Processo nº 611/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 30 de Novembro de 2017
ASSUNTO:
- Princípio da livre apreciação
- Reapreciação da prova
SUMÁRIO:
- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
- Deste modo, a reapreciação da matéria de facto por parte deste TSI tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
O Relator
Ho Wai Neng
Processo nº 611/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 30 de Novembro de 2017
Recorrente: A Casino, S.A. (Requerente)
Recorrida: Sociedade Promoção de Jogos B Limitada (Requerida)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 08/03/2017, julgou-se improcedente a acção e, em consequência, absolveu-se a Requerida Sociedade Promoção de Jogos B Limitada do pedido da declaração de falência formulado pela Requerente A Casino, S.A..
Dessa decisão vem recorrer a Requerente, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. A alínea aa) do Acórdão e da Sentença deve ser rectificada, porquanto, os meses aí indicados não correspondem à prova produzida, que resultou do depoimento da testemunha X, sendo que, a testemunha em causa, tinha conhecimento de facto e especial da situação.
B. Nas alíneas bb), cc) e ee) do Acórdão e da Sentença são referidas as relações amigáveis e de cooperação entre a Recorrente e a Recorrida.
C. Tal, como resulta da prova carreada para os autos, não corresponde à verdade.
D. Do depoimento da testemunha X e dos documentos juntos com o requerimento de falência pela ora Recorrente, fica demostrado que as relações entre as partes foram mantidas com o intuito de se obter uma solução extrajudicial ao litígio que opunha as partes.
E. Pelo que, a redacção actual das alíneas bb), cc) e ee) do Acórdão e da Sentença faz pressupor a existência de uma relação comercial saudável, que à data, já não existia e não deve subsistir .
F. A inserção da Recorrida no grupo de empresas F Group Holding Co. foi tida como provada na alínea c) do Acórdão e da Sentença, bem como, a existência de uma estratégia empresarial comum, determinada pelo grupo para as suas sociedades em Macau, como a Recorrida.
G. No entanto, o Tribunal a quo não deu como provado no ponto 6 do Acórdão, o deliberado desinvestimento, potencial desvio de fundos, bens e dinheiros, susceptíveis de pagar a dívida, para fora de Macau, por banda do grupo de empresas em que a Recorrida está integrada.
H. Conforme demonstrou a Recorrente, era publicamente conhecida a intenção de tal grupo em o fazer, o que, inevitavelmente, afectou a situação patrimonial da Recorrida.
I. Pelo que, deveria ter sido dada por provada a incapacidade da Recorrida de solver as suas dívidas.
J. Nas alíneas dd), ff) e gg) do Acórdão e da Sentença é dado como provado o circunstancialismo que conduziu e determinou o encerramento da sala VIP explorada pela Recorrida no casino C.
K. A Recorrente não se conforma com a decisão sobre a matéria de facto quanto a estes pontos, porquanto diferente conclusão se deveria ter retirado da prova produzida nos autos principais.
L. Deveria o Tribunal a quo ter decidido que a Recorrida, por intermédio do grupo de empresas em que se integra, publicamente anunciou o encerramento da sala VIP que explorava, no dia 13 de Setembro de 2016.
M. Resulta do depoimento da testemunha X que, em 10 de Setembro de 2016, a Recorrente apenas suspendeu as operações nas mesas de jogo daquela sala.
N. Pelo que, a conclusão extraída pelo Tribunal a quo, de que a Recorrente deu causa ao encerramento daquela sala VIP não corresponde à verdade dos factos.
O. Doutro passo, da análise do contrato de promoção de jogo, junto aos autos principais como Doc. n.º 1, com a oposição da Recorrida, resulta que, para fazer operar a resolução do contrato, nos termos do artigo 23.º, n.º 3, apenas era exigido que fosse dado aviso escrito, e não, como decidiu o Tribunal a quo, e mal, que tal aviso fosse dado com antecedência.
P. Pelo que, o facto de a Recorrente ter expedido o aviso de resolução apenas em 14 de Setembro de 2016 não deveria ter sido valorado pelo Tribunal a quo.
