打印全文
Processo nº 810/2017 Data: 23.11.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime(s) de “burla”.
Crime continuado.
Concurso real com crimes de falsificação.
Alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal.
“Caução económica”.



SUMÁRIO

1. O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

2. Atenta a factualidade provada, não obstante idêntico ser o “modus operandi”, (podendo-se assim falar de uma “conduta homogénea”), verifica-se, (desde já), um “distanciamento temporal” de vários meses entre as condutas cuja unificação se pretende, inviável sendo, (também assim), considerar-se a existência de uma “única resolução” criminosa, assim como de uma “solicitação exterior” que diminua, de forma considerável, à culpa da arguida, afastada tendo que estar desta forma a consideração de que a sua conduta integra uma continuação criminosa.

3. Estando a arguida condenada, (e visto estando que se confirmou o decidido pelo T.J.B.), tendo presente o montante da indemnização, (MOP$1.136.090,00), e provado estando que não lhe é conhecido o “exercício de nenhuma profissão remunerada”, adequado é que se considere haver “fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização”; (cfr., art. 211°, n.° 2 do C.P.P.M.), para efeitos de lhe ser determinado a prestação de uma caução económica.
Na caução económica, como medida de garantia patrimonial, a adequação e proporcionalidade do montante a fixar deve ser aferida em função do valor da quantia a garantir.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo



Processo nº 810/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como autora da prática de 2 crimes de “burla (qualificada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, e a pagar ao ofendido uma indemnização total de MOP$1.136.090,00; (cfr., fls. 439 a 448-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do assim decidido recorreu a arguida para, em síntese, pedir que a sua conduta seja considerada como a prática de “1 só crime, na forma continuada”, assim como a “redução e suspensão da pena”; (cfr., fls. 476 a 483).

*

Remetidos os autos a este T.S.I., com ele subiu outro recurso pelo assistente interposto de uma decisão pelo Mmo Juiz a quo proferida e que indeferiu um pedido (seu) no sentido de à arguida ser determinada a prestação de uma “caução económica no montante de MOP$1.136.090,00”; (cfr., fls. 521 a 527).

*

Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência dos recursos; (cfr., fls. 528 a 532 e 535 a 536-v).

*

Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“1. Do recurso interposto pela arguida
Na Motivação de fls.476 a 483 dos autos, a recorrente assacou ao douto Acórdão recorrido a ofensa das disposições no n.°2 do art.29° e no art. 73° do CPM, bem como no art.48° deste Código por não lhe conceder a suspensão da execução da pena a aplicar em regime de crime continuado, e ainda o erro nos pressupostos de facto da graduação da pena.
1.1- Tomando como ponto de partida o preceito no n.°2 do art.29° do CPM, o Venerando TUI assevera reiteradamente: «O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.» Ou seja, o fundamento do crime continuado radica na considerável diminuição da culpa do agente, determinada por uma actuação no quadro de uma mesma solicitação exterior.
Adverte ainda, e bem, que «Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior.»
Em esteira das doutrinas e jurisprudências supra citadas, e tomando em conta os 6° e 9° factos provados, sufragamos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre colega na Resposta (cfr. fls.528 a 532 dos autos), sobretudo as seguintes conclusões: «3. 其次,上訴人在2份 “承諾股票買賣合約” 偽造了XXX大律師印章,2份 “承諾股票買賣合約” 屬不同內容和價額和數目的股票,其所面對的是2個獨立的文件,存在不同的內容。也就是說,上訴人必須從中克服同樣的困難才可獲得輔助人信任,其犯罪決意並不是因某個相同的外在情況的存在而誘發,也就是根本不存在一種誘發、便利、促使或驅使接二連三的連續犯罪的外在客觀因素» e «此外,上訴人每製作一份文件,即具備一獨立故意犯罪,面對著確鑿事實整體,顯然不存在誘發實行犯罪且可相當減輕上訴人罪過同一外在情況。»
O que torna concludente que não se verificam in casu os pressupostos do crime continuado, e a recorrente cometeu, como autora material, na forma consumada e em concurso real, 2 crimes de burla de valor consideravelmente elevado p.p. pelo disposto no n.°1 e na alínea a) do n.°4 do art.211° do CPM, portanto, é irremediavelmente infundada o argumento da violação das disposições no n.°2 do art.29° e no art.73° do CPM.
1.2- Ora, o decaimento do argumento (da recorrente) acima analisado determina, só por si e suficientemente, a insubsistência da pretensão de suspensão da execução, visto que a pena única resultante do cúmulo jurídico é indubitavelmente superior a 3 anos e, deste modo, nem sequer existe o pressuposto formal consignado no n.°1 do art.48° do CPM.
Bem os factos provados demonstram indisputavelmente que a recorrente agiu com dolo directo e com uso de documentos fictícios, causou ao ofendido dado económico de valor consideravelmente elevado, nunca manifestou arrependimento nem espontaneidade de reparar o prejuízo do ofendido. – Tudo isto mostra seguramente que a mera censura do facto e a ameaça da prisão não realizam as finalidades da punição.
Em síntese, não se descortina in casu nem o pressuposto formal nem o substancial da suspensão da execução da pena. Daqui decorre que o Acórdão em causa não contende com o art.48° do CPM.
1.3- É verdade que ao fundamentar a determinação da pena concreta a aplicar, o tribunal mencionou que a recorrente não era primária (嫌犯非為初犯). Com efeito, os certificados de registo criminal da recorrente constatam que ela foi já condenada na prática dum crime de burla no Processo n.°CR3-13-0389-PCS (docs. de fls.928 a 932 dos autos).
À luz da moldura penal consagrada no n.°4 do art.211° do CPM, e considerando o grau da ilicitude, a intensidade do dolo, a gravidade da consequência e a falta de arrependimento, entendemos que as duas penas parcelares e a única derivada no cúmulo jurídico são benevolentes, não ultrapassam a medida da culpa.
Nesta linha de ponderação, temos por inquestionável que a graduação da pena pelo Tribunal a quo não enferma do erro nos pressupostos de facto. Bem ou mal, o que é certo é que a menção de que a recorrente não era primária (嫌犯非為初犯) não desencadeou indevido agravamento da pena imposta à recorrente.
*
2. Do recurso interposto pelo ofendido
Na sua Motivação de fls.521 a 527 dos autos, o ofendido imputou a violação do preceito no art.211° do CPP ao douto despacho que indeferiu o Requerimento pela qual ele exigiu a prestação da caução à arguida (vide. respectivamente fls.462 a 463 e fls.455 a 459 dos autos).
Sem necessidade de explicação desenvolvida, colhemos que as medidas de garantia patrimonial regulamentadas nos art.211° e 212° do CPP são da natureza cautelar, e cabe ao requerente destas medidas o respectivo ónus de prova da existência do «fundado receio» prescrito no art.211° do CPP, sob pena de ver o indeferimento do seu requerimento.
Importa ter presente que tal como advertem as doutrinas autorizadas no seio do processo civil, é necessário e imprescindível a existência de «fundado receio», não bastando preocupação sofisticada, insubsistente ou exarada, sem ser suficiente adivinha ou suposição subjectiva.
No caso sub judice, a leitura atenciosa do requerimento de fls.455 a 459 dos autos deixa-nos impressão de que o ofendido não apresentara provas passíveis de apreciação objectiva e capazes de demonstrarem, de forma convincente, a existência do «fundado receio».
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência de ambos os recursos”; (cfr., fls. 552 a 553-v).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o Colectivo a quo como “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 442 a 445, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..

