Proc. nº 229/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 01 de Fevereiro de 2018
Descritores:
- Nulidade de sentença
- Art. 571º, nº1, al. c), do CPC
- Art. 367º, nº3, do CC
- Assinatura a rogo
- Impressão digital no documento
- Livre convicção
SUMÁRIO:
I - A nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. c) do CPC, manifesta-se quando os fundamentos invocados pelo julgador deveriam ter conduzido logicamente a um resultado decisor oposto àquele que foi alcançado, ou seja quando se detecta um vício lógico de raciocínio que deveria ter levado a produzir uma decisão diversa daquela para a qual o raciocínio conduziu efectivamente o seu autor.
II - A necessidade de confirmação perante notário a que alude o art. 367º, nº3, do Código Civil só se verifica quando o documento é “subscrito” por pessoa que não saiba ou não possa assinar. Trata-se daqueles casos em que o documento é “assinado” não pelo seu autor, mas sim por outrem a seu rogo.
III - A aposição de impressão digital do autor não pode portanto equivaler a rogo, nem subsumir-se ao disposto no nº3, do art. 367º.
IV - Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova.
Proc. nº 229/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
B, de sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 12*****(*), actualmente residente na Av. do ......, Edf. ......, ...º andar, ..., Macau ---
Instaurou no TJB (Proc. nº CV2-15-0029-CAO) contra---
C, de sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 14*****(*),residente na Av. ......, Habitação Social de ......., Edf. ......, Bl. ..., B..., ...º andar, ..., Coloane, Macau, --
Acção com processo ordinário de declaração, requerendo a condenação da ré no pagamento da quantia de MOP$115.486,80, acrescida dos juros, à taxa legal de 9,75%, a contar da data da citação, até ao integral pagamento.
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Na oportunidade, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré no pagamento das quantias de RMB 39.800,00, HKD$ 200,00 e MOP$ 34.250,00 e juros respectivos contados desde 8/07/2015 até integral pagamento.
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Contra essa sentença interpôs a ré o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. Nos termos do art.º 367.º, n.º 3 do Código Civil, “Se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor”;
2. Neste caso concreto, a autora entregou os documentos de fls. 10 e 11 dos autos em ordem a provar a existência dos seus créditos. No entanto, já foi provado que“o texto do documento de fls. 10 foi escrito pela filha da autora”, “a autora sabia que a ré não lia ou conhecia completamente caracteres chineses” e “a autora e a sua filha nunca leram à ré o conteúdo desse recibo de empréstimo”;
3. Tendo em conta que a sentença já deu como provados os factos supracitados e reconheceu que os documentos de fls. 10 e 11 dos autos não foram feitos com observância do art.º 367.º do Código Civil, e considerando, por outro lado, que não se provou que tenha qualquer pessoa lido à ré o conteúdo de fls. 10 e 11 dos autos, ou de que forma esse conteúdo se tenha dado à ré a conhecer e entender;
4. Além disso, mesmo deixando-se de lado a questão de saber se, segundo o art.º 388.º, n.º 1 do Código Civil, é admissível ou não prova por testemunhas relativamente aos factos em causa, dos factos dados como assentes na causa vertente não resulta provado que a autora entregou efectivamente à ré os empréstimos indicados nos documentos de fls. 10 e 11 dos autos;
5. Por isso, existe oposição entre os fundamentos provados no caso sub judice e a decisão proferida no mesmo, daí que a sentença em causa é nula por força do art.º 571.º, n.º 1, al. c) do CPC de Macau.
Nos termos acima expendidos, solicita-se ao Mm.º Juiz que julgue procedente o recurso e, por conseguinte, revogue e declare nula a sentença proferida no presente processo pela Mm.ª Juíza do Tribunal Colectivo do TJB em 30 de Agosto de 2016.
Pede-se deferimento”.
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A autora respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“1) Na óptica da recorrente, existe contradição entre os fundamentos dados como assentes e a decisão proferida nos presentes autos, pelo que, segundo a recorrente, a decisão em causa é nula ao abrigo do disposto no art.º 571.º, n.º 1, al. c) do CPC.
2) No entender da recorrida, a Mm.ª Juíza do Tribunal Colectivo, proferiu decisão sobre a causa de forma prudente, lógica, rigorosa e de acordo com as regras da experiência, sem ter incorrido em oposição entre os fundamentos e a decisão a que se refere o art.º 571.º, n.º 1, al. c) do CPC. Ademais, formou a sua convicção em sintonia como art.º 558.º do CPC, na qual não se detecta desrazoabilidade ou inadequação.
Pedido
I) Face ao exposto, solicita-se ao Mm.º Juiz do TSI que seja julgado improcedente o recurso interposto pela recorrente, mantendo-se assim a decisão recorrida; e
II) Fiquem as custas a cargo exclusivo da recorrente.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte materialidade:
“- Os dois caracteres “XX” de fls. 10 e 11 dos autos foram escritos pela ré (A) dos factos assentes).
- As impressões digitais de fls. 10 dos autos são da ré (B) dos factos assentes).
- O texto do documento de fls. 10 foi escrito pela filha da autora (C) dos factos assentes).
- A autora sabia que a ré não lia ou conhecia completamente caracteres chineses (D) dos factos assentes).”
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Base instrutória:
- Desde Maio de 2011 até Fevereiro de 2012, a autora emprestou à ré a quantia total de RMB39.800,00 (N.º 2 da base instrutória).