Q. Em decorrência das conclusões acima descritas, vem ainda o Tribunal a quo, na alínea hh) do Acórdão e da Sentença concluir que, na medida em que foi a conduta da Recorrente que determinou a cessação imediata da actividade de promoção de jogos do clube VIP que a Recorrida estabeleceu dentro do casino C, tal conduta fez com que esta nunca mais pudesse gerar receitas.
R. Conclusão com a qual a Recorrente não pode concordar, porquanto a mesma não resulta dos factos e da prova produzida.
S. A suspensão das operações nas mesas da sala VIP no casino C ocorreu no dia 10 de Setembro, sendo que, o anúncio público de encerramento definitivo da sala VIP em causa foi feito no dia 13 de Setembro e no dia 14 de Setembro a Recorrente formalizou, nos termos contratuais devidos, a resolução do contrato de promoção de jogo.
T. Ou seja, apenas 4 dias passaram entre a suspensão de actividade e a formalização da resolução do contrato de promoção de jogo.
U. Ora, resulta do depoimento prestado pela testemunha X que a actividade na sala VIP explorada pela Recorrida era cada vez menor, e desde inícios de Setembro de 2016 era ínfima, não correspondendo aos níveis mínimos contratualmente exigidos.
V. Nenhuma outra prova foi carreada para os autos principais que ponha em causa o depoimento da testemunha referida quanto a este ponto.
W. Especialmente, pois, a Recorrida nunca comprovou (ou sequer esclareceu) que actividade tinha e que rendimentos gerava, na aludida sala VIP.
X. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao não ter decidido que a actividade na sala VIP explorada pela Recorrida era ínfima em Setembro de 2016 e que o breve período que medeia entre a suspensão das operações nas mesas de jogo e a formalização da resolução do contrato de promoção de jogo não permitem conceber que a Recorrida pudesse gerar quaisquer rendimentos.
Y. Concluiu ainda o Tribunal a quo, a fls. 29 e 30 da Sentença que: (i) a Recorrida encontrava-se a exercer a sua actividade normalmente; (ii) o volume de negócios médio mensal da Recorrida, pressuposto da concessão do crédito, determina que seria expectável que continuando esta a exercer o seu negócio na sala VIP, seria fácil vir a gerar liquidez/numerário para liquidação do montante em dívida; e, (iii) que, nada demonstra de onde se pudesse concluir que a Recorrida não teria meios para solver os seus compromissos, não houvesse a Recorrente encerrado a sala VIP.
Z. Extraindo destas conclusões que, em suma, a mora da Recorrida "pode até ter sido gerada pelo inopinado encerramento da sua sala VIP por banda da Requerente, em pleno período contratual, sem que a estes autos haja sido trazida justificação alguma".
AA. Ora, não pode a Recorrente aceitar tal tese, pelas seguintes razões:
• resulta de uma errada apreciação da prova carreada para os autos;
• ficciona que a Recorrida mantinha o nível médio mensal do turnover a que a estava contratualmente obrigada, quando tal não é verdade, nem nenhum elemento dos autos lhe permitia criar tal ficção;
• evidencia a convicção do Tribunal a quo que a situação patrimonial dos garantes da dívida e administradores da Recorrida deve ser desvalorizada, o que, na perspectiva da Recorrente, está errado;
• não valoriza o facto das garantias pessoais prestadas pelos administradores da Recorrida se terem frustrado para ressarcimento das dívidas; e,
• não concluí que este circunstancialismo implica também a falta de património da Recorrida.
BB. Atenta a prova produzida em audiência deveria o Tribunal a quo ter concluído na Sentença que os rendimentos gerados na sala VIP eram ínfimos e que esta estava em estado de falência.
CC. Na medida em que a Recorrida incumpriu com as suas obrigações, decorre, nos termos da alínea a), do artigo 1082.° do Código de Processo Civil que, pelo montante da dívida em causa e pelas circunstâncias do incumprimento, a devedora (a Recorrida) se encontrava impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações.
DD. A Recorrida estava onerada com a prova da sua situação financeira, por força do n.º 2 do artigo 337.º do Código Civil.