Um, (o primeiro), da arguida, e o segundo, do assistente.

–– Mostra-se de se começar pelo da arguida.

Vejamos.

Pede a arguida que a sua conduta seja considerada como a prática de “1 só crime, na forma continuada”, pretendendo também a “redução e suspensão da pena”.

Porém, não cremos que tenha razão.

Nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

E como já tivemos oportunidade de consignar:

“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. da Rel. de Porto de 25.07.1986, in B.M.J. 358°-267, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de de 27.09.2012, Proc. n.° 681/2012, de 26.05.2016, Proc. n.° 1044/2015 e de 16.03.2017, Proc. n.° 867/2016).

Do mesmo modo, Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa”; (vd., “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).
“Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”.

Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre unidade e pluralidade de infracções, pressupõe o juízo de censurabilidade, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

No mesmo sentido, e em relação ao Código de 1886 afirmava já E. Correia que:

“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (cfr., “Direito Criminal”, Vol. 2, págs. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).

Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 26.05.2016, Proc. n.° 1044/2015, de 19.01.2017, Proc. n.° 870/2016 e de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017).

Também por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), voltou o Vdo T.U.I. a afirmar que:

“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.

No caso dos autos, e atenta a factualidade provada, não obstante idêntico ser o “modus operandi”, (podendo-se assim falar de uma “conduta homogénea”), verifica-se, (desde já), um “distanciamento temporal” de vários meses entre as condutas cuja unificação se pretende, inviável sendo, (também assim), considerar-se a existência de uma “única resolução” criminosa, assim como de uma “solicitação exterior” que diminua, de forma considerável, à culpa da arguida ora recorrente.

–– Quanto à pena, pouco há a dizer.

Com efeito, atenta a moldura penal prevista para os crimes pela recorrente cometidos – 2 a 10 anos de prisão – e ponderado o estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M., excessivas não são de considerar as “penas parcelares” de 2 anos e 9 meses de prisão, tão só a 9 meses do seu limite mínimo e a mais de 7 do seu máximo, e que até se apresenta benevolente.

O mesmo sucede com a “pena única” resultante do cúmulo jurídico, fixada em 3 anos e 9 meses de prisão, e 1 ano do mínimo e que também se apresenta benevolente.

Diz a recorrente que incorreu o Tribunal a quo em “erro” ao considerar não ser a mesma “primária” aquando da fixação das penas.

