Processo n.º 48/2018 Data do acórdão: 2018-3-8
(Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– valoração da prova
– prova pré-constituída
– documento
– silêncio do arguido
S U M Á R I O
1. Como o tribunal recorrido desconsiderou a existência das declarações então prestadas pelo 2.o arguido aos Serviços de Identificação de Macau (e registadas por escrito com assinatura do próprio arguido, e já juntas aos autos), ainda antes da existência do inquérito penal em causa, declarações essas que, como tal, constituem um elemento de prova documental, e devem ser valoradas pelo tribunal em sede de formação da livre convicção sobre os factos (art.os 111.o, n.o 1, e 150.o, n.o 1, do Código de Processo Penal), ainda que o arguido use o seu direito ao silêncio na audiência de julgamento, incorreu o mesmo tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do mesmo Código.
2. O silêncio do arguido na audiência não tem a virtude processual de impedir a valoração judicial, nomeadamente, de qualquer prova documental já pré-constituída.
3. As provas pré-constituídas são aquelas que existem antes de surgir a necessidade da sua apresentação no processo. É o caso típico dos documentos.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 48/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: A e B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão final proferido pelo Tribunal Colectivo do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base no Processo n.o CR3-16-0135-PCC, absolutório da 1.a arguida A e do 2.o arguido B, aí já melhor identificados, da acusada prática, em co-autoria material, na forma continuada, de um crime continuado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 11.o, n.o 2, da Lei n.o 2/90/M, ou, no caso de se mostrar em concreto mais favorável, p. e p. pelo art.o 18.o, n.os 2 e 1, da Lei n.o 6/2004, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a condenação dos dois arguidos no crime de falsificação de documento, identicamente com três anos de prisão, suspensa igualmente na execução por quatro anos, ou o reenvio do processo para novo julgamento, alegando, para o efeito, que tal decisão absolutória padecia do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) (cfr. em detalhes, a respectiva motivação de recurso, constante de fls. 282 a 290 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso responderam os dois arguidos no sentido de rejeição ou improcedência do recurso (cfr. em pormenores, o teor da resposta una de recurso, a fls. 299 a 319 dos autos).
Subidos os autos, opinou o Digno Procurador-Adjunto, em sede de vista, pela procedência do recurso (cfr. o douto parecer emitido a fls. 329 a 330v).
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, foi apresentado pelo M.mo Juiz Relator o douto Projecto de Acórdão à discussão do presente Tribunal Colectivo de recurso. Como o M.mo Juiz Relator acabou por sair vencido da votação feita sobre a solução do recurso, é de decidir do recurso nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do CPP.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos elementos dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão do recurso:
1. O acórdão recorrido encontra-se proferido a fls. 264 a 268v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. Na fundamentação probatória desse acórdão absolutório, o Tribunal Colectivo recorrido fundamentou a sua decisão absolutória na insuficiência da prova, opinando que embora o relatório do exame de DNA revele que o 2.o arguido não é o pai biológico do então bebé em causa nos autos, só este relatório, sem outros elementos de prova auxiliares, não é suficiente para se considerar, sem qualquer dúvida, que os dois arguidos tenham sabido que o 2.o arguido não fosse o pai biológico do bebé, e mesmo assim tenham os dois arguidos prestado falsas declarações para o bebé obter o direito de residência em Macau (cfr. o primeiro parágrafo da página 9 do texto do aresto recorrido, a fl. 268 dos autos).
3. A fls. 29 e 30 dos autos, consta o registo escrito, com assinatura do próprio 2.o arguido, das declarações então por ele prestadas aos Serviços de Identificação de Macau em 9 de Agosto de 2010 e 8 de Novembro de 2010 (ou seja, ainda antes da data de abertura, em Setembro de 2013, do inquérito subjacente aos presentes autos penais – cfr. o despacho de abertura do inquérito de fl. 1 dos autos), tendo aí declarado o 2.o arguido que sabia que o bebé em causa não era seu filho (porque a data de nascimento deste não foi compatível com o período de relações sexuais então tidas por ele com a 1.a arguida) e que na altura tinha emprestado o seu bilhete de identidade à 2.a arguida para tratar do registo de nascimento do bebé.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que este Tribunal de Segunda Instância (TSI), como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
O Ministério Público aponta, na sua motivação, o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP à decisão absolutória penal recorrida.
