ré, através da 2ª Ré, sua intermediária, chegaram a um acordo verbal, em que a Autora prometia comprar à 1ª Ré e a 1ª Ré prometia vender à Autora a fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes.
Ora, se se chegassem a um acordo de compra e venda, obviamente teriam de acordar também outro conteúdo entendido como cláusulas essenciais do contrato de compra e venda, tais como:
- Preço total;
- Tempo e local de pagamento, ou seja, forma, tempo e local de cumprimento das obrigações das partes;
- Outra matéria que as partes entendem ser particularmente relevante e que merece de ser tratada expressamente por cláusulas expressas.
Mas na resposta citada, omitem-se estes elementos. Obviamente pode entender-se que o Colectivo pretende remeter, quanto a estes aspectos, para os documentos juntos aos autos.
Ora se assim fosse, teria de declarar expressamente e indicar, se possível, qual documento ou quais documentos que foram considerados para formar a respectiva convicção ou para tirar a respectiva conclusão. Pois, na resposta, nem sequer foi feita remissão expressa para algum documento dos autos, em que existem vários.
Sendo certo que na fundamentação do acórdão da matéria de facto há menção de documentos juntos aos autos (fls. 163/v), mas não basta, porque existem documentos, cujo conteúdo é incompatível com a decisão proferida, ponto este que demonstraremos mais adiante.
Nesta resposta, salvo melhor respeito, nota-se nitidamente uma insuficiência ou obscuridade, na medida em que este aspecto vicioso não pode ser sanado com recurso a outra matéria fáctica assente.
A insuficiência da resposta também se verifica na resposta dada ao quesito 3º que tem o seguinte teor:
A 1ª Ré recusou o recebimento do sinal referido na resposta ao quesito 2º bem como a assinatura do documento donde constaria por escrito o acordo referido na resposta ao quesito 1º porque pretendia aumentar o preço da venda da fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes fixado aquando do acordo verbal referido na resposta ao quesito 1º (resposta ao quesito 3° da base instrutória).
Ora, a resposta dada ao quesito 1o não se refere, em lado nenhum, a um documento escrito! Porventura subentende-se, mas não basta!
A este propósito, entende-se que são obscuras as respostas dos quesitos quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança. São deficientes quando aquilo que se respondeu não responde a tudo quanto foi quesitado (Ac. do STJ, de 4/2/1997, in Sumário do STJ, nº 8, de Fevereiro de 1997, pág. 17).
Ensinava o Prof. A. dos Reis, dentro da expressão “resposta deficiente” cabem, para além da omissão sobre algum facto inserido no quesito, a “falta absoluta de decisão, a decisão incompleta, insuficiente ou ilegal” (…) (in CPC, anotado, Vol. IV, pág. 553).
É justamente a situação que estamos a ver.
3. Assinatura na cópia de cheque como meio de prova de recepção:
À luz da convicção do Tribunal a quo, o cheque de caixa (cheque nº189713, fls. 21 dos autos) (HK$180,000.00) foi entregue à 2ª Ré D para esta entregar depois à Recorrente/1ª Ré (potencial promitente-vendedora), o que corresponde à verdade, a nosso ver, porque a 2ª Ré apôs a sua assinatura na fotocópia do cheque e a data da recepção (data de 23/10/2103).
O que espelha não mais do que uma realidade prática, um uso comercial, sendo frequente que, quem recebe o original do cheque, apôs a sua assinatura na fotocópia do mesmo.
Mas este cheque em si não diz nada, porque dele não consta nenhum elemento da relação fundamental que deu origem à sua emissão. Assim, temos de analisar um outro documento elaborado em chinês, igualmente junto aos autos “臨時買賣合約” (“contrato provisório de compra e venda”, tradução literal) (fls. 21 – cópia, junta aos autos pela Autora; fls. 56, original, apresentado pela 2ª Ré conjuntamente com a contestação).
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4. Documento essencial para comprovar o papel dos intervenientes e a vontade das partes do contrato que seria celebrado posteriormente
O chamado “contrato provisório” é um contrato-tipo, usado frequentemente pelas agências de mediação imobiliária, embora com conteúdo ligeiramente diferenciado de agência para agência, mas tem basicamente um teor estandardizado.
No caso sub judice, este “contrato provisório”, utilizado pela Companhia de Investimento Predial e Importações e Exportações E (em chinês: E地産貿易发展公司), contém um conteúdo assaz relevante, cuja análise é absolutamente indispensável, principalmente para resolver o litígio das partes.
