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Processo n.º 375/2017
(Revisão de decisão judicial do exterior)

Data: 18 de Janeiro de 2018

ASSUNTOS:
- Requisitos necessários à revisão e confirmação de decisões do exterior de Macau.
- Competência exclusiva dos Tribunais de Macau no que toca às acções (só estas e não quaisquer decisões) relativas aos direitos dos bens imóveis localizados em Macau.
- Disposição mortis causa de bens imóveis situados em Macau, mediante testamento, que foi judicialmente homologado pelo High Court de HK.

SUMÁRIO:

I. Depende da verificação dos requisitos fixados pelo artigo 1200º do Código de Processo Civil (CPC) a revisão e confirmação de decisões proferidas por instâncias do exterior de Macau.
II. Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a determinadas decisões proferidas por instâncias do exterior de Macau satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
III. Quanto aos requisitos relativos à competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do nº1 do artigo 1200º do CPC, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
IV. É de rever e confirmar, por não colidir directamente com o disposto nos artigos 20º e 1200º/1-c) do CPC, a decisão proferida pelo High Court de Hong Kong que homologou um testamento lavrado em HK (por um não residente de Macau, casado em HK e sem regime de bens) à luz da legislação aí vigente, pelo qual o falecido dispunha do destino de 2 bens localizados em Macau, sendo um deles um imóvel aqui localizado.
V. Só relativamente às acções (e não qualquer decisão) relativas aos direitos reais sobre os bens localizados em Macau, o ordenamento jurídico macaense é que reclama a sua jurisdição de modo exclusivo, radicando a ratio da competência exclusiva na circunstância de o tribunal da situação do imóvel ser o que se encontra melhor apetrechado, atendendo à proximidade, para conhecer os elementos de facto, bem como as regras e os usos de Macau da situação normalmente aplicáveis, e de os litígios concernentes a direitos reais sobre imóveis envolverem frequentemente controvérsias que devem ser dirimidas mediante inspecções, averiguações e perícias a realizar no local.

O Relator,

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Fong Man Chong



Processo nº 375/2017
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data : 18/Janeiro/2018

Requerente : A Limited

Requerida : B
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    I – RELATÓRIO
    A Limited, sociedade comercial constituída em Hong Kong, com sede em XXXXXX, Hong Kong, vem, em 25/04/2017, intentar a presente ACÇÃO ESPECIAL DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA POR TRIBUNAL DO EXTERIOR DE MACAU contra B, viúva, residente em XXXXXX, Hong Kong, com os seguintes fundamentos:
1. Em 04/02/2016, em Hong Kong, faleceu C (adiante designado por “falecido”), no estado de casado com a R. (cfr. Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2).
2. O falecido deixou testamento, datado de 16/11/2011 (cfr. Doc. n.º 3), (adiante designado por “Testamento”).
3. Através do qual instituiu a R. como herdeira de todos os seus bens dos quais não tivesse feito deixa específica (cfr. Doc. n.º 3, parágrafo 6).
4. Também por meio do Testamento, o falecido nomeou a A. como executora ou testamenteira da sua herança (cfr. Doc. n.º 3, parágrafo 2).
5. Em 09/11/2016, o High Court de Hong Kong proferiu a decisão nº HCAG012253/2016 (Grant of Probate) (adiante a "Decisão Revidenda"), a qual se traduz na homologação sucessória do Testamento, que assim foi julgado válido e registado no referido Tribunal,
6. E por meio da qual foram concedidos poderes de administração de todos os bens que integram o acervo hereditário do falecido à A., na qualidade de única executora da heranças (cfr. Doc. n.º 3, folhas de rosto).
7. Do referido acervo fazem parte os seguintes bens localizados em Macau:
- Fracção autónoma designada por “T3/B-33”, correspondente ao 33º andar “T3/B-33”, para habitação, do prédio urbano denominado "Edf. XXXX", com entrada pela XXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (cfr. Doc. n.º 4 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) ; e
- Saldo da conta bancária nº 001-346196-0001, aberta sobre o D Corporation (Sucursal de Macau) (cfr. Doc. n.º 5 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
8. Os bens acima descritos não podem ser administrados pela A., conforme a última vontade do falecido consignada no Testamento, enquanto a Decisão Revidenda não tiver eficácia em Macau.
9. Impondo-se pois que a mesma aqui seja revista e confirmada, com vista à produção da plenitude dos seus efeitos relevantes na ordem jurídica local.
10. Não se levantam dúvidas sobre a autenticidade nem sobre a inteligibilidade da Decisão Revidenda.
11. A Decisão Revidenda transitou em julgado de acordo com as leis de Hong Kong,
12. E foi proferida pelo tribunal competente para o efeito, não tendo tal competência sido provocada em fraude à lei.
13. Do mesmo modo, a Decisão Revidenda não versa sobre matéria para a qual os Tribunais de Macau tivessem competência exclusiva.
14. A matéria objecto da Decisão Revidenda não foi em momento algum sujeita ao conhecimento ou decisão dos Tribunais de Macau, não se verificando, pois, excepção de litispendência ou caso julgado que contra aquela possa ser invocada.
15. Não se colocam, in casu, questões relativas à regularidade da citação ou à observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, pois que a Decisão Revidenda foi proferida após cumprimento dos trâmites previstos no Probate and Administration Ordinance de Hong Kong, o qual não impõe a citação de interessados previamente à emissão do Grant of Probate.
16. Finalmente, o conteúdo da Decisão Revidenda não conduz a resultado que seja incompatível com a ordem pública de Macau.
17. Face ao que vem de ser exposto, a Decisão Revidenda preenche todos os requisitos necessários à sua revisão e confirmação, conforme disposto no art. 1200º do Código de Processo Civil,
18. Sendo certo que, de acordo com a jurisprudência pacífica deste Douto Tribunal, deve presumir-se a verificação dos requisitos de confirmação consignados no nº 1, alíneas b), e) do referido artigo1.
    Concluindo, pede que seja julgada precedente a presente acção, confirmando-se a decisão revidenda a fim de esta poder produzir efeitos no ordenamento jurídico em Macau.
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    Citada a Ré (fls. 91), esta não deduziu oposição.
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    O Digno. Magistrado do Ministério Público junto deste TSI emitiu o parecer constante de fls.95 - cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais -, opinando pela confirmação parcial da decisão revidenda.
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    Foram colhidos os vistos legais.
    Cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