EE. Verificam-se os pressupostos para a inversão do ónus da prova, a saber: a impossibilidade de prova e a actuação culposa da parte contrária.
FF. Tendo sido ordenada a junção de documentação vária e relevante para apurar do estado financeiro da Recorrida, esta não o fez.
GG. Deveria o Tribunal a quo ter dado outro relevo a estes factos.
HH. Bem andou o Tribunal a quo em não acolher expressamente a tese de abuso de direito, propalada pela Recorrida em sede de oposição ao requerimento de falência.
II. Quanto a isso nada há a apontar da Sentença de que se recorre.
JJ. No entanto, o Tribunal a quo acolheu no seu juízo valorativo, ainda que em termos hipotéticos, considerando a redacção do último parágrafo a fls. 30 da Sentença.
KK. Por tudo o exposto nesta alegação, não nos resta dúvidas que o pedido de falência apresentado pela Recorrente é legítimo, fundado e deveu-se, única e exclusivamente, à conduta da Recorrida.
LL. Igualmente, conclusa diversa não poderá resultar da análise dos elementos de prova juntos aos autos principais, que, quanto a este ponto, são concludentes.
MM. Pelo que, não se vislumbra de onde se poderá concluir a existência de qualquer conduta abusiva por parte da Recorrente.
NN. Por conseguinte, não deveria o Tribunal a quo ter aceite no seu juízo valorativo, mesmo em termos hipotéticos, tal tese, como resulta do trecho assinalado supra.
OO. O Tribunal a quo socorreu-se do critério do fluxo de caixa como determinante para a apreciação da existência (ou não) do estado de falência da Recorrida.
PP. Mal andou o Tribunal a quo ao valorar erradamente a prova produzida.
QQ. Deveria o Tribunal a quo ter decidido pela falência da Recorrida, porquanto, resulta claramente que esta não tinha liquidez, nem estava ao seu alcance obter tal liquidez, para ressarcir as dívidas à Recorrente.
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A Requerida respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 984 a 1002 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) A Casino, S.A., é uma sociedade que se dedica à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino e, ainda, à prática de actos inerentes a tal actividade, incluindo a concessão de crédito para jogo, tudo como consta da certidão do registo comercial junta a fls. 20 a 52 e aqui se dá por integralmente reproduzida;
b) A Requerida é uma sociedade que se dedica à actividade de promoção de jogo e ainda à prática de actos inerentes a tal actividade e tem como únicos sócios e administradores D e E, tudo como consta da certidão do registo comercial junta a fls. 53 a 61 e aqui se dá por integralmente reproduzida;
c) A Requerida é uma sociedade que pertence ao grupo “F”, sendo subsidiária da sociedade das Ilhas Caimão, F Group Holding Company Limited, em chinês F集團控股有限公司;
d) No exercício da sua actividade, a ora Requerente celebrou em 01 de Janeiro de 2016 com a Requerida um contrato de promoção de jogo, mediante o qual as partes acordaram em estabelecer uma relação comercial, que consistia, sucintamente, na promoção do negócio do jogo por parte da Requerida, a ser realizada em salas destinadas a esse fim no casino A Macau da Requerente;
e) Nesse mesmo dia, a Requerente celebrou um contrato de crédito para jogo com a Requerente, mediante o qual lhe foi concedida uma linha de crédito, na modalidade de “revolving credit”, até ao máximo de HKD179.000.000,00 (cento e setenta e nove milhões de dólares de Hong Kong), nos termos e condições aí acordados, válido para o período entre a sua celebração e o dia 31 de Dezembro de 2016, tudo como consta do documento a fls. 62 a 71 e aqui se dá por integralmente reproduzido;
f) Em virtude da celebração do Contrato referido em e), a Requerente colocou à disposição da Requerida, fichas de jogo, não negociáveis, para serem utilizadas por estas ou pelos seus clientes, com o intuito exclusivo de as mesmas serem jogadas no casino da Requerente aí melhor identificado,
