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Processo nº 35/2018 Data: 30.01.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Crime de “detenção de utensilagem”.
Pena.



SUMÁRIO

1. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.

2. Com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, devendo esta ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 35/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, (1°) arguido com os sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 7 anos e 9 meses de prisão, e outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão; (cfr., fls. 308 a 316 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, veio o arguido recorrer, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, e pedindo redução da pena para uma outra não superior a 6 anos de prisão; (cfr., fls. 329 a 334).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 336 a 339).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação (cfr. fls.330 a 334 dos autos), o recorrente pediu a absolvição de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p.p. pelo art.15° da Lei n.°17/2009 na redacção dada pela Lei n.°10/2016, e a redução tanto das duas penas parcelares como da pena única – de sete anos e nove meses, de cinco meses e de oito anos, sendo aquelas duas respectivamente às não superiores a cinco anos e nove meses e a três meses, e esta pena única a não superior a seis anos de prisão.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explanações do ilustre Colega na Resposta (vide. fls.336 a 339 dos autos), no sentido do não provimento do recurso em exame.
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Ora bem, determina o art.15° da Lei n.°17/2009 na redacção dada pela Lei n.°10/2016: Quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão de três meses a um ano ou com pena de multa de 60 a 240 dias.
Note-se que ao descrever o tipo legal neste comando, o legislador adopta a expressão de “qualquer” utensílio ou equipamento, sem nenhum adjectivo limitativo quanto a utensílio ou equipamento, e nem nenhuma referência à especialidade ou durabilidade de utensílio ou equipamento.
Assim que seja, e de acordo com as disposições nos n.°2 e n.°3 do art.8° do Código Civil, parece-nos que não se justifica a exigência adicional de que o utensílio ou equipamento tenha de dispor-se de especialidade e durabilidade, exigência que comporta, em boa verdade, a interpretação restrita do citado art.15° por, sendo óbvio, diminuir o seu alcance.
Nesta linha de consideração, e ressalvado o elevadíssimo respeito pela melhor opinião em sentido diferente, inclinamos a entender que basta que um utensílio ou equipamento seja funcionalmente idóneo e adequado para concretizar efectivamente a «intenção» referida neste art.15°, que se traduz em consumir estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
No vertente caso, importa ter presente que «5. 檢閱卷宗第12頁的搜索及扣押筆錄,第121至126頁鑑定報告,第129至134頁鑑定報告,上訴人住所內被扣押的吸毒器具是一個由數部件構成的器皿,包括一個印有「澳門金沙城中心萊德酒店」之鴨型透明膠樽,嘴部接有一段吸管,尾部接一段經改裝之吸管,一端為黃色,另一端為白色。6. 上組器具經化驗鑑定,吸管及鴨型透明膠樽內含有甲基萃丙胺,鴨型透明膠樽鴨嘴上,組裝吸管上痕跡經DNA化驗結果有可能來自上訴人。»
Tudo isto leva-nos a sufragar a prudente conclusão do ilustre colega que aponta: «在上訴人住所扣押的器具,倘單純屬酒店盛載食用水的膠樽自然屬一般酒店用品,然而對本案而言,上訴人經將該膠樽進行改裝和連上吸管,並檢有甲基基苯丙胺,有關器具已進入一個專供吸食毒品狀態,具備專門性、含有「專用」、「專門」、「特定」、「專供」的狀態,完全符合中級法院對吸食器具的見解。»
Sendo assim, e por mera hipótese – mesmo que o utensílio ou equipamento aludido no art.15° tenha de ser específico e duradouro, temos por irrefutável que o instrumento pertencente ao ora recorrente pode ser encaixado na figura de «utensílio ou equipamento» previsto neste normativo legal. Daí decorre que é inatacável o douto aresto recorrido na parte de condená-lo em praticar dum crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, e se torna decerto insubsistente o pedido da absolvição deste crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento.
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Em relação ao pedido de redução da pena aplicada no Acórdão em crise, subscrevemos a brilhante jurisprudência que proclama «Para poder beneficiar da atenuação especial da pena prevista no art.66.° do Código Penal, é necessário que se verifica uma situação de diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, em resultado da existência de circunstâncias com essa virtualidade.» (A título exemplificativo, cfr. Acórdão do TUI no Processo n.°20/2004)
E importa ter sempre presente que «para que seja possível accionar o mecanismo de atenuação especial ou dispensa da pena previsto no art.18.° da Lei n.°17/2009, é necessário que as provas fornecidas sejam tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas de certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento.» (vide, Acórdão do TUI no Processo n.°34/2010)
No caso sub iudice, acolhemos a penetrante observação do ilustre colega de que «在庭審過程中,上訴人一直保持沉默,對所觸犯之法律和有關行為,未能看存有悔悟之心» e, de outro lado, «上訴人所觸犯的毒品販賣罪屬於嚴重罪行,對社會秩序帶來相當嚴重的負面影響,另外,在衡量本澳長期以來飽受毒品困擾,尤其像上訴人以外勞身份進入澳門後不正當從事工作,卻以販賣毒品為事業,這類在澳門的犯罪行為對本地區所帶來嚴峻社會問題,對澳門當局維護社會治安和法律秩序帶來相當的困難,對社會安寧亦造成相當的負面影響。»
Entendemos que é igualmente exacta e sã a conclusão extraída pelo ilustre colega, no sentido de «原審法院在量刑時,己考慮到上訴人為初犯,並非澳門居民,持外地僱員身份證停留澳門,在自由、自願及有意識情況下故意進行毒品販賣行為,其犯罪行為的不法程度極高。» Pois, as circunstâncias em favor do recorrente vêem devidamente ponderadas e valorizadas pelo Tribunal a quo ao graduar as penas parcelares e, tendo procedido ao cúmulo jurídico, a pena única em oito anos de prisão efectiva.
No que diz respeite à comparação pelo recorrente entre a pena condenada no Acórdão ora recorrido e a condenada por aresto decretado no Processo n.°CR3-16-0405-PCC (vide conclusão 13 da Motivação), não podemos deixar de dizer que cada caso é um caso, e a quantidade de estupefaciente não é o único factor para efeitos de graduação da pena.
Nesta linha de perspectiva e à luz das prudentes jurisprudências supra citadas, inclinamos a entender que o douto Acórdão recorrido não infringe as disposições legais que regem a determinação da pena, pelo que é infundado e inviável o pedido de redução da pena.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 350 a 352).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 310 a 311-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 7 anos e 9 meses de prisão, e outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão.

