打印全文
Processo nº 1081/2017 Data: 14.12.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “auxílio”.
(art. 14°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004)
Vantagem patrimonial.
Tentativa.
Pena.



SUMÁRIO

  Verificando-se que o arguido não chegou a receber a vantagem que lhe foi prometida para transportar um imigrante ilegal para Macau, deve o mesmo ser punido como autor de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004, (e não pelo de “auxílio” do n.° 2, na forma tentada), dado que a pena (do n.° 1), sendo mais severa, assegura uma protecção mais perfeita.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 1081/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a final, a ser condenado pela prática, como autor e na forma consumada, de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 6 anos de prisão; (cfr., fls. 98 a 101 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor de 1 crime do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, considerando também excessiva a pena aplicada; (cfr., fls. 113 a 117-v).

*

Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 119 a 121-v).

*

Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.114 a 117v dos autos, o recorrente assacou, ao douto Acórdão sob sindicância, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a severidade excessiva da pena aplicada pelo douto Tribunal a quo, arrogando a existência das circunstâncias consagradas nas alíneas d) do n.°1 do art.66° e d) do n.°1 do art.65° do CPM.
*
No vertente caso, o Tribunal a quo deu como provado que «嫌犯著B在同日晚上11時50分在橫琴橋附近的某海邊等候,承諾安排其乘船到澳門,人民幣2,000元的費用待到達澳門岸邊時才支付。» E na terceira parte do Acórdão recorrido (三﹑判案理由), apontou expressamente que «儘管證人B表示仍未向嫌犯支付有關的偷渡費,但考慮到第6/2004號法律第14條第2款所保障的並不是財產法益,其所規範的是偷渡行為本身,因此,只要協助偷渡屬有償的,不論嫌犯收取款項與否,均不影響犯罪的既遂性。»
As duas passagens supra citadas patenteiam que o Tribunal a quo tem perfeito conhecimento e convicção de o recorrente/arguido não chegar a receber a quantia de ¥2,000.00 acordada entre ele e o indivíduo B que foi transportado, pois a razão determinante da condenação consiste em juízo de «不論嫌犯收取款項與否,均不影響犯罪的既遂性».
Proclama a jurisprudência autorizada (a título exemplificativo, cfr. Acórdão do TUI no processo n.°12/2014): «Para que se verifique o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é necessário que a matéria de facto provada se apresente insuficiente, incompleta para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada, ou porque impede a decisão de direito ou porque sem ela não é possível chegar-se à conclusão de direito encontrada.»
Isto é, «Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos artigos 339.° e 340.° do Código de Processo Penal.» (Acórdão do TUI no Processo n.°9/2015)
Nos arestos tirados nos Processos n.°453/2013 e n.°516/2017, o Venerando TSI tomou posição por unanimidade, no sentido de a condenação no crime de auxílio qualificado p.p. pelo n.°2 do art.14° da Lei n.°6/2004 depende imprescindivelmente do pagamento efectivo de qualquer recompensa, não bastando uma promessa ou um acordo de pagá-la.
Com todo o respeito pela douta interpretação do sobredito n.°2 processada pelo Tribunal a quo, sufragamos a referida posição do Venerando TSI em virtude de, segundo nos parece, esta se mostrar mais favorável ao arguido e mais conforme com o significado literal.
À luz da racionalidade humana e das regras de experiência, podemos extrair que qualquer pessoa que forneça auxílio para a imigração ilegal não é altruísta ou aventureiro, mas visa sempre tirar deste auxílio algum benefício patrimonial ou imaterial, portanto, a diferença e fronteira entre o n.°1 e o n.°2 deste art.14° deve consistir em existir ou não o pagamento efectivo da recompensa previamente prometida ou acordada.
Nesta linha de vista e em observância às brilhantes jurisprudências supra citadas inclinamos a entender que o aresto em escrutínio não eiva da assacada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não haver lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada, mas o erro de subsunção – o recorrente devia ser condenado na prática, na autoria material e de forma consumada, um crime de auxílio simples p.p. pelo n.°1 do art.14° da Lei n.°6/2004.
Tudo isto implica o provimento do recurso em apreço, devendo o Venerando TSI operar a convolação e a nova graduação da pena.
(…)”; (cfr., fls. 130 a 131).

*

Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 99 a 99-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor e na forma consumada, de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 6 anos de prisão.

É de opinião que incorreu o Tribunal a quo no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pugnando por uma alteração da qualificação jurídica da sua conduta, no sentido de ser condenado como autor de 1 crime do art. 14°, n.° 1 – e não art. 14°, n.° 2 – da Lei n.° 6/2004, considerando também excessiva a pena aplicada.

Vejamos, começando-se pela assacada insuficiência.

–– Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:

O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 30.03.2017, Proc. n.° 169/2017, de 13.07.2017, Proc. n.° 494/2017 e de 12.10.2017, Proc. n.° 814/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

Como decidiu o T.R. de Coimbra:

“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).

E, como recentemente também considerou o T.R. de Évora:

“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).

E, no caso nenhuma “insuficiência” existe, pois que o Tribunal investigou e emitiu pronúncia sobre (toda) a “matéria objecto do processo”, não apresentando esta qualquer lacuna que inviabilize uma adequada qualificação jurídico-penal.

Continuemos.

–– Estatui o dito art. 14° da Lei n.° 6/2004 que:

“1. Quem dolosamente transportar ou promover o transporte, fornecer auxílio material ou por outra forma concorrer para a entrada na RAEM de outrem nas situações previstas no artigo 2.º, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 5 a 8 anos”.

In casu, resulta da factualidade dada como provada que acordado estava que o arguido iria receber RMB¥2.000,00 pela sua tarefa em transportar B (imigrante ilegal) para Macau.

Porém, surpreendido que foi pelas autoridades locais à sua chegada, acabou por não receber tal quantia.

E, então, evidente sendo que “consumado” não está o tipo de crime previsto no n.° 2 do art. 14° da Lei n.° 6/2004, quid iuris?

Deve o arguido ser punido como autor de 1 crime do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004, ou como autor de 1 crime do mesmo art. 14°, mas do n.° 2, na “forma tentada”?

Ora, a pena prevista no n.° 1 do art. 14° é a de 2 a 8 anos de prisão.

E no caso de em causa estar o n.° 2 do art. 14°, na forma tentada, especialmente atenuada é a pena aí prevista, e atento o estatuído no art. 67° do C.P.M., aplicável é a pena de 1 a 5 anos e 4 meses de prisão.

Perante as referidas molduras e sendo que a moldura do n.° 1 do art. 14° prevê sanção mais severa, mostra-se-nos pois que se deve optar por esta que assegura uma protecção mais perfeita; (cfr., nesse sentido, a declaração de voto anexa ao Ac. de 18.09.2003, Proc. n.° 158/2003, e, mais recentemente, o Ac. do Vdo T.U.I. de 12.02.2014, Proc. n.° 83/2013).

E, nesta conformidade, atenta a moldura de 2 a 8 anos de prisão, nenhum motivo havendo para se proceder a uma “atenuação especial da pena”, (cfr., art. 66° do C.P.M.), e atentos os critérios dos art°s 40° e 65° do mesmo código, cremos que adequada é a pena de 3 anos e 3 meses de prisão, havendo assim que se alterar a pena aplicada pelo T.J.B..

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ficando o arguido condenado como autor de 1 crime de “auxílio”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão.

Sem tributação.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 14 de Dezembro de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1081/2017 Pág. 14

Proc. 1081/2017 Pág. 13