Nesta sede, cabe realçar os seguintes pontos:
a) - Neste documento não encontramos nenhuma assinatura da Recorrente/1ª Ré (potencial promitente-vendedora).
b) – Mas, nele a Recorrida (promitente-compradora) apôs a sua assinatura.
c) – Quanto a outros elementos importantes, tais como: nº do BRIM da promitente-vendedora, a assinatura da mesma e recibo da recepção do sinal assinado pela promitente-vendedora, tudo é deixado em branco.
d) - O que significa que tal documento, elaborado e preenchido em 23/10/2013, para além de ser importante para comprovar as relações existentes, encerra o conteúdo das cláusulas essenciais do referido “acordo” de compra e venda.
e) – Por outro lado, de realçar que este documento, junto aos autos pela Autora/recorrida, contém a maior parte da matéria alegada na PI, daqui uma das conclusões que podemos tirar é que a Autora/Recorrida sabe perfeitamente o conteúdo deste “contrato provisório” em causa, senão não teria aposto a sua assinatura. Lógica das coisas!
f) – Um outro ponto que vem reforçar esta conclusão imediatamente acima referida é justamente o que acontece com a cláusula 5ª do referido “contrato provisório”, cuja última parte da frase foi riscada e foi aposta a rubrica com o apelido de X (apelido da Autora). O que significa que a Autora/Recorrida compreendeu perfeitamente o teor deste documento e sabe qual parte é que não lhe interesse.
g) - Repararem-se, nesta parte (cláusula 5ª), a cópia junta com a PI pela Autora (fls. 21) não contém a assinatura da promitente-compradora, mas o original junto pela 2ª Ré (fls. 56) tem essa rubrica! Parece-nos que é mais acreditável o original do que a cópia!
h) Acresce ainda que, este documento (contrato provisório), junto aos autos pelas partes, cuja veracidade nunca foi questionada, há-de ser aceite no seu todo. Nestes termos, as declarações nele documentadas valem o que valem, quer a favor do seu declarante, quer contra.
i) Que consequência tem? Vejamos de seguida.
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5. Cláusula-chave do “contrato provisório” que determine a perfeição do acordo:
Tal como referimos anteriormente, o “contrato’ contém cláusulas importantes para compreender a “história” das partes e para também resolver o litígio entre elas.
Referimo-nos à cláusula 3ª do referido “contrato provisório” que tem o seguinte teor:
“3. O sinal cobrado pelo agente na qualidade de representante do promitente-comprador só produz efeitos em relação ao promitente-vendedor depois de sete assinar, sob pena de reembolso do sinal cobrado pelo agente, neste caso, o agente não tem nenhuma responsabilidade.” (tradução feita pelo intérprete do GATUI) (fls. 268 dos autos).
A versão originária em chinês da cláusula é: “凡經紀以買方代理身份代收之訂金必須由賣方簽名收妥后才作實論,否則代收之訂金按原數退回,經紀不需要負任何責任。”
Não é feliz esta redacção original (em chinês). Pois, se o representante que representa a parte de promitente-comprador, como é possível ele recebe sinal? Quem terá direito para o receber é sempre o promitente-vendedor ou seu representante.
É nitidamente uma gralha, lapso de impressão do contrato-tipo em causa. Pois, quando aí se refere à parte de promitente-comprador, deve entender-se por “a parte de promitente-vendedor”, ou seja, a pessoa que representa a parte de promitente-vendedor recebe o respectivo sinal.
A tradução mais correcta desta cláusula é:
“O sinal, pago pelo promitente-comprador, recebido pelo agente da mediação imobiliária em representação, só se torna definitivo quando tal sinal for recebido pelo promitente-vendedor e este assinar o respectivo recibo comprovativo. Caso contrário, o sinal recebido pelo agente será devolvido em singelo e o agente não terá qualquer responsabilidade.”
Ou outra tradução alternativa, também correcta:
“O sinal, recebido pelo agente da mediação imobiliária em representação de promitente-vendedor, só se torna definitivo quando tal sinal for recebido por este último e este assinar o respectivo recibo comprovativo. Caso contrário, o sinal recebido pelo agente será devolvido em singelo e o agente não terá qualquer responsabilidade.”
Simplificando, à luz do conteúdo da cláusula citada, toda a quantia recebida pelo agente da mediação imobiliária em representação não vincula a parte que ele representa.
Pelo que, é de concluir que a quantia que a Autora/Recorrida entregou ao agente em causa não se tornou ainda definitivo.
Se este documento é oferecido pela Autora/recorrida e ela própria nunca contesta o seu conteúdo, o que significa que ela aceita este documento como meio que reflecte a realidade fáctica.
Então, pergunta-se, qual consequência daqui pode decorrer?
Sem mais nem menos, o que representa uma confissão da Autora neste ponto, por força do princípio da indivisibilidade de declarações documentadas, pois o artigo 370º do CC dispõe:
“1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedente faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3.(…)”
Nestes termos, a Autora/Recorrida sabe perfeitamente que a perfeição do acordo está dependente da assinatura da promitente-vendedora (1ª Ré) e da recepção do sinal pela mesma.
