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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
  A intentou acção declarativa com processo ordinário contra B pedindo a sua condenação no pagamento de:
a) Parte da retribuição devida ao autor, de que a ré se apossou, acrescida de juros legais desde a citação;
b) Trabalho prestado pelo autor durante os períodos de descanso anual, descanso semanal e feriados obrigatórios, no montante de dois milhões, quatrocentas e quinze mil, setecentas e quarenta e quatro patacas, acrescido de juros legais desde a citação;
c) Indemnização por violação direitos não patrimoniais, a liquidar em execução de sentença;
d) Indemnização rescisória, no montante de cento e oitenta e seis mil, quatrocentas patacas, acrescido de juros legais desde a citação.
O Exm.º Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$888,177.00, acrescida de juros legais desde o trânsito em julgado da decisão, compreendendo os seguintes montantes parciais:
- MOP$719,058.00, a título de pagamento pelo trabalho prestado pelo autor e não pago no descanso semanal;
- MOP$88,410.00, a título de pagamento de férias anuais;
- MOP$80,710.00, por falta de pagamento do trabalho prestado nos feriados obrigatórios.
No mais, absolveu a ré.
Em recursos interpostos por ambas as partes, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), julgou parcialmente procedente o recurso do autor e totalmente improcedente o recurso da ré, tendo decidido condenar a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$958,401.00, acrescida de juros legais desde o trânsito em julgado da decisão, compreendendo os seguintes montantes parciais:
- MOP$735,744.00, a título de pagamento pelo trabalho prestado pelo autor e não pago no descanso semanal;
- MOP$96,972.00, a título de pagamento de férias anuais;
- MOP$125,685.00, por falta de pagamento do trabalho prestado nos feriados obrigatórios.
Inconformada, recorre a ré B para este Tribunal de Última Instância, pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
- O Acórdão de que ora se recorre violou o Decreto-Lei 24/89/M, de 3 de Abril (doravante "RJRT") , designadamente os seus artigos 5.° e 6.° e interpretou erradamente os artigo 17.°, 20.°, 24.°, 25.°, 26.° do referido Decreto-Lei.
- O legislador não consagrou um regime de imperatividade absoluta das normas de direito do trabalho, ao contrário do que doutamente acordaram os Meritíssimos Juízes a quo, pois estabeleceu, a par destas, que as normas convencionais, os regulamentos das empresas e os usos e costumes geralmente praticados (artigo 1.º, n.º 1 do RJRT) , são igualmente aplicáveis quando sejam mais favoráveis ao trabalhador (artigo 5.º do RJRT).
- Neste contexto, sempre foi claro para as duas partes que o gozo normal de dias de descanso, como noutros sectores de actividade, poria em causa o próprio funcionamento dos casinos existentes e, consequentemente, o seu sucesso, pelo que necessariamente a política da aqui Recorrente na concessão de dias de descanso sempre diferiu das restantes empresas em Macau.
- Ora, apenas por ter sido estabelecido o regime das gorjetas é que o Recorrido aceitou voluntariamente que, aos dias de descanso, não corresponderia nenhum salário o que, aliás, resulta claro da factualidade dada como provada.
- De acordo com a matéria de facto dada como provada, o rendimento do Recorrido era composto por uma importância fixa e por uma quota parte variável.
- A parte fixa era paga pela Recorrente e a parte variável era correspondente à quota parte do Recorrido do total das gorjetas entregues pelos clientes da Recorrente, aos trabalhadores e que, por todos os trabalhadores eram distribuídas.
- As gorjetas não fazem parte do salário do autor.
- O salário do Autor é um salário diário e não mensal.
- A aceitação do Recorrido de que ao não gozo de dias de descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios não corresponda qualquer compensação adicional é válida.
- Não decorre da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo que a Recorrente tenha impedido, alguma vez e de qualquer forma, o exercício do direito de gozo dos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios.
- Neste contexto, enferma a decisão recorrida de ilegalidade, conquanto um dos elementos essenciais para que o Recorrido possa agora ser indemnizado pelo eventual não gozo dos dias de descanso (quer sejam dias de descanso semanal, anual ou feriados obrigatórios) não ficou provado: o não gozo seja imputável a conduta culposa da entidade empregadora.
- A ré não deve ser obrigada a pagar uma quantia adicional a título de trabalho realizado pelo autor nos dias de descanso semanal já que, nos termos da alínea b) do n.º 6 do art. 17.º do RJRT, o trabalho prestado em dias de descanso semanal, para os trabalhadores que aufiram salário diário, é pago pelo montante acordado entre o trabalhador e o empregador. Não tendo sido acordado qualquer valor, deve recorrer-se aos usos e costumes do sector, segundo os quais a remuneração é a paga normalmente, sendo que o autor já recebeu a quantia relativa ao salário normal desses dias.
- O Acórdão recorrido fez errada aplicação analógica do n.º 6 do art. 17.º e do art. 21.º, atribuindo ao autor o dobro da retribuição, pelos dias de trabalho relativos ao descanso anual, pois considerou não ter o empregador impedido o autor de gozar o período de descanso. Mas não há lacuna da lei, não havendo lugar a qualquer pagamento quando não há gozo do descanso anual, mas sem que tenha havido impedimento por parte do empregador. De qualquer forma o autor já recebeu a remuneração correspondente aos dias em causa, em singelo.

