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Processo n.º 606/2017 Data do acórdão: 2018-2-1 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– violação de leges artis no julgamento de factos
– relatórios médico-legais
S U M Á R I O

O facto de o tribunal sentenciador não ter atendido, diversamente do postulado pelas leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, ao teor de dois relatórios médico-legais rectificadores de dois relatórios médico-legais anteriormente emitidos nos autos, para se esclarecer de uma alegada dúvida acerca do teor destes, enquanto a dúvida já tenha sido afastada no conteúdo daqueles, faz padecer a sua decisão final sobre a causa do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 606/2017
(Autos de recurso penal)
  Recorrentes (demandantes civis): A
  Recorrida (demandada civil): B., Ltd.




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com a decisão cível feita no acórdão final proferido pelo Tribunal Colectivo do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base no Processo n.o CR2-15-0182-PCC (com pedidos cíveis de indemnização aí enxertados por eles próprios inclusivamente contra a sociedade comercial denominada “B., Ltd.” como seguradora do ciclomotor então conduzido pelo arguido C desse processo), vieram os dois lesados e demandantes civis chamados A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir que se passasse a julgar totalmente procedentes os seus pedidos cíveis de indemnização, imputando, para o efeito, à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova (previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP)), pois, segundo alegaram eles na respectiva motivação una de recurso, ora constante de fls. 412 a 417 dos presente autos correspondentes, esse Tribunal sentenciador não teria considerado, para efeitos de formação da sua convicção sobre a matéria fáctica sob sua investigação, o teor dos dois relatórios médico-legais apresentados a fls. 339 e 340 dos autos pelo Centro Hospitalar Conde de São Januário dos Serviços de Saúde de Macau, rectificadores dos relatórios médico-legais então apresentados a fls. 296 e 297 pela mesma entidade mas com erros na parte referente aos nomes dos dois doentes lesados (pois tinham sido aí trocados os nomes dos lesados), relatórios rectificadores atrás referidos que dariam para afastar a dúvida invocada pelo mesmo Tribunal sentenciador acerca do teor dos ditos dois relatórios com erros sobre os nomes dos lesados.
Aos recursos respondeu a seguradora demandada a fls. 423 a 429 no sentido de improcedência dos mesmos, por entender, em suma, que os dois recorrentes se limitaram a pôr em causa a livre apreciação das provas feita sem erro algum pelo Tribunal recorrido.
Subidos os autos, entendeu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista feita a fl. 488, que não havia lugar à emissão de parecer, por estar em causa apenas a parte cível.
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos elementos dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão dos recursos:
1. O Tribunal Colectivo a quo fundamentou a sua livre convicção sobre os factos civis controvertidos sob sua investigação nos seguintes termos essenciais (cfr. o teor do acórdão recorrido, a fls. 396 a 405v, que se dá por aqui integralmente reproduzido):
– a propósito do período de convalescença do 1.o lesado (Michael Vong), o teor do relatório médico-legal de fl. 296 não condiz manifestamente com o teor dos relatórios médico-legais de fl. 59 nem com o teor das lesões referidas a fls. 17 e 232, pelo que há indícios de existência de erro no teor do relatório de fl. 296, erro esse que não pode ser determinado concretamente, por falta de outros elementos de prova, daí que perante a dúvida sobre o conteúdo do relatório de fl. 296 só se pode aceitar o resultado da perícia feita no relatório de fl. 59 no sentido de considerar que o período de convalescença do 1.o lesado foi de três dias;
– a propósito do período de convalescença do 2.o lesado (A), o teor do relatório médico-legal de fl. 297 não condiz manifestamente com o teor dos relatórios médico-legais de fl. 58 nem com o teor das lesões referidas a fl. 12, pelo que há indícios de existência de erro no teor do relatório de fl. 297, erro esse que não pode ser determinado concretamente, por falta de outros elementos de prova, daí que só se pode aceitar o resultado da perícia feita no relatório de fl. 58 no sentido de considerar que o período de convalescença do 2.o lesado foi de 15 a 30 dias.
2. Os dois demandantes civis, depois de notificados então do teor dos relatórios médico-legais apresentados a fls. 296 e 297 pelo Centro Hospitalar Conde de São Januário dos Serviços de Saúde de Macau, chegaram a pedir, a fls. 306 a 306v, a rectificação dos nomes deles próprios escritos erroneamente nesses relatórios, ou, a justificação do teor desses relatórios pela entidade autora dos mesmos.
3. Na sequência disso, foram ulteriormente apresentados os relatórios médico-legais de fls. 339 e 340, pela mesma entidade hospitalar antes da realização da audiência de julgamento, cujo teor é idêntico ao dos relatórios de fls. 296 e 297, mas com rectificação feita dos nomes dos dois lesados (e também da data de ocorrência do acidente de viação em causa como dita por cada um dos dois lesados).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que este Tribunal de Segunda Instância (TSI), como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
Na sua motivação una dos recursos, os dois lesados e demandantes civis imputaram à decisão cível recorrida, o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
Ante os elementos coligidos dos autos já referidos na parte II do presente acórdão de recurso, vê-se nitidamente que o Tribunal sentenciador não atendeu, diversamente do postulado pelas leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, ao teor dos dois relatórios médico-legais de fls. 339 e 340, materialmente rectificadores dos relatórios de fls. 296 e 297 na parte principalmente referente aos nomes dos dois lesados (sendo certo que a rectificação da data do acidente de viação como dita pelos lesados não pode fazer parte da perícia médico-legal propriamente dita), de maneira que acabou por invocar dúvida sobre o teor desses dois relatórios (em si errados) para sustentar a sua decisão de julgamento de factos, enquanto tal dúvida já tinha sido objecto de afastamento, antes da realização da audiência de julgamento.
Procedem, pois, os recursos, havendo que determinar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância, por um outro Tribunal Colectivo, sobre todo o objecto da causa civil (posto que o erro notório na apreciação da prova acima constatado comprometeu o resultado do julgamento de facto então feito sobre grande parte dos factos alegados nos pedidos cíveis enxertados, pelo que é de julgar de novo sobre todo o objecto probando civil, a fim de evitar eventuais contradições lógicas na nova decisão a emitir).
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar procedentes os recursos, reenviando todo o objecto cível do processo para novo julgamento.
Custas dos recursos pela seguradora recorrida.
Macau, Primeiro de Fevereiro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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