g) A utilização das fichas de jogo acima referidas realizava-se a pedido da Requerida, junto da Requerente, por meio de avisos de saque (em inglês, denominados “drawdown notices” ou “markers”), nos termos dos quais se definia a quantia mutuada e o respectivo período de pagamento;
h) A falta de pagamento de qualquer das quantias mutuadas nos termos supra descritos, implica o vencimento de juros convencionados à taxa mensal de 1,5% (um vírgula cinco por cento), calculados sobre o montante em dívida, desde a data de vencimento até integral e efectivo pagamento;
i) Em garantia de todas as importâncias que a Requerida deva ou venha a dever por via do Contrato referido em e), o Administrador D:
• constituiu-se solidariamente fiador e principal pagador perante a Requerente relativamente a todas as importâncias que a Requerida deva ou venha a dever por via do Contrato referido em e), renunciando ao benefício da excussão prévia;
• emitiu, assinou e entregou à Requerente um cheque com o nº …, sacado sobre o X Bank, Sucursal de Macau e uma declaração por si assinada segundo a qual expressamente autorizava a Requerente a preencher os elementos que estivessem em falta, in casu, a data da emissão do cheque e a quantia em dívida, em caso de incumprimento das obrigações assumidas;
j) Tendo-se igualmente constituído fiador da Sociedade Promoção de Jogos G Limitada, pertencente ao grupo no qual se integra a Requerida (F Group Holding Company Limited), que aqui se refere para melhor enquadramento dos factos, tendo, para o efeito, entregue à Requerente um outro cheque por si subscrito, com o nº …, sacado sobre o Bank of X, Sucursal de Macau e uma declaração por si assinada segundo a qual expressamente autorizava a Requerente a preencher os elementos que estivessem em falta, in casu, a data da emissão do cheque e a quantia em dívida, em caso de incumprimento das obrigações assumidas;
k) Por outro lado, em garantia de todas as importâncias que a Requerida deva ou venha a dever por via dos Contratos referidos supra, o Administrador E:
• outorgou uma garantia, datada de 03 de Março de 2016, pela qual se constituiu fiador, solidariamente responsável e principal pagador perante a Requerente, relativamente a todas as importâncias que a Requerida deva ou venha a dever por via dos Contratos referidos supra desde logo renunciando ao benefício da excussão prévia, tudo como consta do documento junto a fls. 76 e 77 que aqui se dá por integralmente reproduzido;
• entregou à Requerente o cheque nº HF344346, por si subscrito, sacado sobre o Bank of China, Sucursal de Macau, tendo assinado o correspondente pacto de preenchimento;
• outorgou uma declaração de compromisso unilateral, datada de 08 de Abril de 2016 (doravante, a “Declaração de Compromisso”), onde veio reconhecer a dívida para com a Requerente, que, à data, ascendia a HKD275.000.000,00, comprometendo-se a, no prazo de 6 meses a contar da data desta, alienar, transferir e/ou ceder os direitos de que era titular sobre vários imóveis, todos sitos em Macau e devidamente identificados na lista aí anexa e a depositar o produto líquido recebido de tais operações a favor da Requerente, mais se comprometendo a pagar em dinheiro a diferença entre o produto recebido e a dívida tudo conforme consta do documento de fls. 80 a 84 e aqui se dá por integralmente reproduzido;
l) Em 03 de Março de 2016, a Requerente, previamente à emissão da Declaração de Compromisso, extraiu informações prediais referentes aos Imóveis, verificou a sua situação jurídica e confirmou os direitos que o Administrador da Requerida E detinha sobre os mesmos conforme cópias das informações prediais, que se juntam de fls. 85 a 182 e aqui se dão por integralmente reproduzidas;
m) Nos termos do Contrato referido em e), a Requerida utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente e foi efectuando pagamentos parciais ao longo da relação; todavia, estão ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HKD112.000.000,00 (cento e doze milhões de dólares de Hong Kong), conforme as cópias dos avisos de saque juntos a fls. 183 a 258 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, a seguir descriminados:
Aviso de