II – Os factos
Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
  O Autor A começou a trabalhar para a Ré B em 1970, mediante contrato reduzido a escrito [alínea A) dos factos assentes].
  A remuneração do Autor era constituída por um salário diário, acrescido de gratificações, gratificações essas que eram variáveis consoante o montante recebido pelos clientes do casino [alínea B) dos factos assentes].
  A Ré sempre entregou estas gratificações ao Autor [alínea C) dos factos assentes].
  Desde que a Ré B iniciou a sua actividade de exploração de jogos de fortuna e azar - na década de sessenta - as gorjetas dadas a cada um dos seus trabalhadores pelos seus clientes eram por si reunidas, contabilizadas e depois distribuídas por todos os trabalhadores dos casinos, de acordo com a categoria profissional a que pertenciam [alínea D) dos factos assentes].
  A remuneração diária fixa do Autor começou por ser de HKD$1.7, passou a ser de HKD$10 a partir de 1 de Julho de 1989 e passou a ser de HKD$15, a partir de 1 de Maio de 1995 [alínea E) dos factos assentes].
  A 28.07.2002, o Autor assinou com a C o contrato constante de fls. 174 a 183, cujo teor se dá por reproduzido [alínea F) dos factos assentes].
  O Autor remeteu à C a declaração de fls. 184/187, cujo teor se dá por reproduzido, com data de 28.08.2002 [alínea G) dos factos assentes].)
  A C respondeu a esta última carta do Autor através da carta de fls, 188, cujo teor se dá por reproduzido [alínea H) dos factos assentes].
  Desde o início da década de 60 que a Ré B foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros jogos em casinos por adjudicação do então território de Macau [alínea I) dos factos assentes].
  Esta licença terminou a 31.03.2002 pelo Despacho do Chefe do Executivo n° 259/2001 de 18.12.2001 [alínea J) dos factos assentes].
  Por despacho de Chefe do Executivo n° 76/2002 foi adjudicada uma licença de exploração à C [alínea L) dos factos assentes].
  O Autor, entre os anos de 1987 a 2001, recebeu as seguintes quantias:
  1987: $ MOP 133. 801,00
  1988: $ MOP 143. 502,00
  1989: $ MOP 170.491,00
  1990: $ MOP 186. 024,00
  1991: $ MOP 159. 655,00
  1992: $ MOP 193.110,00
  1993: $ MOP 197.612,00
  1994: $ MOP 214.782,00
  1995: $ MOP 223.518,00
  1996: $ MOP 224.083,00
  1997: $ MOP 218.482,00
  1998 : $ MOP 207.088,00
  1999: $ MOP 179. 067,00
  2000: $ MOP 179.370,00
  2001: $ MOP 181. 665,00 (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
O Autor nunca gozou férias enquanto esteve ao serviço da Ré (resposta ao quesito 2.º da base instrutória).
O Autor nunca gozou também um único dia de folga semanal enquanto esteve ao serviço da Ré (resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
E também nunca gozou, naquele período, de qualquer dos feriados obrigatórios (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
Apesar de ter trabalhado nos períodos acima referidos, nunca a Ré pagou ao Autor qualquer acréscimo salarial (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
No ano de 2002, o Autor deixou de trabalhar para a Ré; (resposta ao quesito 10 a base instrutória).
Sem que lhe fosse paga qualquer quantia pelo termo do contrato (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
Na consequência da concessão de uma licença de exploração, a C iniciou um processo de apresentação de propostas para a contratação dos trabalhadores anteriormente ao serviço da aqui Ré B (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
Provado o que consta da alínea F) dos factos assentes (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
Quando o Autor celebrou o contrato com a ora Ré foi ele informado - que auferiria um salário diário fixo, mas que teria direito a uma quota-parte, já previamente fixada para a sua categoria profissional, do total das gorjetas entregues pelos clientes da Ré a todos os trabalhadores (resposta ao quesito 14.º da base instrutória).
Ao longo de décadas de actividade, nunca a Ré teve dificuldades em conseguir pessoas interessadas em trabalhar para si (resposta ao quesito 17.º da base instrutória) (cfr. fls. 256-v a 260-v).

III – O Direito
1. As questões a resolver
Cotejando as conclusões apresentadas pela ré no recurso para o TSI e agora para o TUI, constata-se que as primeiras são 45 e as segundas 91, certamente por isso é que a primeiras alegações constam de 39 páginas e as segundas de 81.
O que se verifica é que a ré, no recurso para o TUI, optou por suscitar múltiplas questões novas, cuja apreciação não pediu quando recorreu para o TSI.
Ora, este Tribunal tem repetidamente entendido1 que o objecto do recurso é a decisão recorrida e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, salvo questões de conhecimento oficioso do tribunal.
Assim, e porque não estão em causa matérias de conhecimento oficioso do Tribunal, não se conhecerão as questões novas que não foram suscitadas no recurso da 1.ª instância para o TSI, salvo ilegalidades do Acórdão recorrido, sem relação com as questões suscitadas no recurso para o TSI.
De outra banda, em 3.º grau de jurisdição, em matéria cível, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito, tendo de aceitar os factos considerados provados pelo TSI, salvo excepções que agora não estão em causa (arts. 47.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 639.º e 649.º do Código de Processo Civil).
Não se conhecerá, portanto, da questão de saber:
- Se houve violação do disposto nos arts. 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, doravante designado por Regime Jurídico das Relações Laborais (RJRL), que estabelecem - na tese da ré - o princípio do mais favorável e a prevalência de regimes convencionais sobre o legal, desde que mais favorável ao trabalhador, em virtude de o autor ter aceite que aos dias de descanso não corresponderia nenhum salário, por ser claro para as duas partes que o gozo normal dos dias de descanso poria em causa o funcionamento dos casinos existentes, sendo que o regime acordado entre as partes era mais favorável que o legal para os trabalhadores.
É que dos factos provados não resultam os pressupostos em que a ré assenta a sua alegação: i) o autor ter aceite que aos dias de descanso não corresponderia nenhum salário; ii) ser claro para as duas partes que o gozo normal dos dias de descanso poria em causa o funcionamento dos casinos existentes.
As questões a conhecer são, pois, as seguintes:
- Se as gorjetas recebidas pelo autor, enquanto trabalhador da B, integravam o respectivo salário;
- Se o autor renunciou validamente à compensação pelo não gozo dos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios;
- Se o salário do autor era em função do dia ou do mês;
- Qual a remuneração ou indemnização pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal e anual e nos feriados obrigatórios.