Pugna pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, pedindo a redução da pena para uma outra não superior a 6 anos de prisão.

–– Vejamos, começando-se pelo dito crime de “detenção de utensilagem”.

Pois bem, sobre a questão, e tanto quanto julgamos saber, várias são as soluções possíveis, e que – perante as circunstâncias da situação em concreto – se tem vindo a adoptar.

De facto, entendimento existe que considera que os crimes em questão quando cometidos pelo mesmo agente estão numa relação de “concurso aparente”, ou de “unidade criminosa”, certo sendo que também se tem defendido que (meros) “instrumentos ou utensílios sem durabilidade”, e que não sejam “especificamente destinados ao consumo de estupefaciente” não devem ser considerados para efeitos de integração do previsto no art. 15° que prevê o crime de “detenção de utensilagem”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. de 23.03.2017, Proc. n.° 223/2017 e de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017).

No caso dos autos, considerando a “natureza dos objectos” em questão, (cfr., fls. 116), e adoptando a maioria deste Colectivo a quo a última das aludidas posições, há que revogar a condenação do arguido recorrente em relação ao crime do art. 15° da Lei n.° 17/2009.

–– Quanto à “pena”.

Pois bem, ao crime de “tráfico” pelo arguido cometido cabe (agora) a pena de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, alterada pela Lei n.° 10/2016).

Como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, há que ter presente que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Por sua vez, e atento o teor art. 65° do mesmo código, onde se fixam os “critérios para a determinação da pena”, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.09.2017, Proc. n.° 812/2017, de 16.11.2017, Proc. n.° 722/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1157/2017).

É também sabido que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).

Acompanhando o Tribunal da Relação de Évora temos igualmente considerado:

“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 13.07.2017, Proc. n.° 522/2017, de 26.10.2017, Proc. n.° 829/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1133/2017).

No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

E, como recentemente se tem igualmente decidido:

“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).

“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).

Aqui chegados, que dizer da pena de 7 anos e 9 meses de prisão fixada para o crime de “tráfico”?

Resulta da matéria de facto dada como provada que o arguido detinha um total de 11,13308g de Metanfetamina, 1,339g de Ketamina e 0,11g de M.D.M.A., e que a maior parte deste produto era destinado à venda para terceiros.

E, nesta conformidade, atento o que se deixou exposto, ponderando nas “quantidades” e (diversas) “qualidades” de estupefaciente em questão, tendo presente a moldura penal aplicável, e muito fortes sendo as necessidades de prevenção criminal, não nos parece que a decisão do Colectivo do T.J.B. mereça censura, sendo assim de se confirmar a pena aplicada.

–– Por fim, um último aspecto.

Resulta da matéria de facto dada como provada que o arguido detinha também estupefaciente para “consumo”.

Por motivos que agora não interessam, tal “matéria” não mereceu relevo em sede de acusação e decisão.

Observado que foi o contraditório, e podendo este T.S.I. operar uma alteração – oficiosa – da qualificação jurídico-penal efectuada pelo T.J.B. sem prejuízo do “princípio da proibição da reformatio in pejus”, (cfr., art. 399° do C.P.P.M.), decide-se pois declarar o arguido autor de 1 outro crime de “detenção de estupefaciente para consumo”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, não se aplicando pena por tal crime, ou agravando a pena aplicada ao arguido, por respeito ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M..

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, alterando-se oficiosamente a qualificação jurídico-penal operada pelo T.J.B., ficando o arguido absolvido do crime de “detenção de utensilagem” e confirmando-se a sua condenação pelo crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, na pena de 7 anos e 9 meses de prisão.

Pelo decaimento pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 30 de Janeiro de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 35/2018 Pág. 18

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