saque nº
Quantia mutuada
em dívida
Data de emissão
CMK006628
HKD10.000.000,00
07-07-2016
CMK006724+1
HKD5.000.000,00
07-07-2016
CMK006726
HKD10.000.000,00
08-07-2016
CMK006727
HKD12.000.000,00
08-07-2016
CMK006630
HKD10.000.000,00
09-07-2016
CMK006914
HKD10.000.000,00
01-08-2016
CMK007020
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007119
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007025
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007027
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007029
HKD5.000.000,00
11-08-2016
CMK007216
HKD5.000.000,00
12-08-2016
CMK007030
HKD5.000.000,00
13-08-2016
CMK007217
HKD5.000.000,00
14-08-2016
CMK007031
HKD5.000.000,00
16-08-2016
n) As quantias mutuadas acima descritas correspondem aos valores das fichas de jogo, não negociáveis, que a Requerida sacou nos dias referidos para serem utilizadas por esta ou pelos seus clientes nos casinos da Requerente, constando de cada um dos avisos de saque o valor, o recibo de entrega das fichas e o respectivo prazo de pagamento das quantias assim mutuadas;
o) Em Setembro de 2016 a Requerida deixou de efectuar pagamentos para liquidação das quantias em dívida;
p) A Requerente realizou várias reuniões com os representantes da Requerida e garantes da dívida, ou seja, D e E, para tentar encontrar uma solução amigável, sem que, todavia, tenham as partes logrado obter um plano de pagamento;
q) Subsequentemente, a Requerente enviou várias missivas à Requerida exigindo o cumprimento pontual e integral das obrigações assumidas por esta, que infra melhor se descrevem;
r) No dia 08 de Setembro de 2016, a Requerente enviou uma carta de interpelação à Requerida, entregue e recebida em mãos no mesmo dia, denominada Plano de Reembolso (em inglês, “Repayment Plan”) e relativa às dívidas assumidas nos termos do Contrato referido em e), nos termos da qual a informa sobre o valor global em dívida (HKD112.000.000,00), faz cessar as linhas de crédito concedidas e exige o seu pagamento, bem como, concede prazo até 09 de Setembro de 2016 para a conclusão de quaisquer negociações entre as partes, sob pena da ora Requerente levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito, tudo conforme consta de fls. 261 e 262 e aqui se dá por integralmente reproduzido;
s) A Requerida nada disse sobre o assunto;
t) Pelo que, nos dias 12, 13 e 14 de Setembro de 2016, a Requerente remeteu, por intermédio da sua mandatária constituída, cartas de interpelação à Requerida, aos garantes, ou seja, D e E e à Sociedade Promoção de Jogos B Limitada, com conhecimento entre todos, informando-os do incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, do montante em dívida e exigindo pagamento integral do mesmo no prazo máximo aí fixado, sob pena de levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito conforme decorre das cópias das cartas, cujas cópias se juntam a fls. 263 a 277 e aqui se dão por integralmente reproduzidas;
u) A acrescer às missivas já mencionadas, a Requerente interpelou o mesmo E, por carta datada de 09 de Setembro de 2016, pela via da qual requereu esclarecimentos no que concerne aos Imóveis e quanto às transacções que este, ao arrepio do acordado com aquela, efectuou sobre os mesmos, sem conhecimento ou autorização da Requerente, tendo-lhe concedido o prazo máximo de 5 dias para depositar o produto líquido recebido, sob pena de esta levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito, conforme consta da cópia da mesma junta a fls. 288 a 295 e aqui se dá por integralmente reproduzida;
v) Na sequência desta missiva, a Requerida e E nada disseram;
w) A Requerente não logrou obter qualquer pagamento, pelo que:
• a 17 de Setembro de 2016 preencheu a data de emissão e o valor do cheque emitido pelo Administrador D, no montante correspondente ao capital em dívida naquela data de HKD112.000.000,00, sendo que, no dia 20 de Setembro de 2016 apresentou-o a pagamento junto do Banco X Bank Limited, tendo o mesmo sido devolvido pela instituição financeira sacada com a menção de que a devolução se ficou a dever a “Insuficiência de Fundos” conforme resulta das cópias do cheque e do debit advice emitido, juntas a fls. 296 e 297 que aqui se dão por integralmente reproduzidas; e,