  2. Recurso da ré
  2.1. Contrato de trabalho. Retribuição ou salário. Gratificações. Gorjetas
  2.1.1. Noções de contrato de trabalho e de retribuição ou salário.
A primeira questão a apreciar consiste em saber se as gorjetas recebidas pelo autor integravam o seu salário.
Para se examinar a questão em apreço, convém recordar algumas noções prévias.
Concluíram as decisões dos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias que entre o autor e a ré se estabeleceu um contrato de trabalho.
Na noção do Código Civil de 1966 – vigente ao tempo do início da colaboração entre o autor e a B – “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta” (art. 1152.º).
E a mesma noção foi mantida no actual Código Civil, no seu art. 1079.º, n.º 1.
Os factos provados mostram que, na verdade, o autor e ré celebraram um contrato de trabalho, pelo qual o primeiro se obrigou para com a segunda a prestar a sua actividade nos casinos a esta pertencentes, sob a autoridade da B e mediante determinada quantia em dinheiro.
Retribuição ou salário podem considerar-se sinónimos. O primeiro é usado, como se viu, na noção de contrato de trabalho do Código Civil. O segundo no RJRL, em cujo art. 25.º, n.º 2, se dispõe: “Entende-se por salário toda e qualquer prestação, susceptível de avaliação em dinheiro, seja qual for a sua designação ou forma de cálculo, devida em função da prestação de trabalho e fixada ou por acordo entre empregador e trabalhador, ou por regulamento ou norma convencional ou por norma legal”.
Como sublinha BERNARDO LOBO XAVIER2 a retribuição é a contraprestação da prestação de actividade ou de serviço subordinado, constituindo “a obrigação essencial a prestar no contrato de trabalho pelo empregador, obrigação de índole patrimonial e marcadamente pecuniária, devida em todos os casos (não tendo carácter meramente eventual), ligada por uma relação de reciprocidade à actividade prestada, tendo nela a sua causa”.
Convém esclarecer que o conceito de retribuição não é o mesmo em todos os domínios. É sabido que o Direito Fiscal tem critérios diversos do Direito do Trabalho e o mesmo pode acontecer para efeitos do regime jurídico da segurança social e da disciplina jurídica de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
No contrato de trabalho, a retribuição é fixada em função do tempo, correspondendo à contrapartida, de um mês, de uma quinzena, de um dia ou de uma hora de prestação do trabalho3.
Como ensina BERNARDO LOBO XAVIER4, a noção de retribuição ou de salário, em sentido jurídico, integra quatro elementos principais:
1.º É uma prestação regular e periódica;
2.º Em dinheiro ou em espécie;
3.º A que o trabalhador tem direito, por título contratual e normativo e que corresponde a um dever da entidade patronal;
4.º Como contrapartida do seu trabalho.
Todos estes elementos se podem surpreender na noção de salário constante do n.º 2 do art. 25.º do RJRL.

2.1.2. Modalidades da retribuição. Estrutura do salário
De acordo com o n.º 3 do art. 25.º do RJRL, o salário pode ser constituído apenas em dinheiro (prestação pecuniária), ou em dinheiro e géneros ou prestação de outra natureza, mas neste caso o valor da prestação pecuniária não deve ser inferior a 50% do montante total do salário.
A retribuição pode ser certa ou variável, em função do rendimento, produtividade ou de outros factores. E pode ser mista, em parte certa e em parte variável.
Quanto à estrutura da retribuição, ela integra uma remuneração de base, certa, em função do tempo, que pode ser acrescida de outras remunerações, que são prestações complementares ou acessórias, que estão ligadas a contingências especiais da prestação de trabalho (penosidade, perigo, isolamento, toxicidade), ao rendimento, mérito e produtividade (individual ou por equipa) ou mesmo a certas situações pessoais dos trabalhadores (antiguidade, diuturnidades, ou até idade).5
Relativamente às comissões ou percentagens sobre as vendas, não há unanimidade quanto a qualificá-las como parte variável da retribuição, mas quando estas prestações são regulares e estão previstas no contrato de trabalho, a maioria da doutrina se incline como revestindo carácter salarial.6
Determinadas atribuições patrimoniais pagas em certas épocas do ano, como os subsídios de férias, do Ano Novo Chinês, de Natal ou gratificação de balanço são considerados como correctivos do salário.7