- E HKD$200,00 (N.º 3 da base instrutória).
- E MOP$34.250,00 no total (N.º 4 da base instrutória).
- Até à presente data, a ré não pagou nenhuma das dívidas acima referidas (N.º 7 da base instrutória).
- O “recibo de empréstimo” de fls. 10 dos autos, com excepção da assinatura “XX” aposta pela ré, na parte restante não foi redigido pela ré (N.º 8 da base instrutória).
- A autora e a sua filha nunca leram à ré o conteúdo desse recibo de empréstimo (N.º 12 da base instrutória).
- Após a filha da autora ter redigido o texto do documento de fls. 10 dos autos, a ré, só depois de ter confirmado as quantias em MOP, RMB e HKD, apôs a sua assinatura no mesmo documento (N.º 18 da base instrutória).”
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III – O Direito
1 – A autora, na acção, fundamentava o pedido de condenação da ré no facto de por mais de uma vez lhe ter emprestado várias importâncias em dinheiro, que nunca devolveu, não obstante interpelação nesse sentido.
A sentença deu por provada parte da factualidade e procedeu à condenação parcial da ré no pedido.
Vem agora a ré invocar o art. 367º, nº3, do Código Civil, para dizer que os documentos de fls. 10 e 11 dos autos, apesar de por si subscritos, não podem servir de prova dos empréstimos, por não saber ler os caracteres chineses e o seu conteúdo não lhe ter sido lido pela autora ou pela sua filha.
Por isso, em seu entender, a sentença padece de oposição entre fundamentos e decisão, pelo que é nula, nos termos do art. 571º, nº1, al. c), do CPC.
Vejamos.
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2 – Descobre a recorrente uma alegada oposição entre fundamentação e decisão, o que em sua opinião caracteriza a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. c), do CPC.
Mas, não. “A nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. c) do CPC, manifesta-se quando os fundamentos invocados pelo julgador deveriam ter conduzido logicamente a um resultado decisor oposto àquele que foi alcançado, ou seja quando se detecta um vício lógico de raciocínio que deveria ter levado a produzir uma decisão diversa daquela para a qual o raciocínio conduziu efectivamente o seu autor” (Ac. do TSI, de 15/03/2012, Proc. nº 674/2011).
Ora, não achamos que a sentença manifeste nenhum vício lógico de raciocínio, nenhuma contradição entre o “iter” fundamentativo e o julgamento decisório propriamente dito. O que poderá haver é outra coisa: referimo-nos ao erro de julgamento se os factos provados não sustentarem a decisão tomada.
É o que veremos já de seguida.
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3 – Desta feita, defende a recorrente que os documentos de fls. 10 e 11 dos autos, assinados pela recorrente e através da aposição das suas impressões digitais, por si só não servem de prova dos empréstimos, uma vez que as testemunhas não foram presenciais, nem observaram com “os seus próprios olhos” os actos materiais de entrega do dinheiro alegadamente emprestado. E tudo sem esquecer o o preceituado nos arts. 367º, nº3 e 388º, nº1, do Código Civil.
Vejamos o que dizem os artigos:
Artigo 367.º
(Assinatura)
1. Os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar.
2. Nos títulos emitidos em grande número ou nos demais casos em que o uso o admita, pode a assinatura ser substituída por simples reprodução mecânica.
3. Se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor.
4. O rogo deve igualmente ser dado ou confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante.
Artigo 388.º
(Convenções contra o conteúdo de documentos ou além dele)
1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 367.º a 373.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.
Ora, salvo o devido respeito, não é possível invocar aqui o disposto no art. 367º, nº3, do Código Civil. Na verdade, a necessidade de confirmação perante notário só se verifica quando o documento é “subscrito” por pessoa que não saiba ou não possa assinar. Trata-se daqueles casos em que o documento é “assinado” não pelo seu autor, mas sim por outrem a seu rogo. A aposição de impressão digital do autor não pode portanto equivaler a rogo, nem subsumir-se ao disposto no nº3, do art. 367º (v.g., Ac. do STJ, de 6/05/2008, Proc. nº 08A1187).
Ora, na situação vertente, além da impressão digital aposta no documento de fls. 10, a ré também assinou o seu nome nesse e no documento de fls. 11, tal como resulta dos factos das alíneas A) e B) da matéria assente. Portanto, não havia que submeter os documentos (nomeadamente o de fls. 10) à confirmação notarial.
E se é assim, talqualmente somos a concluir que o art. 388º, nº1 acima transcrito não podia constituir obstáculo algum à prova testemunhal produzida.
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4 – E quanto à prova obtida, a partir da atitude confessória (ainda que parcial) por parte da ré na sua contestação, dos documentos em causa e da prova testemunhal obtida em audiência de discussão, o tribunal “a quo” formou a sua livre convicção alicerçada também no princípio da imediação, convicção que este TSI não vê motivo para alterar por tudo quanto os autos reúnem, não só porque a recorrente não observou o disposto no art. 599º, nº1 e 2, do CPC, como ainda por este TSI não vislumbrar nenhum erro grosseiro na apreciação que a 1ª instância fez das provas, tendo em conta que “Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova” (v.g., Ac. do TSI, de 16/02/2017, Proc. nº 670/2016).
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
T.S.I., 01 de Fevereiro de 2018
(Relator)
José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
229/2017 11