• a 21 de Setembro de 2016, preencheu a data de emissão e o valor do cheque emitido por E nos termos acordados na Garantia e respectivo pacto de preenchimento e apresentou-o a pagamento, junto do Banco X Bank Limited, no valor total de HKD312.000.000,00, no qual se inclui a dívida da Requerida, no valor de HKD112.000.000,00;
x) Cheque esse que foi, no dia 22 de Setembro de 2016, devolvido pela instituição financeira sacada com a menção “Insuficiência de Fundos”, conforme resulta da cópia do cheque junta a fls. 298 e 299;
y) Por outro lado, a Requerente preencheu e apresentou a pagamento as seguintes livranças;
• uma subscrita pela Requerida e avalizada pelo administrador e garante D, no valor de HKD113.512.000,00, apresentada a pagamento no dia 29 de Setembro de 2016, tendo sido lavrado o competente instrumento de protesto em 07 de Outubro de 2016; e,
• uma subscrita por E, garante da Requerida, no valor total de HKD317.819.132,00 (no qual se incluí os montantes em dívida de HKD113.512.000,00 e de HKD355.808,00), apresentada a pagamento no dia 28 de Setembro de 2016, tendo sido lavrado o competente instrumento de protesto em 07 de Outubro de 2016;
z) De acordo com a Cláusula 3.2 do Contrato referido em e), a Requerida, durante o período contratual, por cada mesa de jogo de que dispõe no Clube VIP “F” estabelecido dentro dos casinos da Requerente deve ter um volume médio de negócios mensal de HKD300 milhões durante três meses e ao mesmo tempo promete que o volume de negócios médio a cada três meses deve chegar a 33 vezes do montante de crédito levantado;
aa) No mês de Agosto de 2016, a G disse formalmente à Requerente que no início de Setembro do mesmo ano ia encerrar o clube VIP estabelecido dentro do Casino A pertencente à Requerente;
bb) Depois disso, a Requerente e a G continuaram a manter uma relação de cooperação amigável e positiva, coordenando juntos os trabalhos relacionados com o encerramento da sala VIP no Casino A;
cc) Por outro lado, a Requerente e a Requerida também mantinham uma relação amigável e positiva de cooperação;
dd) A Requerida nunca teve a intenção de encerrar a sala VIP estabelecida no casino C;
ee) Durante o período de preparação para o encerramento da sala VIP da G no Casino A, a Requerente, a Requerida e a “G” ainda negociavam amigávelmente sobre a actividade tripartida e o plano viável para o reembolso em relação ao Contrato de concessão de crédito pelo promotor celebrado entre a Requerente e a G;
ff) No início de Setembro de 2016, sem que tivesse qualquer notícia prévia, a Requerente de repente encerrou unilateralmente a sala VIP que a Requerida explorava dentro do Casino C;
gg) A Requerente não emitiu à Requerida qualquer notificação prévia por escrito segundo a Cláusula 23.ª n.º 3 do Contrato referido em d);
hh) A referida conduta da Requerente determinou à cessação imediata da actividade de promoção de jogos do clube VIP que a Requerida estabeleceu dentro do Casino C, fazendo com que esta nunca mais pudesse gerar receitas na referida sala VIP;
ii) A Requerida no início de 2007 começou a exercer a actividade de promoção de jogos junto da Requerente e sempre mantiveram uma parceria amigável e positiva;
jj) Até ao presente, a Requerida tem títulos de dívida assinados pelos seus clientes no valor de HKD354.840.000,00.
kk) Em 14.10.2016 a ora Requerente instaurou acção executiva contra a Requerida e D para cobrança da dívida a que se reportam estes autos.
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III – Fundamentação
Da questão prévia
A Requerida suscitou nas contra-alegações a extemporaneidade da apresentação da motivação por parte da Requerente.
Na sua óptica, tendo a Requerente notificado a admissão do recurso por si interposto em 22/03/2017 e o carácter urgente do processo de falência, o prazo de 30 dias para apresentação da motivação do recurso terminou em 24/04/2017.