2.1.3. Gratificações. Gorjetas
Há que distinguir as gratificações pagas pela entidade patronal e as gratificações pagas por terceiros.
De entre as primeiras, ainda há que fazer a distinção entre as atribuições que têm um carácter de recompensa ou de prémio pelos bons serviços, pagas ocasionalmente, por mero espírito de liberalidade, que não se consideram como fazendo parte do salário.
Mas, ao contrário destas gratificações extraordinárias, há outras – igualmente a cargo do empregador - que se devem entender como fazendo parte da retribuição e que são devidas por força do contrato ou das normas legais, ainda que o seu recebimento esteja condicionado a bons serviços, que pela sua importância e regularidade não podem deixar de ser consideradas salário8.
Tem-se, também, posto o problema de saber se as gratificações ou gorjetas pagas por terceiros (não pelo empregador) são consideradas como fazendo parte da retribuição ou salário.
O caso envolve maior melindre naqueles casos em que as gorjetas representam uma parte apreciável do rendimento dos trabalhadores, como acontece com os empregados de cafés, bares e restaurantes, motoristas de táxi, guias turísticos e empregados de casino.
A resposta que tem sido dada pela doutrina portuguesa, com base em normas semelhantes às do Direito de Macau, é a de que as gorjetas não constituem salário.
E a razão fundamental é esta. Como vimos, um dos elementos da retribuição é o desta corresponder a um dever da entidade patronal. Na verdade, o salário é sempre pago pela entidade patronal, porque constitui uma obrigação a cargo do empregador.
Escreve JÚLIO GOMES9 que a “retribuição corresponde, com efeito, a uma obrigação do empregador e a sua proveniência é frequentemente apontada como uma das suas características essenciais”.
Ora, as gorjetas agora em análise, têm como característica não serem pagas pela entidade patronal, mas por terceiros.
Determinadas gratificações constituem salário, como vimos, porque são devidas pelo empregador e têm um carácter regular ou periódico (outro dos elementos da retribuição). Já as pagas pelo empregador, que não constituem uma obrigação, porque não são devidas pelo contrato de trabalho ou pelas normas que o regem, não fazem parte do salário. Constituem meras liberalidades do empregador.
Como explica o Prof. JOÃO AMADO, em parecer junto aos autos pela ré, “a retribuição, repete-se, consiste numa prestação obrigatória a cargo do empregador: se a prestação em causa não é juridicamente obrigatória ou não é efectuada pelo empregador – e as gorjetas não são uma nem outra coisa – então não estaremos perante uma prestação de natureza retributiva”.
Esta é, também a opinião de BERNARDO LOBO XAVIER, nas obras que temos vindo a citar10:
  “Caso mais difícil é o das gratificações pagas por terceiros que utilizam especialmente os serviços do trabalhador. Em alguns casos essas gratificações correspondem a uma parcela muito significativa do rendimento dos trabalhadores (v.g., arrumadores, empregados de restaurantes, bares, cafés, etc., cabeleireiros, motoristas de táxi, empregados de casino). Pensamos que tais gratificações não podem ser consideradas como retribuição”.
Também MENEZES CORDEIRO11 entende que “(e)m termos jurídicos, estão seguramente excluídas da retribuição as gratificações dadas por terceiros, mesmo quando elas alcancem parcelas consideráveis dos proventos do trabalhador”. E continua “(a)ssim sucede, por exemplo, com os trabalhadores dos casinos ou com trabalhadores do sector hoteleiro que têm contacto directo com o público”.
JÚLIO VIEIRA GOMES 12 comunga do mesmo pensamento, sem, no entanto, deixar de suscitar algumas questões:
“Face ao exposto, compreende-se que a doutrina dominante negue, entre nós, que as gorjetas (1919) integrem o conceito de retribuição. Com efeito, pode dizer-se que elas não correspondem a uma prestação do empregador, mas sim de um terceiro e que não são juridicamente obrigatórias, tendo uma natureza eventual. Ainda que também nós perfilhemos no essencial tal entendimento, não podemos deixar, no entanto, de referir que a questão é mais delicada do que, à primeira vista, poderia parecer. Desde logo, porque sempre houve quem sustentasse que a gorjeta poderia representar uma retribuição que resultaria ou da renúncia do empregador em cobrar a parte respeitante ao serviço ao cliente ou na própria ocasião ou possibilidade dada ao trabalhador de receber as referidas gorjetas, assumindo o empregador, inclusive, a obrigação de não tomar qualquer atitude que comprometa a recepção das mesmas. Mas, e sobretudo, porque, mesmo quem não atribui natureza retributiva às gorjetas, pode admitir que, embora sendo realidades distintas, não deixam de interferir mutuamente (1920). Pode mesmo perguntar-se se quando a lei se preocupou, por exemplo na alteração de funções, dentro e fora do objecto do contrato de trabalho, com a manutenção da retribuição, não deverá relevar para este efeito uma perda de gorjetas resultante de, na nova função que é exigida ao trabalhador, não existir esse uso social...
Destaque-se, ainda, que mesmo que as gorjetas não sejam retribuição, tal não significa que a elas não se deva atender, por exemplo, aquando da determinação do prejuízo sofrido pelo trabalhador na sequência de um despedimento ilícito (1921)”.
PEDRO ROMANO MARTINEZ13 refere que da contrapartida da actividade efectuada, como elemento da retribuição, retira-se que esta assenta numa relação sinalagmática. E acrescenta “(p)or este motivo, sempre que o trabalhador receber prestações de terceiros não se estará perante uma retribuição; é o caso típico das gorjetas3 que, muitas vezes, correspondem a um acréscimo salarial significativo, mas não se enquadram na noção de retribuição, porque estão para além do sinalagma contratual. Como foi referido, no Direito Fiscal usam-se outros critérios com vista à cobrança de impostos, mas para o Direito do Trabalho torna-se necessário que a prestação se enquadre no contexto da relação sinalagmática para ser entendida como remuneração”.
  ABÍLIO NETO14 também se pronuncia no mesmo sentido, citando F. TOMÁS RESENDE15:
  “Duas formas de compensar os serviços do trabalhador - as chamadas gorjeta e taxa de serviço – têm especialmente suscitado algumas dúvidas de caracterização como processos de retribuição.
  A gorjeta, que constitui um donativo de terceiro em obediência ao uso, e tende a compensar os serviços recebidos por aquele, não parece dever considerar-se, em princípio, como retribuição, por não ter a natureza de prestação exigível.
  Quanto à taxa de serviço, as dúvidas afiguram-se menos fundadas. Aqui há obrigatoriedade de pagamento, primeiro do cliente para com o titular do estabelecimento, e depois deste que recebe a taxa em nome próprio, como entidade patronal, para com os seus trabalhadores, incluindo aqueles que não tenham contribuído directamente na prestação do serviço. Mediante a formação de um «fundo», a repartir, segundo certas percentagens ou sistemas de pontuação, a taxa de serviço é na realidade um processo de determinar a medida da retribuição que globalmente corresponde ao pessoal e a que cabe a cada um dos respectivos componentes”.
Pode, pois, dizer-se que, é praticamente pacífico o entendimento da doutrina portuguesa, de que as gorjetas dadas por terceiros aos trabalhadores não constituem retribuição ou salário – mesmo as auferidas por empregados de casino - sem prejuízo de elas poderem ser consideradas como parte do rendimento do trabalhador, para efeito de responsabilidade civil, nos termos gerais, a reparar pelo empregador ou por terceiro. Suponhamos, como exemplo da segunda hipótese, a lesão do trabalhador - que recebe habitualmente quantias avultadas a título de gorjeta - em acidente de viação, que o incapacite temporária ou permanentemente para o trabalho.

2.1.4. As gorjetas nos casinos de Macau
Vejamos, agora, se as características das relações laborais nos casinos de Macau e a prática das gratificações ou gorjetas dadas pelos clientes dos casinos conduzem a um entendimento diverso do exposto, relativamente à natureza das gorjetas.
Os factos pertinentes dos autos são os seguintes:
O autor trabalhou para a ré desde 1970 até 2002.
Desde o início de 1960 até 31 de Março de 2002 a ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos por adjudicação do então Território de Macau.
  Dessa relação, o Autor recebia um rendimento diário fixo que era inicialmente de HKD$1.70; de Julho de 1989 a Abril de 1995, de HKD$10.00; e a partir de Maio de 1995, de HKD$15.00.
Desde a data em que a Ré iniciou a actividade de exploração de jogos de fortuna e azar, as gorjetas dadas pelos seus clientes eram por si reunidas, contabilizadas e depois distribuídas por todos os trabalhadores dos casinos que explorou, de acordo com a categoria profissional a que pertenciam.
O Autor recebia, além do rendimento fixo diário um rendimento variável calculado diariamente constituído pelas gorjetas dadas pelos clientes da Ré, calculadas à luz das regras fixadas pela mesma.
A Ré sempre entregou as gorjetas regularmente aos trabalhadores, incluindo o autor.
O autor recebeu o seguinte rendimento total, incluindo o salário e as gorjetas:
  O Autor recebeu o rendimento:
  1987: $ MOP 133. 801,00
  1988: $ MOP 143. 502,00
  1989: $ MOP 170.491,00
  1990: $ MOP 186. 024,00
  1991: $ MOP 159. 655,00
  1992: $ MOP 193.110,00
  1993: $ MOP 197.612,00
  1994: $ MOP 214.782,00
  1995: $ MOP 223.518,00
  1996: $ MOP 224.083,00
  1997: $ MOP 218.482,00
  1998 : $ MOP 207.088,00
  1999: $ MOP 179. 067,00
  2000: $ MOP 179.370,00
  2001: $ MOP 181. 665,00 (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
Pode concluir-se que:
- As gorjetas dadas pelos clientes dos casinos de Macau não são recebidas individualmente pelos trabalhadores, directamente dos clientes;
- Recebidas as gorjetas, elas são reunidas numa caixa e distribuídas posteriormente pelos diversos empregados do casino;
- É a entidade patronal que fixa as regras de distribuição das gorjetas e as distribui, regularmente, a cada um dos trabalhadores, mas calculadas diariamente.
Este é, também o sistema adoptado em Portugal16, com uma diferença: em Macau era a B que fixava as regras de distribuição das gorjetas. Em Portugal, as regras estão fixadas através de regulamento governamental, a Portaria n.º 1159/90, de 27.11, alterada pela Portaria n.º 355/2004, de 5.4.
Justificará a diferença apontada, que as gorjetas façam, em Macau, parte do salário?
Julga-se que não.
Repare-se que não se provou que a entidade patronal retirasse para si nenhuma parte das gorjetas (mesmo que o tivesse feito, poderia estar em causa apropriação indevida de bens alheios, com a consequente obrigação de restituição, sem prejuízo de procedimento criminal que ao caso coubesse. Mas, ainda assim, tal apropriação não teria como efeito a transmutação da natureza das gorjetas em retribuição).
A entidade patronal limita-se a fixar as regras de distribuição pelos trabalhadores. Evidentemente que estas regras poderiam ter sido definidas, em Macau, pelo legislador, tal como em Portugal. Mas não tendo sido, parece que não haveria outra solução a não ser o explorador dos casinos fixar as regras. A que regras haveria que recorrer e quem fixaria tais regras, se não tivesse sido a B a fixá-las?