III - FACTOS
    Em face dos documentos juntos aos autos, considera-se assente a seguinte matéria fáctica com interesse para a decisão da causa:
    1. Em 04/02/2016, em Hong Kong, faleceu C (adiante designado por “falecido”), no estado de casado com a R. (cfr. Doc. n.º 1 e Doc. n.º 2).
    2. O falecido deixou testamento, datado de 16/11/2011 (cfr. Doc. n.º 3), (adiante designado por “Testamento”).
    3. Através do qual instituiu a R. como herdeira de todos os seus bens dos quais não tivesse feito deixa específica (cfr. Doc. n.º 3, parágrafo 6).
    4. Também por meio do Testamento, o falecido nomeou a A. como executora ou testamenteira da sua herança (cfr. Doc. n.º 3, parágrafo 2).
    5. Em 09/11/2016, o High Court de Hong Kong proferiu a decisão nº HCAG012253/2016 (Grant of Probate), a qual se traduz na homologação sucessória do Testamento, que assim foi julgado válido e registado no referido Tribunal.
    6. Pela decisão foram concedidos poderes de administração de todos os bens que integram o acervo hereditário do falecido à A., na qualidade de única executora da heranças (cfr. Doc. n.º 3, folhas de rosto).
    7. Do referido acervo fazem parte os seguintes bens localizados em Macau:
(1) – 1ª Verba: Fracção autónoma designada por “T3/B-33”, correspondente ao 33º andar “T3/B-33”, para habitação, do prédio urbano denominado "Edf. XXXX", com entrada pela XXXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (cfr. Doc. n.º 4 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) ; e
(2) – 2ª Verba: Saldo da conta bancária nº 001-346196-0001, aberta sobre o D Corporation (Sucursal de Macau) (cfr. Doc. n.º 5 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
    8. Os bens acima descritos não podem ser administrados pela A., conforme a última vontade do falecido consignada no Testamento.
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    IV - FUNDAMENTOS
    1. Com a presente acção pretende a Requerente obter a confirmação de decisão do High Court da Região Administrativa Especial (RAE) de Hong Kong para, desse modo, poder dar destino ao património deixado pelo falecido C, em Macau, o qual é constituído pelo seguinte:
(1) - Fracção autónoma designada por “T3/B-33”, correspondente ao 33º andar “T3/B-33”, para habitação, do prédio urbano denominado "Edf. XXXX", com entrada pela XXXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXX (cfr. Doc. n.º 4 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) ; e
(2) - Saldo da conta bancária nº 001-346196-0001, aberta sobre o D Corporation (Sucursal de Macau) (cfr. Doc. n.º 5 junto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
    O objecto da presente acção reside no pedido de revisão e confirmação da decisão do High Court da RAE de Hong Kong, datada de 9/11/2016, que homologou o testamento do falecido, tendo sido julgado válido e registado nesse mesmo Tribunal o respectivo testamento, de forma a produzir aqui eficácia.
    A decisão passa pela análise das seguintes questões:
- Requisitos formais necessários para a confirmação;
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
- Ausência do contraditório;
- Compatibilidade com a ordem pública.
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    Tendo em conta a natureza do bens em causa, vamos analisar parte por parte, começando pela 2ª verba do bem acima citado (quantia depositada na respectiva conta bancária).
    