Contudo, a Requerente só apresentou a motivação do recurso em 02/05/2017, pelo que o presente recurso deveria ser julgado deserto por falta de motivação.
Quid iuris?
No caso em apreço, a Requerente impugnou a decisão da matéria de facto com fundamento na prova gravada e requereu cópia da gravação para o efeito (fls. 939 autos).
Assim, aplica-se o disposto do nº 6 do artº 613º do CPC nos termos do qual “Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, são acrescidos de 10 dias os prazos referidos nos números anteriores”.
Face ao expendido e sem necessidade de demais delongas, é de julgar improcedente a suscitada excepção.
1. Da impugnação da matéria de facto
Vem a Requerente impugnar a factualidade vertida nas als. aa), bb), cc), dd), ee), ff), gg) e hh) da decisão da matéria de facto, a saber:
aa)
“No mês de Agosto de 2016, a G disse formalmente à Requerente que no início de Setembro do mesmo ano ia encerrar o clube VIP estabelecido dentro do Casino A pertencente à Requerente.”
bb)
“Depois disso, a Requerente e a G continuaram a manter uma relação de cooperação amigável e positiva, coordenando juntos os trabalhos relacionados com o encerramento da sala VIP no Casino A.”
cc)
“Por outro lado, a Requerente e a Requerida também mantinham uma relação amigável e positiva de cooperação.”
dd)
“A Requerida nunca teve a intenção de encerrar a sala VIP estabelecida no casino C.”
ee)
“Durante o período de preparação para o encerramento da sala VIP da G no Casino A, a Requerente, a Requerida e a “G” ainda negociavam amigávelmente sobre a actividade tripartida e o plano viável para o reembolso em relação ao Contrato de concessão de crédito pelo promotor celebrado entre a Requerente e a G.”
ff)
“No início de Setembro de 2016, sem que tivesse qualquer notícia prévia, a Requerente de repente encerrou unilateralmente a sala VIP que a Requerida explorava dentro do Casino C.”
gg)
“A Requerente não emitiu à Requerida qualquer notificação prévia por escrito segundo a Cláusula 23.ª n.º 3 do Contrato referido em d).”
hh)
“A referida conduta da Requerente determinou à cessação imediata da actividade de promoção de jogos do clube VIP que a Requerida estabeleceu dentro do Casino C, fazendo com que esta nunca mais pudesse gerar receitas na referida sala VIP”
Além disso, entende que deveria ter dado como provado os factos constantes do artº 43º da petição inicial, no que diz respeito ao “potencial desvio de fundos, bens e dinheiros, susceptíveis de pagar a dívida, para fora de Macau e a incapacidade da Recorrida em solver as suas dívidas”.
Cumpre agora decidir.
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Deste modo, “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação” (Ac. do STJ de 21/01/2003, in www.dgsi.pt)
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...).” (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.)
Ou seja,
Uma coisa é não agradar à Requerente o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é detectarem-se no processo de formação da convicção do Tribunal a quo erros claros de julgamento, incluindo as eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Voltamos então para o caso concreto.
Os factos vertidos nas als. aa) e bb) não dizem respeito à Requerida, pelo que são irrelevantes para o mérito da causa, o que torna-se inútil a sua impugnação.
Nesta conformidade, não é apreciado o recurso nesta parte.
Quanto aos factos constantes nas als. cc) e ee), entende a Requerente que deveria ter o Tribunal a quo qualificado que as relações amigáveis e de cooperação foram mantidas entre as partes apenas com o objectivo claro de se obter o ressarcimento devido à ela.
Para a Requerente, a redacção adoptada faz induzir ou pressupor pela existência de uma relação comercial “saudável” entre as partes, que, na verdade, já não existia.
Salvo o devido respeito, também não se verifica qual a importância desta impugnação para efeitos da declaração de falência da Requerida.
Mesmo que este Tribunal alterasse a factualidade fática nos termos requeridos pela Requerente, nada contribuiria para a decisão do mérito.
Aliás, foi empregado o verbo no pretérito imperfeito (“mantinham”), pelo que a redacção em causa também não implica ou significa que a relação entre a Requerente e a Requerida continua ser amigável.