2.1.5. Montante dos salários
Mas, dir-se-á, existe ainda outra diferença substancial entre a realidade de Macau e a portuguesa.
Em Portugal a retribuição dos empregados dos casinos é bastante superior à dos de Macau. O autor auferia até Junho de 1989 HKD$1.70 diariamente, ou seja, HKD$51, mensalmente, até Abril de 1995, HKD$10.00 diariamente, ou seja, HKD$300, mensalmente e depois de Maio de 1995, HKD$15, diariamente, ou seja, HKD$450, mensalmente.
Mas há que ter em conta que, em Portugal, existe uma retribuição mínima garantida por lei, pelo que os trabalhadores dos casinos, como todos os outros, auferem um salário que não pode ser inferior ao legalmente fixado, anualmente.
Em Macau, não existe um salário mínimo imposto por lei, sendo o salário fixado por acordo entre o empregador e o trabalhador. Por isso se justificam as diferenças entre as retribuições dos trabalhadores de Macau e os de Portugal.
Mas esta diferença, justamente pela razão que a justifica, não pode fundamentar a alteração na natureza das gorjetas.

2.1.6. O salário justo
Por outro lado, o Acórdão recorrido entende que o salário do autor não é um salário justo, que é garantido pelo art. 25.º, n.º 1 do RJRL.
Efectivamente, o art. 25.º, n.º 1 do RJRL dispõe que “Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo”.
E, no art. 7.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma legal, se prescreve, como obrigação do empregador, pagar ao trabalhador “um salário que, dentro das exigências do bem comum, seja justo e adequado ao seu trabalho”.
Ainda, com relação com a questão em apreço, impõe-se mencionar que o n.º 2 do art. 27.º do RJRL estatui que “O montante do salário deve ser fixado tendo em conta as necessidades e interesses do trabalhador, a evolução do custo de vida ...”.
E é sabido que o art. 23.º, 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social”.
E que o art. 7.º do Pacto sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais assegura que os Estados respectivos reconhecem o direito de todas as pessoas a terem uma remuneração que proporcione um salário equitativo e uma existência decente para eles próprios e para as suas famílias.17
Assim, como explica o Prof. JOÃO AMADO, no mencionado parecer, o direito a um salário justo, consagrado pelo art. 25.º do RJRL, pode funcionar como uma instância de controle jurisdicional evitando que a faculdade de modulação de conteúdo contratual reconhecida às partes, degenere na fixação de um salário intoleravelmente reduzido, que coloque em cheque a satisfação das necessidades básicas do trabalhador e a sua dignidade pessoal.
Mas o julgador não pode abstrair da realidade e esquecer que os empregados de casino de Macau acedem a uma atribuição patrimonial muito elevada, exactamente por trabalharem nos casinos.
O autor, entre 1987 e 2001 recebeu de salário e gorjetas, cerca de quinze mil patacas mensais.
Ora, sabe-se, pelas estatísticas publicadas, que, na década de noventa do Século XX, a média dos salários no sector privado, em Macau, não ultrapassava as cinco mil patacas mensais.
  Como refere o Prof. MONTEIRO FERNANDES 18 “a referência ao "salário justo" caracteriza-se por evidente relatividade. Não é susceptível de leitura universal que permita legitimar ou censurar este ou aquele regime económico das relações de trabalho. Desde logo, a referência legal deve ser lida no contexto valorativo do diploma em que surge. E, nesse contexto, as disposições citadas evidenciam, manifestamente, que a preocupação fundamental do legislador foi a de garantir que a relação de trabalho assegurasse um rendimento suficiente e adequado ao trabalhador”. E acrescenta que no caso da relação entre a retribuição contratada entre a B e os seus trabalhadores e o valor das gorjetas normalmente recebidas por estes torna “claro que o escasso valor da primeira tinha uma relação lógica e funcional evidente com a importância significativa da segunda”, podendo dizer-se que “o contrato garantiu ao trabalhador um rendimento correspondente a uma pequena retribuição fixa e uma importante oportunidade de ganho”. Concluiu, assim, que o rendimento total decorrente da execução do contrato atingiria valores capazes de corresponderem a uma adequada e justa contrapartida do trabalho prestado.
  Na mesma senda discorre o Prof. JOÃO AMADO, no referido parecer, dizendo que “Com efeito, se é certo que o salário dos empregados de casino se mostra bastante reduzido, importa não esquecer nem menosprezar as inegáveis e significativas particularidades deste sector de actividade, designadamente a circunstância de, tradicionalmente, a maior parte dos rendimentos de trabalho auferidos por esses empregados resultar de gorjetas/gratificações esportuladas por terceiros. Tipicamente, a um salário diminuto adicionam-se aqui gratificações substanciais, tudo compondo um quadro, em matéria de rendimentos de trabalho muito distante daquela situação de intolerabilidade ou repugnância que permite aos tribunais recorrer ao art. 25.º, n.º 1, do RJRL, em ordem a sindicar/corrigir o ajuste contratual efectuado pelos contraentes”.
  Parafraseando o mesmo parecer, “a inegável escassez do salário normalmente ajustado no sector dos casinos também não poderá servir de álibi para uma qualquer «jurisprudência dos sentimentos» que, ainda que imbuída as melhores intenções, acabe por transmutar as gratificações oferecidas por terceiros (donativos) em retribuição devida pelo empregador (salário)”.
  Na verdade, aos tribunais não cabem funções redistributivas dos rendimentos, nem intervenções de carácter social. Em particular, ao TUI cumpre, essencialmente, zelar pela boa aplicação do direito aos factos provados.
E, de acordo com o bom direito, as gorjetas recebidas pelos empregados de casino, em Macau, não fazem parte do salário. 19

