Processo nº 1149/2017 Data: 25.01.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável da fundamentação.
Medida da pena.
SUMÁRIO
1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam, a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
2. O vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
3. Não se mostra excessiva a pena de 7 anos de prisão aplicada ao arguido condenado pela prática do crime de “tráfico de estupefacientes” e que, pelo menos, vendeu estupefaciente por “10 vezes”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 1149/2017
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B), com os sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009, na pena de 7 anos de prisão, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e 1 outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 288 a 298 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com o assim decidido, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “errada aplicação de direito”, pugnando pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da dita Lei, assim como pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, com a consequente redução da pena; (cfr., fls. 305 a 314-v).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 316 a 321-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer pugnando também pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 333 a 335-v).
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Cumpre apreciar.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 290-v a 293, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009, na pena de 7 anos de prisão, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e 1 outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão.
E, como se deixou relatado, considera que o mesmo padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “errada aplicação de direito”, pugnando pela alteração da qualificação jurídico-penal efectuada e pela sua condenação como autor de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da dita Lei, assim como pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, com a consequente redução da pena.
–– Atento o pelo recorrente alegado, comecemos pelos “vícios assacados à decisão da matéria de facto”.
Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.07.2017, Proc. n.° 494/2017, de 12.10.2017, Proc. n.° 814/2017 e de 07.12.2017, Proc. n.° 877/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).
Como decidiu o T.R. de Coimbra:
“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).
E, como recentemente também considerou o T.R. de Évora:
“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).
No caso, (e como se deixou relatado), o Tribunal a quo deu como provada toda a matéria de facto que constava da acusação, nenhum facto tendo ficado por provar.
Assim, (e sendo de notar que a contestação pelo recorrente apresentada é, também, meramente “tabelar”, cfr., fls. 253), nenhum motivo existe para se considerar que o Tribunal a quo não emitiu pronúncia sobre “toda a matéria objecto do processo”.
Em relação ao vício de “contradição insanável da fundamentação” o mesmo tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.07.2017, Proc. n.° 522/2017, de 28.09.2017, Proc. n.° 787/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017).
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
E, como em relação ao anterior vício de “insuficiência”, também aqui não tem o recorrente razão.
Não se vislumbra na decisão recorrida nenhuma “contradição”, (muito menos “insanável”), óbvio sendo que esta também não ocorre entre o consignado na decisão recorrida e o que eventualmente tenha sido dito por uma ou mais testemunhas em audiência.
Nesta situação, podia-se (eventualmente) estar é perante um vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Contudo, e seja como for, também este vício não existe já que o Tribunal decidiu em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova, sem desrespeitar nenhuma regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis.
Continuemos.
–– Dito isto, e nenhuma censura merecendo a “decisão da matéria de facto”, passemos para a “decisão de direito”, mais concretamente, para a questão da “qualificação jurídico-penal da conduta do ora recorrente”.
Vejamos.
Diz o recorrente que a sua conduta integra, tão só, a prática de um crime de “tráfico de menor quantidade”, p. e p. pelo art. 11° da Lei n.° 17/2009, onde se prescreve que:
“1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”.
Porém, evidente é que improcede o assim pretendido.
Com efeito, para além de provado estar que o arguido foi surpreendido com 3,73g de “ICE” quando se dirigia para uma “transacção”, provado está também que em datas anteriores, vendeu, pelo menos, “10 vezes”, a dita droga à 1ª e 2ª testemunhas inquiridas em audiência de julgamento – cfr., acta de julgamento a fls. 285-v e “ponto 2” da matéria de facto provada – não se apresentando assim possível a qualificação de tal factualidade em conformidade com o art. 11° da Lei n.° 17/2009, censura não merecendo a decisão que o condenou como autor de 1 crime de “tráfico” do art. 8°, n.° 1 da dita Lei.
–– Importa agora – porque não prejudicado – apurar se tem o recorrente razão quando afirma que há “errada aplicação de direito” quanto à sua condenação em concurso real de 1 crime de “detenção de utensilagem” do art. 15° da Lei n.° 17/2009.
Pois bem, sobre a questão, e tanto quanto julgamos saber, várias são as soluções possíveis, e que – perante as circunstâncias da situação em concreto – se tem vindo a adoptar.
De facto, entendimento existe que considera que os crimes em questão quando cometidos pelo mesmo agente estão numa relação de “concurso aparente”, ou de “unidade criminosa”, certo sendo que também se tem defendido que (meros) “instrumentos ou utensílios sem durabilidade”, e que não sejam “especificamente destinados ao consumo de estupefaciente” não devem ser considerados para efeitos de integração do previsto no art. 15° que prevê o crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. de 23.03.2017, Proc. n.° 223/2017 e de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017).
No caso dos autos, considerando a “natureza dos objectos” em questão, (cfr., fls. 68 e 141), e adoptando a maioria deste Colectivo a quo a última das aludidas posições, há que revogar a condenação dos arguidos recorrentes em relação ao crime do art. 15° da Lei n.° 17/2009.
–– Com o assim decidido, há agora que avançar para a matéria da(s) “pena(s)”.
O crime de “tráfico” é punido com a pena de 3 a 15 anos de prisão.
Por sua vez, ao crime de “consumo” cabe a pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 60 dias.
Ponderando nos critérios para a determinação da medida da pena, (cfr., art. 40° e 65° do C.P.M.), e muito fortes sendo as necessidades de prevenção criminal face ao “tipo” e “natureza” dos crimes em questão, cremos que censura não merecem as penas parcelares pelo Tribunal a quo fixadas, (notando-se também que reparo não merece a opção pela pena de prisão quanto ao crime de “consumo” atento os critérios do art. 64° do C.P.M.).
E, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 71° do C.P.M., havendo que se efectuar novo cúmulo jurídico de penas apresenta-se justa e equilibrada a pena única de 7 anos e 1 mês de prisão.
Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, absolvendo-se o arguido do crime de “detenção indevida de utensílio” do art. 15° da Lei n.° 17/2009, e, mantendo-se, no restante, o decidido pelo T.J.B., fica o mesmo arguido condenado na pena única de 7 anos e 1 mês de prisão.
Pelo seu decaimento pagará o arguido 6 UCs de taxa de justiça.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 25 de Janeiro de 2018
(Relator)
José Maria Dias Azedo [Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, dou como reproduzido o entendimento que explanei na declaração de voto anexa ao Ac. de 31.03.2011, Proc. n.° 81/2011].
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
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