No que respeita aos factos constantes das als. dd), ff), gg) e hh), a Requerente defende que os mesmos deveriam ser dados como não provados, já que:
- o encerramento da sala de VIP no A foi publicamente anunciado pelo grupo F no dia 13/09/2016;
- ela, ora Requerente, apenas suspendeu as operações nas mesmas de jogo da sala de VIP em causa e não a encerrou unilateralmente; e
- não era contratualmente exigido o pré-aviso.
Adiantamos que não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, não é de aceitar a posição da Requerente no sentido de que o aviso previsto no nº 3 da cláusula 23ª do contrato assinalado entre ela e a Requerida apenas diz respeito a um aviso escrito, sem necessidade de qualquer antecedência.
É certo que no contrato não tem o adjectivo “prévio” nem prevê o prazo de antecedência de aviso, mas tendo em conta o facto de se tratar dum aviso para a resolução unilateral do contrato, é logica e correcta interpretar que o aviso nele previsto tem de ser prévio.
A Requerente está a brincar com as palavras ao dizer que se limitou a suspender as operações nas mesas de jogo da sala de VIP em que a Requerida explorava e não a encerrou.
Ora, uma sala de VIP de jogo que deixa de poder fazer as operações devidas, equivale o seu encerramento, visto que nela não se pode realizar qualquer actividade de jogo com vista a obter rendimentos.
Foi a Requerente que, como ela própria admite, “suspendeu as operações nas mesas de jogo na sala de VIP” no dia 10/09/2016, e depois é que o grupo F anunciou publicamente o encerramento da referida sala de VIP no dia 13/09/2016.
Em termos cronológicos, o anúncio público do encerramento da sala de VIP por parte do grupo F é posterior à conduta da “suspensão de actividade” da Requerente, pelo que nada a censurar a convicção do Tribunal a quo no sentido de que o encerramento da sala de VIP resulta do acto unilateral da Requerente.
Por fim, em relação aos factos não provados constantes do artº 43º da petição inicial, no que diz respeito ao “potencial desvio de fundos, bens e dinheiros, susceptíveis de pagar a dívida, para fora de Macau e a incapacidade da Recorrida em solver as suas dívidas”, cumpre-nos dizer que o grupo em que a Requerida pertence se encontra a expandir a sua actividade fora de Macau e reduzir o seu negócio em Macau não significa nem implica necessariamente que este grupo pretende desviar os fundos, bens e dinheiro com vista a fugir o pagamento das dívidas, pois, pode ser simplesmente uma estratégia de actividade negocial por parte do grupo.
Aliás, mesmo na tese da própria Requerente, ela e a Requerida mantinham as relações amigáveis e de cooperação com o objectivo de se obter o ressarcimento devido à ela.
Assim sendo, não se compreende como é que possível exigir o Tribunal com base simplesmente nas notícias das imprensas dar comos provados os factos em causa.
Ora, segundo a experiência comum, se alguém pretende desviar os fundos, bens e dinheiros com vista a fugir o pagamento das dívidas, o faz secretamente e não publicamente.
2. Do mérito da causa
A) Do ónus da prova:
Para a Requerente, a não junção da contabilidade organizada por parte da Requerida implica a inversão do ónus da prova quanto aos requisitos da falência nos termos do nº 2 do artº 337º do C.C.
Não lhe assiste razão
Antes de mais, a contabilidade da Requerida não constitui a prova única da sua falência, daí que não se pode dizer existir uma impossibilidade da prova para efeitos da inversão do ónus da prova.
Improcede portanto este argumento do recurso.
B) Dos requisitos da falência:
Não tendo provado os requisitos da falência e na linha da inexistência da situação da inversão do ónus da prova prevista no nº 2 do artº 337º do C.C., o recurso não deixará de se julgar improvido nesta parte.
C) Do abuso de direito:
Nada a pronunciar-se uma vez que o Tribunal a quo não considerou a conduta da Requerente como abuso de direito.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela Requerente.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 30 de Novembro de 2017.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
17
611/2017