2.2. Renúncia do autor à compensação pelo não gozo dos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios
A ré alegou que o autor renunciou validamente à compensação pelo não gozo dos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios.
Mas nada na matéria provada vai nesse sentido. Ora, o ónus da prova cabia à ré, por ser facto extintivo do direito do autor (art. 335.º, n.º 2 do Código Civil).
Não tendo feito tal prova, improcede a questão suscitada.

2.3. Salário diário ou salário mensal
A terceira grande questão a resolver é a de saber se o salário do autor era mensal ou diário, para efeitos de apurar o valor do salário relativo ao trabalho realizado nos períodos de descanso semanal.
Já vimos que, no contrato de trabalho, a retribuição é fixada em função do tempo, correspondendo à contrapartida, de um mês, de uma quinzena, de um dia ou de uma hora de prestação do trabalho.
A asserção que antecede refere-se às unidades de cálculo da retribuição: ao dia, à semana ou ao mês.
Mas, como recorda MONTEIRO FERNANDES 20 “(h)á no entanto que distinguir entre as unidades de cálculo da retribuição e os seus períodos de pagamento (o salário pode ser determinado com base no dia ou na semana, mas pago somente no fim de cada mês)”.
“Significa isto que a retribuição pode ser estipulada com base na hora ou no dia de trabalho e, no entanto, vencer-se – ou seja, tornar-se exigível - somente de semana a semana ou de mês a mês”.
O Acórdão recorrido pressupôs que o salário do autor era mensal, mas não explicou porquê. Não parece desajustado recorrer a Acórdãos do TSI em que se dá tal explicação, até porque nesta matéria todos os Juízes deste Tribunal estarão de acordo no sentido que o salário era mensal.
Por exemplo, no Acórdão de 17 de Maio de 2007, no Processo n.º 162/2007, diz-se que se o salário fosse diário, em função do período efectivamente prestado, a laboração contínua e permanente da B poderia sair comprometida, bastando que algum trabalhador não viesse a comparecer nos casinos, ou viessem a trabalhar dia sim, dia não, como bem entendessem.
Mas salvo devido respeito, não se vislumbra qualquer relação entre a fixação da retribuição em função do tempo e a vinculação do trabalhador a prestar o trabalho a que se obrigou. Na verdade, mesmo que a retribuição estivesse fixada em função do dia e não do mês, não conduziria a que os trabalhadores comparecessem ou deixassem de comparecer ao trabalho, como bem entendessem. Quer dizer, apesar de os trabalhadores serem remunerados em função do dia, isso é perfeitamente compatível com a obrigação de comparecerem diariamente no seu posto de trabalho.
Ora, costuma dizer-se que, contra factos não há argumentos. Tendo-se provado que o autor era remunerado ao dia, não pode concluir-se que ele era remunerado ao mês, com base em considerações, aliás, manifestamente pouco consistentes. Isto, sem prejuízo de a remuneração se poder vencer, ou seja, ser paga, com outra periodicidade, que não diária, nos termos atrás descritos, mas que nem resulta dos factos provados.
Em conclusão, o autor era remunerado em função do dia de trabalho.

2.4. Salário pelo trabalho em dia de descanso semanal
Na tese da ré, não deve ser obrigada a pagar uma quantia adicional a título de trabalho realizado pelo autor nos dias de descanso semanal posteriores à data da entrada em vigor do RJRL já que, nos termos da alínea b) do n.º 6 do art. 17.º do RJRL, o trabalho prestado em dias de descanso semanal, para os trabalhadores que aufiram salário diário, é pago pelo montante acordado entre o trabalhador e o empregador. Não tendo sido acordado qualquer valor, deve recorrer-se aos usos e costumes do sector, segundo os quais a remuneração é a paga normalmente, sendo que o autor já recebeu a quantia relativa ao salário normal desses dias. Para tal, invoca em seu abono, um parecer que juntou, da autoria do Dr. MIGUEL QUENTAL.
Não parece ter razão.
Na redacção original do n.º 6 do art. 17.º do RJRL o trabalho prestado em dia de descanso semanal dava sempre direito a ser pago pelo dobro da retribuição normal.
O n.º 6 do art. 17.º do RJRL, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 32/90/M, de 9 de Julho, dispõe:
  “6. O trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser pago:
  a) Aos trabalhadores que auferem salário mensal, pelo dobro da retribuição normal;
  b) Aos trabalhadores que auferem salário determinado em função do resultado efectivamente produzido ou do período de trabalho efectivamente prestado, pelo montante acordado com os empregadores, com observância dos limites estabelecidos nos usos e costumes”.
  Ao caso aplica-se a alínea b), dado que o autor era remunerado, não em função do mês, mas ao dia (salário determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado).
  O pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal é pago pelo montante acordado com os empregadores.
  Não tendo havido acordo entre autor e ré sobre a forma de remunerar o trabalho em dia de descanso semanal, existe uma lacuna quanto à forma de determinar tal pagamento.
  É que a referência, na parte final da alínea b) aos “usos e costumes”, não tem por finalidade substituir o acordo entre as partes, nem pode constituir nenhum acordo tácito entre as partes, que não se vislumbra a partir dos factos provados. Os usos e costumes são apenas um limite para o montante acordado pelas partes.
  Ora, não tendo havido qualquer acordo entre as partes, há falta de previsão legal sobre o pagamento prestado em dia de descanso semanal, para aqueles que não auferem salário mensal.
  Há que integrar a lacuna, por meio da norma aplicável aos casos análogos (art. 9.º, n.º 1, do Código Civil, correspondendo ao art. 10.º, n.º 1 do Código Civil de 1966).
Ora a norma aplicável aos casos análogos é, manifestamente, a da alínea a) do mesmo n.º 6 do art. 17.º, que se refere à remuneração em dia de descanso semanal, para os que recebem em função do mês, ou seja o dobro da retribuição, no caso, diária.
Por outro lado, para haver lugar à remuneração do trabalho prestado em dia de descanso semanal não é necessário que o empregador tenha impedido o trabalhador de gozar tal descanso. Basta que tenha havido uma conduta do empregador a determinar o trabalho nesses dias, como não pode ter deixado de ser, pois é a ré que alega que o descanso dos trabalhadores poria em causa o funcionamento dos casinos.
Estas considerações aplicam-se também ao trabalho nos dias feriados.
Mas já tem razão a ré ao dizer que o autor já recebeu o salário normal correspondente ao trabalho nesses dias de descanso, pelo que, agora, só tem direito a outro tanto, e não em dobro, como se decidiu no Acórdão recorrido, que não explica, aliás, porque não levou em conta o salário já pago. É que está em causa o pagamento do trabalho em dia de descanso semanal, pelo dobro da retribuição normal, mas o autor foi pago já em singelo.