Aliás, em face de todo o quadro acima desenhado, parece-nos que estamos mais perante uma promessa de celebração de um contrato-promessa do que outra coisa. Se esta promessa for quebrada e se pretender apurar a respectiva responsabilidade, dever-se-á recorrer ao regime de responsabilidade pré-contratual (artigo 219º do CC) e não invocar directamente o regime de contrato-promessa, pois os pressupostos necessários são diferentes. Quem invoca um direito, tem de provar os factos constitutivos desse mesmo direito.
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6. Forma legalmente exigida para provar as relações entre agentes de mediação imobiliária e partes do contrato de compra e venda de bem imóvel:
Um outro aspecto ainda:
Não sabemos em que medida é possível afirmar com toda a segurança que a 2ª Ré actuou como uma espécie de “representante” da 1ª Ré, já que aquela é uma mera agente de mediação intermediária de profissão, sendo certo que ela recebeu o cheque e apôs a sua assinatura na cópia do cheque! Fê-lo porque sabe com clareza o teor da citada cláusula 5ª do “contrato provisório”?
Sempre se questiona: existem alguns interesses, devidamente alegados e comprovados, que justifiquem que a agente assume um “dever” tão pesado?
Mais, o artigo 19º da Lei nº16/2012, de 12 de Novembro (Lei de agentes de mediação intermediária), estipula:
“1. O contrato de mediação imobiliária está sujeita à forma escrita.”
É de ver que, para este tipo de relações, o legislador fixa como requisito de validade a forma escrita. Ora, nos autos não encontramos nenhum documento que comprove este tipo de relação, sendo certo que, por força da confissão dos factos pelas partes intervenientes, o resultado não se altera.
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7. Um outro documento junto aos autos que merece analisar:
Relativamente ainda um outro documento, fls. 23 dos autos, (sob o nº 4, apresentado pela Autora), que é um “acordo” (協議書) em que se consigna (ou se constatam) os seguintes termos:
- Comprova-se que F e B pretendiam adquirir a fracção autónoma referida nos autos.
- Tem uma assinatura de F, e uma outra, ininteligível (não se sabe de quem é a respectiva assinatura (somente olha-se para esta assinatura);
- Encontra-se um carimbo: G Propriedade (G房地產).
- Este acordo não tem data.
Reparem, nos autos não se encontra nenhuma tradução portuguesa deste acordo em causa, mas ele não deixa de ser um elemento relevante para perceber a “história” contada pelas partes.
Com base nos elementos recolhidos em sede de audiência de julgamento, documentados nos autos, vimos a saber que tal Sra. F é a mãe da promitente-compradora.
E, essa assinatura ininteligível deve ser a dum Sr. chamado H, conforme as declarações prestadas por testemunhas.
Nestes termos, perguntamos, afinal, o represente da 1ª Ré )(ora Recorrente) é a 2ª Ré? Ou este Senhor H? Porque este interveio também nos negócios! OU ambos?
São dúvidas fundadas que legitimam pôr em causa a decisão tomada pelo Tribunal a quo.
A 2ª Ré D é uma das Rés demandadas nesta acção, mas este Sr. H que assinou também um dos documentos não é parte principal do processo, mas, é apenas uma das testemunhas! Algo muito estanho!
Uma outra dúvida reside em saber que, afinal das contas, qual foi o papel da 3ª Ré nesta acção? Sendo certo que ela aparece como uma das partes principais do processo!!!
O que demonstra que a Demandante/Autora também não sabe muito bem o papel de cada um dos intervenientes!
Eis mais uma “anormalidade” do caso!
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É já tempo para tomar decisão!
Perante todo este quadro acima desenhado, o que havemos de fazer?
Não resta dúvida que a decisão proferida pelo Tribunal a quo será anulada!
A seguir à revogação, ao Tribunal resta duas hipóteses, ou mandar repetir o julgamento, ou tomar directamente uma decisão em função das provas resultantes dos autos.
Não obstante se verificarem insuficiência da matéria de facto contida em respostas dadas aos quesitos e alguma contradição verificada, certo é que os elementos constantes dos autos são suficientes para o Tribunal ad quem decidir directamente sobre o objecto da causa.
Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 629º/1-a) e b) do CPC, tendo em conta todos os elementos das provas documentados nos autos que podem servir de base à decisão sobre o litígio entre as partes, nomeadamente o conteúdo e as cláusulas do “contrato provisório” acima referido, em conjugação com o princípio da indivisibilidade das declarações documentadas e a não perfeição do acordo devido à falta (recusa) da assinatura da potencial promitente-compradora, é de conceder provimento ao procedente recurso e consequentemente revogar a decisão da 1ª instância, julgando improcedentes todos os pedidos da Autora, recorrida nos presentes autos.
Com esta decisão fica prejudicada a necessidade de analisar os argumentos invocados pela Recorrente/1ª Ré neste recurso.
Tudo visto, resta decidir.
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V) - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso e consequentemente anular a decisão de 1ª instância, julgando improcedentes todos os pedidos da Recorrida(Autora na 1ª instância).
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Custas pela Autora(ora Recorrida) em ambas as instâncias.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 18 de Janeiro de 2018.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
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