Como se referiu, face às respectivas molduras, e mesmo sem se atender a tal “circunstância”, motivos não há para se considerar excessivas as penas “parcelares” e “única”.

E, seja como for, também não há “erro”, bastando para assim concluir conferir o seu C.R.C. de fls. 429 a 435.

E, assim, sendo de se manter as penas parcelares e única, e sendo esta última de 3 anos e 9 meses de prisão, afastada está a aplicação do art. 48° para se ponderar numa eventual suspensão da sua execução.

–– Quanto ao “recurso do assistente”.

O mesmo, como se referiu, tem como objecto uma decisão no Mmo Juiz que indeferiu um pedido no sentido de a arguida prestar uma caução económica no valor de MOP$1.136.090,00.

E cremos que o decidido não é de manter.

Com efeito, nos termos do art. 211° do C.P.P.M.:

“1. Havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da pena pecuniária, da taxa de justiça, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com a Região Administrativa Especial de Macau relacionada com o crime, o Ministério Público requer que o arguido preste caução económica, em termos e sob modalidade a determinar pelo juiz.
2. Havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica, nos termos do número anterior.
3. A caução económica prestada a requerimento do Ministério Público aproveita também ao lesado.
4. A caução económica mantém-se distinta e autónoma relativamente à caução referida no artigo 182.º e subsiste até à decisão final absolutória ou até à extinção das obrigações.
5. Em caso de condenação são pagos pelo valor da caução económica, sucessivamente, a multa, a taxa de justiça, as custas do processo e a indemnização e outras obrigações civis”.

Pois bem, desde já, há que ter em conta que a prova que serve de fundamento à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial – como é o caso da “caução” agora requerida – é, normalmente, uma “prova indiciária”.

Atenta a situação dos autos, estando a arguida condenada nos termos que se deixaram explicitados, (e visto estando que se confirmou o decidido pelo T.J.B.), tendo presente o montante da indemnização, (MOP$1.136.090,00), e provado estando que não lhe é conhecido o “exercício de nenhuma profissão remunerada”, afigura-se-nos haver “fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização”; (cfr., art. 211°, n.° 2 do C.P.P.M.).

Por sua vez, e como recentemente decidiu a Rel. do Porto “Na caução económica, como medida de garantia patrimonial, a adequação e proporcionalidade do montante a fixar, deve ser aferida em função do valor da quantia a garantir”; (cfr., o Ac. de 13.09.2017, Proc. n.° 788/14).

Dest’arte, o recurso procede, devendo a arguida prestar a requerida caução económica de MOP$1.136.090,00 através de depósito à ordem nos autos.

*

–– Aqui chegados, uma última questão importa resolver.

Em sede de exame preliminar, e admitindo-se que a conduta da arguida podia integrar a prática, em concurso real, de outros dois crimes de “falsificação de documentos”, determinou-se a notificação de todos os sujeitos processuais para, querendo, sobre tal possibilidade se pronunciarem; (cfr., fls. 554).

Constatando-se que a matéria de facto dada como provada preenche (também) todos os elementos típicos objectivos e subjectivos para se declarar a arguida autora da prática de (mais) dois crimes de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 244°, n.° 1, al. c) do C.P.M., podendo este T.S.I. proceder a uma alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal operada pelo T.J.B., desde que previamente observado o contraditório, como no caso, sucedeu, imperativo é decidir-se em conformidade.

Na verdade, e como já decidiu este T.S.I.:

“No que toca aos crimes de “burla” e de “falsificação”, importa considerar que, são distintos (e autónomos entre si) os bens jurídicos tutelados pelas normas do artº 211º e 244º, visando proteger aquele o “património” e, este, a “fé pública do documento” ou a “verdade intrínseca do documento enquanto tal”, pelo que, preenchendo a conduta do arguido os elementos típicos de ambos os crimes, deve o mesmo ser condenado pela sua prática em concurso (real) de crimes”; (cfr., v.g., o Ac. de 05.06.2003, Proc. n.° 76/2003 e a doutrina e jurisprudência aí citada, e mais recentemente, de Ac. de 13.10.2011, Proc. n.° 534/2011).

Atento o estatuído no art. 399° do C.P.P.M., (proibição da reformatio in pejus), a supra decidida alteração não produz efeitos em matéria de pena.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar improcedente o recurso da arguida, alterando-se, oficiosamente a qualificação da sua conduta, julgando-se procedente o recurso do assistente.

Custas dos recursos pela arguida, com taxa de 6 UCs e 4 UCs respectivamente.

Honorários ao Exmo. Defensor da arguida no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 23 de Novembro de 2017

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa (Vencida quando à decisão da condenação de dois crimes de falsificação de documentos, por entender que esses crimes fossem instrumentais para o crime de burla e eram os mesmos de concurso aparente.)
Proc. 810/2017 Pág. 24

Proc. 810/2017 Pág. 1