2.5. Indemnização pelo trabalho em dias de descanso anual
2.5.1. Vigência do Decreto-Lei n.º 101/84/M
No tocante ao montante a pagar na vigência do Decreto-Lei n.º 101/84/M, de 25 de Agosto, a ré não impugna o critério do Acórdão recorrido, de compensar os dias com o salário correspondente em singelo. Discorda apenas de o Acórdão recorrido não ter considerado que tais dias já foram pagos.
Mas sem razão, já que dispõe o n.º 2 do art. 24.º do Decreto-Lei n.º 101/84/M:
“No momento da cessação da relação de trabalho, se o trabalhador não tiver ainda gozado o respectivo período de descanso anual, ser-lhe-á pago o salário correspondente a esse período”.
Ora, a norma pressupõe que o salário correspondente ao trabalho realizado já foi pago, pelo que se trata de um pagamento adicional, que acresce ao salário normal.

2.5.2. Vigência do RJRL
Relativamente ao trabalho do autor, em dias de descanso anual, que não gozou, na vigência do RJRL – e a lei atribui aos trabalhadores o direito a gozar seis dias úteis de descanso anual, sem perda de salário, em cada ano civil (art. 21.º, n.º 1 do RJRL) – o art. 24.º deste diploma legal dispõe:
“Artigo 24.º
(Violação do direito ao descanso anual)
  O empregador que impedir o trabalhador de gozar o período de descanso anual pagará ao trabalhador, a título de indemnização, o triplo da retribuição correspondente ao tempo de descanso que deixou de gozar”.
A lei comina uma indemnização – no triplo da retribuição - ao trabalhador, a suportar pelo empregador que impedir o gozo do direito em causa.
Mas o TSI entendeu não ter havido impedimento ao gozo do descanso anual por parte da B, não havendo lugar à aplicação do art. 24.º e feito, então, aplicação analógica do art. 17.º, n.º 6, alínea a), todos do RJRL (dobro da retribuição).
Nas alegações, a ré diz que o Acórdão atribuiu ao autor o triplo da retribuição.
Ora, não foi assim, já que o Acórdão recorrido apenas condenou no pagamento em dobro.
Seja como for, a ré não impugna a decisão tomada nos autos. Impugna uma decisão que não existe.
Logo, não se conhece da questão – porque efectivamente não foi impugnada a decisão recorrida - e mantém-se a decisão recorrida de indemnizar o autor pelo dobro da retribuição diária.
Porém, tem razão a ré ao dizer que o autor já recebeu o salário normal correspondente ao trabalho nesses dias de descanso, pelo que, agora, há que deduzir tal montante à indemnização em dobro. Trata-se do regime do art. 17.º, n.º 6, alínea a), do RJRL que o TSI aplicou analogicamente, questão que não abordamos porque não suscitada. Apenas conhecemos da questão de haver que compensar o salário devido com o já pago, questão suscitada.

2.6. Salário pelo trabalho em dias de feriado obrigatório
Está em causa o trabalho prestado pelo autor nos dias de feriado obrigatório (1 de Janeiro, três dias no Ano Novo Chinês, 1 de Maio e 1 de Outubro), em que a lei prevê o direito à retribuição (art. 19.º, n. os 1 e 3 do RJRL).
O art. 20.º, n.º 1 do mesmo diploma dispõe que “O trabalho prestado pelos trabalhadores nos dias de feriado obrigatório, referidos no n.º 3 do artigo anterior, dá direito a um acréscimo salarial nunca inferior ao dobro da retribuição normal ...”.
Quer isto dizer que a lei atribui uma remuneração nunca inferior ao dobro da normal, que acresce a esta, pelo que bem decidiu o Acórdão recorrido ter o trabalhador direito ao triplo da retribuição diária, já que não se provou terem as partes acordado uma remuneração superior para tal trabalho.
Mas, como o autor já foi pago em singelo, terá, agora, direito ao dobro da retribuição.

2.7. Liquidação do julgado
Face ao que antecede, a liquidação do devido pela ré ao autor, é a seguinte:

 
Descanso Semanal
Descanso Anual
Feriados Obrigatórios

D
x
Q
$HK
x
V
=
T
$HK
D
x
Q
$HK
x
V
=
T
$HK
D
x
Q
$HK
x
V
=
T
$HK
1987
 
 
 
 
 
 
 
6
x
1.7
x
1
 
10.2
 
 
 
 
 
 
 
1988
 
 
 
 
 
 
 
6
x
1.7
x
1
 
10.2
 
 
 
 
 
 
 
JAN-JUN
1989
4
x
1.7
x
1
=
6.8
3
x
1.7
x
1
 
5.1
 
 
 
 
 
 
 
JUL-DEZ
1989
35
x
10
x
1
=
350
3
x
10
x
1
 
30
2
x
10
x
2
=
40
1990
52
x
10
x
1
=
520
6
x
10
x
1
=
60
6
x
10
x
2
=
120
1991
52
x
10
x
1
=
520
6
x
10
x
1
=
60
6
x
10
x
2
=
120
1992
52
x
10
x
1
=
520
6
x
10
x
1
=
60
6
x
10
x
2
=
120
1993
52
x
10
x
1
=
520
6
x
10
x
1
=
60
6
x
10
x
2
=
120
1994
52
x
10
x
1
=
520
6
x
10
x
1
=
60
6
x
10
x
2
=
120
JAN-ABR
1995
17.33
x
10
x
1
=
173.3
2
x
10
x
1
=
20
4
x
10
x
2
=
80
MAI-DEZ
1995
34.67
x
15
x
1
=
520.05
4
x
15
x
1
=
60
2
x
15
x
2
=
60
1996
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
1997
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
1998
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
1999
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
2000
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
2001
52
x
15
x
1
=
780
6
x
15
x
1
=
90
6
x
15
x
2
=
180
TOTAL$HK
HK$8,330.15
HK$975.50
HK$1,860
TOTAL GERAL HK$11,165.65