    Não obstante não haver qualquer contestação ao pedido de revisão, importará analisar as questões acima referidas. Na ausência de qualquer obstáculo à revisão da decisão do High Court da RAE de Hong Kong em causa, esta só terá eficácia no ordenamento da RAEM, depois de aqui confirmada, tal como resulta do artigo 1199º/ 1 do CPC.
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    2. Nesta matéria, prevê o artigo 1200º do Código de Processo Civil (CPC):
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.
    A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à RAEM, facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades exteriores, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
    Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a decisão do exterior satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade2, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
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    3. Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
    Não parecendo haver dúvidas de que a sentença objecto de revisão - a existir - encontrar-se-ia corporizada por um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se um procedimento que correu seus termos pelo High Court da RAE de Hong Kong.
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    4. Sobre o alcance do conteúdo da decisão e inteligibilidade da disposição do testador
    O referido testamento não oferece dúvidas, sendo claros os seus termos, nomeadamente o destino da quantia da conta bancária referida deixada numa instituição bancária da RAEM e que aparece descrita na documentação junta aos autos.
Ora, o artigo 59º do Código Civil dispõe:
“A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança e do executor testamentário”.
Importa ter presente que a interpretação das disposições por morte são reguladas pela lei pessoal do autor da herança ao tempo da declaração, sendo de relevar aqui a lei de HK aplicável - cfr. artigo 61º/-a) do CC - e o certo é que nenhuma dificuldade foi ali levantada quanto à inclusão desses bens pelo High Court da RAE de Hong Kong.
    As disposições por morte são válidas se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto foi celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local, estando-se aqui perante uma regra de conflitos com uma conexão alternativa com a finalidade de promover o favor testamenti.
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    5. Requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório.
    Dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
    Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria à Requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
    É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
    De todo o modo, sobre a questão de saber se essa decisão dita final é efectivamente uma decisão definitiva e transitada ou se a sua validade foi de algum modo posta em crise, sempre se refere que não há elementos que permitam duvidar de que a sentença revidenda esteja, importando atentar que estamos perante uma decisão proferida no âmbito da Common Law, onde não é usual tal certificação, não obstante a existência de um regime da res judicata condition.
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Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CPC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau;
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”

    Ora, ainda aqui se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice no que diz respeito à 2ª verba do bem deixado em Macau (quantia depositada numa instituição bancária de Macau).
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    6. Também não se colocam questões relativas à regularidade da citação ou à observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, cumprida que foi a lei em vigor em Hong Kong.
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    7. Da ordem pública
    
    Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o artigo 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6

    E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
    Como referia Ferrer Correia7, o que importa é saber se o reconhecimento da pretensão, alicerçada na lei estrangeira competente, traduz em si um resultado imoral ou atentatório da ordem pública. Pode essa lei mostrar-se inspirada em ideias manifestamente contrárias à ordem pública da lex fori - e todavia não ser inadmissível o resultado a que leva a sua aplicação ao caso concreto. E dava até o exemplo de não repugnar o reconhecimento de certos efeitos jurídicos (por exemplo patrimoniais) a um matrimónio celebrado na América (Estado de Nova Iorque) entre dois americanos, padrasto e enteada, ao abrigo da respectiva lei nacional (que não reconhece o impedimento da afinidade em linha recta.
    Mota Pinto entende por ordem pública “o conjunto dos princípios fundamentais subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas.” - TGDC, 3ª ed., 5518, numa abordagem semelhante à de Galvão Telles para quem ordem pública “é representada pelos superiores interesses da comunidade” – Dto das Obrigações, 5ª ed., 44.9
    No caso em apreço, em que se pretende confirmar uma sentença homologatória de um testamento, em que a única conexão com a RAEM é o destino do dinheiro depositado em conta bancária que existe na RAEM, esse desiderato em nada interfere com as normas ou aqueles princípios imperativos.