Pois bem, ante os elementos coligidos dos autos já referidos na parte II do presente acórdão de recurso, vê-se, com nitidez, que o Tribunal recorrido desconsiderou a existência das declarações então prestadas pelo 2.o arguido aos Serviços de Identificação de Macau (e registadas por escrito com assinatura do próprio arguido, e ora juntas a fls. 29 e 30 dos autos), ainda antes da existência do inquérito penal em causa, declarações essas que, como tal, constituem indubitavelmente um elemento de prova documental, e devem ser valoradas pelo Tribunal em sede de formação da livre convicção sobre os factos (art.os 111.o, n.o 1, e 150.o, n.o 1, do CPP), ainda que o arguido use o seu direito ao silêncio na audiência de julgamento (é que, nota-se, o silêncio do arguido na audiência não tem a virtude processual de impedir a valoração judicial, nomeadamente, de qualquer prova documental já pré-constituída). Daí que não é exacto que não há elementos probatórios auxiliares para se julgar se os dois arguidos tenham sabido que o 2.o arguido não fosse o pai biológico do bebé, e mesmo assim tenham os dois arguidos prestado falsas declarações para o bebé obter o direito de residência em Macau.
Sobre a noção de prova pré-constituída, veja-se os seguintes ensinamentos veiculados na página 441 do MANUAL DE PROCESSO CIVIL, de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, 2.a edição, revista e actualizada, Comibra Editora, 1985: “As provas pré-constituídas são aquelas que existem antes de surgir a necessidade da sua apresentação no processo. É o caso típico dos documentos …”.
Procede, pois, o recurso no arguido vício de erro notório na apreciação da prova, havendo que determinar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância, por um outro Tribunal Colectivo, sobre todo o objecto probando do processo (posto que o vício de erro notório na apreciação da prova acima constatado já comprometeu concretamente a justeza do resultado do julgamento de facto então feito sobre boa parte de factos acusados).
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar provido o recurso, reenviando todo o objecto do processo para novo julgamento.
Custas do recurso pelos dois arguidos, pagando cada um deles duas UC de taxa de justiça e mil patacas de honorários à sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 8 de Março de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo (Segue declaração)
(Relator do processo)
Processo nº 48/2018
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Com o douto Acórdão que antecede decretou-se o reenvio dos autos para novo julgamento.
Entendeu-se que a decisão recorrida padecia de “erro notório na apreciação da prova”, justificando-se o mesmo com a não valoração pelo Tribunal a quo das declarações pelo (2°) arguido B prestadas nos Serviços de Identificação de Macau em data anterior ao início do Inquérito, considerando-se as mesmas “prova documental pré-constituída e sujeita à livre apreciação do Tribunal”.
Não acompanhamos o assim decidido, visto que, em audiência de julgamento, o arguido fez uso do seu direito ao silêncio, afigurando-se-nos assim que a considerada “falta (de), ou pretendida valoração das declarações” do arguido em questão – e ainda que prestadas antes do início dos presentes autos – não deixa de constituir uma frontal colisão ao regime estatuído nos preceitos legais dos art°s 336°, 337° e 338° do C.P.P.M., (onde se trata da matéria da “valoração de provas” e se regula a “leitura permitida de autos e declarações” e a “leitura permitida de declarações do arguido”), acabando-se, desta forma, por anular, totalmente, o “direito de defesa” que com o mesmo se presente assegurar, (e onde se inclui o direito do arguido ao silêncio).
Importa pois ponderar que em causa não está uma (mera) “carta” ou “apontamento” da autoria do arguido – ou, eventualmente, um “auto de reconhecimento”, de “revista”, “busca”, ou de “exame pericial” – que encontrando-se junto aos autos, integra o conceito de “prova documental”, (pré-constituída), e como tal, ainda que não produzida ou examinada em audiência, passível de valoração pelo Tribunal, sendo antes de salientar que, o que em questão está são “declarações” pelo (próprio) arguido prestadas – precisamente – sobre a “matéria dos presentes autos”, adequado não nos parecendo assim que devam (ou possam) ser valoradas, sem que sejam, previamente, produzidas e examinadas em audiência, o que só deveria (ou poderia) acontecer com a solicitação – ou, pelo menos, autorização – do arguido, o que não se verificou.
Daí, ter elaborado projecto de acórdão a sugerir a improcedência do recurso e, agora, a presente declaração.
Macau, aos 08 de Março de 2018
José Maria Dias Azedo
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