IV – Decisão
Face ao expendido, julgam parcialmente procedente o recurso da ré, condenando-a a pagar ao autor a quantia de HK$11,165.65 (onze mil cento e sessenta e cinco dólares de Hong Kong e sessenta e cinco cêntimos)
Custas na proporção do vencido, tanto neste Tribunal, como no TSI.
  Macau, 27 de Fevereiro de 2008.
  
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 Entre outros, cfr. o Acórdão de 2 de Maio de 2007, no Processo n.º 15/2007.
2 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, Lisboa/São Paulo, Verbo, 2.ª ed, 1999, p. 367 e 368.
3 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 375.
4 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 382 e seg. e Introdução ao estudo da retribuição no direito do trabalho português, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano I, 2.ª série, n.º 1, Janeiro-Março de 1986, p. 81e segs.
5 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 387 e Introdução..., p. 87 e 88.
6 Neste sentido, sem dúvidas em considerar as comissões como fazendo parte do salário, ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 11.ª ed., 1999, p. 454 e JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 773 e MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1997, p. 724 e 725 e nota (16).
BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 391 e nota 4, entende que nem sempre será melhor solução, sobretudo quando se divisa uma situação de distinção nítida entre o contrato de trabalho e as suas remunerações próprias e um contrato conexo de agência, com comissão ou percentagem.
7 ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito... , p. 450.
8 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 390 e Introdução..., p. 91 e 92.
9 JÚLIO GOMES, Direito do Trabalho, Volume I, Relações..., p. 767.
10 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 391 e Introdução..., p. 92.
11 MENEZES CORDEIRO, Manual..., p. 729 e nota (36).
12 JÚLIO VIEIRA GOMES, Direito..., p. 769 e 770 e nota (1920).
1919 ...
1920 GIULIO MUSACCHIA, ob. cit., pág. 306: "non poche reciproche interferenze". O autor refere a possibilidade (por exemplo, quanto aos croupiers) de o próprio montante da retribuição ter em conta a existência normal de gorjetas e parece aceitar a possibilidade de um contrato de trabalho em que a retribuição fosse inteiramente excluída em atenção à frequência e importância das gorjetas.
1921 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Janeiro de 1996, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1996, vol. I, págs. 249 e segs., em cujo sumário se pode ler que "(a)s gratificações recebidas pelos trabalhadores dos quadros das salas de jogos dos casinos não correspondem a uma prestação periódica devida pela entidade patronal, como contrapartida da actividade destes, antes sendo formadas pelas quantias doadas pelos jogadores, não entrando no conceito de retribuição. Despedido ilicitamente um trabalhador daquela espécie, ele vê-se privado de receber as gratificações durante o espaço de tempo em que o despedimento prevaleceu e, como acto ilícito que foi, o trabalhador tem o direito de receber o montante das gratificações que lhe caberiam e por cujo cumprimento é responsável a entidade patronal, nos termos gerais de direito".
...
Víde, igualmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 1996, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXXVI, 1997, págs. 691 e segs.: "(a) entidade patronal, casino, na sequência de despedimento ilícito, constitui-se na obrigação de indemnizar o trabalhador por este não ter recebido as gratificações correspondentes a dádivas de clientes".
13 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 2005, p. 555 e nota 3.
  3 Não considerando que as gratificações prestadas por terceiros aos «croupiers» de casinos não integram o conceito de retribuição, cfr. Ac. STJ de 23/1/1996, CJ (STJ) 1996, T. I, p. 249; Ac. Rel. Lx. de 8/3/1995, CJ XX, T. II, p. 165. Mas incluem-se no conceito de retribuição as «luvas» que um clube de futebol se obriga a pagar a um seu jogador (Ac. Rel. Lx. de 26/1/1994, CJ XIX, T. I, p. 176).
  É esta também a solução preconizada para o Direito espanhol por MONTOYA MELGAR/GALIANA MORENO/SEMPERE NAVARRO/RÍOS SALMERÓN, Comentário, cit., anot. art. 26.°, p. 106. De modo diverso, para o Direito brasileiro, VALENTIN CARRION, Comentários, cit., anot. art. 76, p. 126 e anot. art. 457, pp. 296 s., entende que a gorjeta, quando habitual, deve ser anotada na carteira de trabalho, por estimativa, porque integra a remuneração. Com uma posição intermédia, admitindo que a gorjeta deve ser tida em conta na indemnização por despedimento, cfr. LYON-CAEN/PÉLISSIER/SUPIOT, Droit du Travail, cit., pp. 834 s.
    14 ABÍLIO NETO, Contrato de Trabalho, Notas Práticas, Lisboa, Ediforum, 1997, 14.ª ed., p. 243 e 244.
  15 F. TOMÁS RESENDE, As prestações das partes no contrato de trabalho, em Revista de Estudos Sociais e Corporativos, 32.°-24.°.
    16 Como informa o Prof. JOÃO AMADO, em parecer junto aos autos pela ré.
    17 Como lembrou JOÃO PAULO II, Laborens Exercens, n.º 19, “a remuneração do trabalho é o meio concreto pelo qual a maioria dos homens acede aos bens do mundo”.
    18 Em parecer junto pela ré aos autos.
    19 O Tribunal de Última Instância de Hong Kong, por sentença de 28 de Fevereiro de 2006 (FACV17/05), em Lisbeth Enterprises Ltd v. Mandy Luk, num caso em que as comissões sobre as vendas, previstas no contrato de trabalho de uma consultora de beleza, e que eram, em média, mais de 10 vezes o valor do salário base, decidiu que as comissões não faziam parte do salário, para efeitos do pagamento da retribuição nos feriados e nas férias anuais.
  (cfr. http://www.hklii.org/hk/jud/en/hkcfa/2006/FACV000017_2005.html).
    20 ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito..., p. 448 e 461.
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42
Processo n.º 58/2007