    Tirando isso, nada se conexiona com a nossa ordem interna, não se invocando qualquer conexão de ordem pessoal, cujos interesses houvesse que defender à luz de justas e legítimas expectativas face ao direito interno.
    A decisão proferida mostra-se transitada e os seus efeitos ainda não foram destruídos por nenhuma outra decisão que tenha sido proferida até ao presente momento.
    Pelo que, é de conceder a revisão e confirmação da decisão proferida pelo High Court da RAE de Hong Kong, já acima citada, por estarem preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 1200º do CPC, sobre a quantia reclamada (2ª verba do bem).
    *
    Em relação à 1ª verba do bem deixado pelo falecido, cuja disposição a favor da sua cônjuge sobreviva por testamento, que entretanto foi homologado pela decisão do High Court da RAE de Hong Kong, à primeira vista, parece que se trata de uma situação prevista no artigo 20º do CPC, como tal o nosso ordenamento jurídico reclamaria a jurisdição exclusiva, pois, está em causa um bem imóvel sito em Macau,
    Porém, bem analisada a situação em causa, não é uma situação que o legislador verdadeiramente quer prever através do artigo 20º do CPC, que estipula:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau;
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Este artigo fala de “acções” e não qualquer decisão. Por acções se entendem:
- “Consiste no pedido feito a um órgão jurisdicional, de uma primeira definição de certeza acerca da existência e do conteúdo da relação jurídica controvertida (Marcelo Caetano, Manual, 8ª ed., pág. 1163).”
     - “São 3 as principais posições sobre o conceito de acção defendidas sobre o conceito de acção defendidas na doutrina:
     a) É o direito à sentença favorável;
     b) É o direito abstracto à obtenção de um pronunciamento judicial, qualquer que seja o seu conteúdo, ainda que só de carácter processual;
     c) Outros identificam a acção, a meio de termo entre as duas posições anteriores, com o direito processual à obtenção de uma decisão de mérito (A. Varela, Man. Proc. Civil, ed. 1984, pág. 280).”
    Ora, no caso, o que está em causa não é uma acção em que se discutem direitos reais, mas sim, uma disposição (unilateral) mortis causa, a favor da sua cônjuge sobreviva, feita por um não residente de Macau (falecido), que se casou em HK , sem regime de bens, e onde tinha a sua residência habitual (fls. 56). Portanto, não se verifica no caso qualquer conexão relevante de carácter permanente com o ordenamento jurídico de Macau, à excepção do elemento do lugar onde o bem se encontra situado. E, tal disposição consta de um testamento, lavrado à luz da legislação de HK, que foi objecto de homologação por parte do High Court de HK.
    Nestes termos, entendemos que conceder a revisão e confirmação à decisão judicial em causa não viola os preceitos legais acima citados, ofende a ordem pública do ordenamento jurídico de Macau.
    Importa destacar, por último, que a ratio da competência exclusiva, para as acções relativas aos direitos reais sobre bens imóveis situados em Macau, dos tribunais de Macau (da localização dos bens) radica na circunstância de o tribunal da situação do imóvel ser o que se encontra melhor apetrechado, atendendo à proximidade, para conhecer os elementos de facto, bem como as regras e os usos de Macau da situação normalmente aplicáveis, e de os litígios concernentes a direitos reais sobre imóveis envolverem frequentemente controvérsias que devem ser dirimidas mediante inspecções, averiguações e perícias a realizar no local.
    Nesta teleologia, o conceito de acções relativas a direitos reais sobre imóveis não deve ser interpretado no sentido se englobar toda e qualquer acção que se relacione como quer que seja indirectamente, ou se prenda a título secundário ou acessório com um direito real sobre imóvel, alheada do escopo garantístico de faculdades compreendidas na titularidade do direito, mas tão-somente aquelas que tendem a determinar a extensão, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel, ou a existência de outros direitos reais sobre estes bens, e a garantir aos respectivos titulares a protecção das prerrogativas emergentes dessa titularidade, tendo no direito real o seu objecto ou fundamento nuclear como causa petendi.
    Pelo que, é de conceder a revisão e confirmação à decisão citada no que toca também ao imóvel situado em Macau.
    Tudo visto, resta decidir.
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V - DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em conceder a revisão e confirmação à decisão nºHCAG012253/2016 do High Court da Região Administrativa Especial de Hong Kong, de 09 de Novembro de 2016, que homologou o testamento do falecido C, de forma a produzir na RAEM todos os efeitos legais.
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    Custas pela Requerente.
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    Registe e Notifique.
     Macau, 18 de Janeiro de 2018.
    Fong Man Chong
    Ho Wai Neng
    José Cândido de Pinho
    
1 Cfr. Ac. TSJ de 25/2/1998, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, de 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263, de 11/4/2002, Proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
2 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002

3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
7 - BMJ 24º, 66.
8 - TGDC, 3ª ed., 551
9 - Dto das Obrigações, 5ª ed., 44.
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