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Processo nº 119/2018 Data: 22.03.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “consumo ilícito de estupefacientes”.
Crime de “detenção de utensilagem”.
Suspensão da execução da pena.



SUMÁRIO

1. Não resultando da matéria de facto dada como provada que o arguido deteve uma seringa com intenção de a utilizar no consumo de estupefacientes, verificado não está o crime de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009.

2. O instituto da suspensão da execução da pena baseia-se numa relação de confiança entre o Tribunal e o condenado. Aquele convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo, posto perante a censura do facto e a ameaça da pena, é capaz de se afastar da criminalidade.
Perante a (repetida) insistência na prática de ilícitos criminais por parte de um arguido, (como é o caso), revelando, claramente, não ser merecedor de um “juízo de prognose favorável”, outra solução não existe que não seja uma “medida detentiva”, sob pena de manifestação de falência do sistema penal para a protecção de bens jurídicos, (adequada se mostrando uma mais intensa reafirmação social da validade das normas jurídicas violadas), e autêntico “convite” à reincidência.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 119/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), arguido com os sinais dos autos, vem recorrer da sentença do T.J.B. que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da mesma Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 meses de prisão; (cfr., fls. 161 a 165-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, veio o arguido recorrer, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, e pedindo a sua “suspensão da execução da pena”; (cfr., fls. 171 a 174).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 178 a 182-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Recorre B da sentença exarada a fls. 161 e seguintes dos autos, que o condenou na pena global de 7 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico de duas penas parcelares de 5 meses, pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 14.°, n.° 1, e 15.°, da Lei 17/2009.
Na motivação do recurso, insurge-se contra a condenação por detenção de utensílio ou equipamento e pugna pela suspensão da execução da pena.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público na primeira instância pronuncia-se pela improcedência do recurso.
Vejamos, começando pela questão da consumpção entre consumo e detenção de utensilagem.
É sabido que a jurisprudência não tem adoptado entendimento uniforme sobre a questão.
Por nós, temos vindo a defender que a condenação autónoma pelo crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento não se justifica quando, num concreto acto de consumo, o agente esgota o utensílio ou equipamento, funcionando este como meio indispensável ao acto de consumo. Em casos que tais, a unidade de acção, a relação de causalidade entre consumo e utilização da utensilagem, bem como a similitude dos bens jurídicos protegidos pelas normas de incriminação, obstam à punição autónoma. Se tal não sucede, e o agente, além de haver consumido produto estupefaciente, conserva e detém igualmente ferramentas ou utensílios que podem proporcionar o consumo posterior, não se vê como contrapor à violação de dois tipos de ilícito diversos a relação de consumpção que geralmente é invocada para justificar a absolvição pelo crime de detenção indevida de utensilagem.
Pois bem, no caso sob análise, nem a matéria da acusação nem os factos dados como provados são, a nosso ver, suficientemente elucidativos sobre a efectiva detenção, por parte do arguido, ora recorrente, da seringa que teria sido usada para injectar a mistura de heroína e Midazolam, sendo certo que nada foi encontrado, apreendido e examinado. Acresce que também não há, salvo melhor juízo, uma certeza consistente de que a detecção de morfina na urina seja uma consequência adequada daquela confessada injecção de uma mistura de heroína e Midazolam, o que permite questionar que tipo de uso foi efectivamente conferido pelo arguido à seringa em questão, ou seja, se esta foi efectivamente usada para injectar a droga detectada na urina.
Daí que, no caso, se nos afigure indemonstrada, quer a detenção de seringa com a intenção de injectar substâncias estupefacientes, quer o uso de seringa na injecção de substâncias estupefacientes, o que, qualquer que seja o entendimento acerca da relação entre os tipos de consumo e de detenção indevida de utensílio ou equipamento, deve conduzir à absolvição pelo crime previsto no artigo 15.° da Lei 17/2009.
No que tange à suspensão da execução da pena, não podemos concordar com o recorrente.
Tomando em conta os aspectos a considerar nos termos do artigo 48.° do Código Penal, não é possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do recorrente no futuro, tal como o tribunal vincou e a Exm.a colega explica na sua resposta.
Os seus antecedentes criminais demonstram que já foi julgado e condenado variadas vezes, incluindo por crimes relacionados com droga. E, tendo chegado a beneficiar do instituto da suspensão da pena, não aproveitou as oportunidades proporcionadas pelas expectativas que em si foram depositadas, no sentido de que a simples ameaça da pena fosse suficiente para realizar as finalidades da punição e promover a sua ressocialização. O recorrente não acatou as condições impostas e acabou por ter que cumprir prisão efectiva. Não pode razoavelmente pretender que o tribunal esqueça tudo quanto se passou anteriormente e lhe credite um novo voto de confiança. É óbvio que, perante o passado do recorrente, a simples censura do facto e a ameaça de prisão não se revelam suficientes para assegurar de forma adequada as finalidades da punição.
Bem andou, pois, o tribunal ao não suspender a execução da pena, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo nesse ponto.
Ante quanto se deixa dito, opina-se pela procedência do recurso no tocante ao crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, do qual o recorrente deve ser absolvido, devendo, no mais, improceder o recurso e confirmar-se a douta sentença quanto ao crime de consumo de estupefacientes”; (cfr., fls. 230 a 231-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 162 a 163-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer da sentença que o condenou como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), na pena de 5 meses de prisão, e outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da mesma Lei n.° 17/2009, (alterada pela Lei n.° 10/2016), também na pena de 5 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 meses de prisão.

Pugna pela sua absolvição quanto ao crime de “detenção de utensilagem”, pedindo também a “suspensão da execução da pena”.

–– Vejamos, começando-se pelo dito crime de “detenção de utensilagem”.

Ora, aqui, impõe-se reconhecer que tem o recorrente razão, (ainda que com diversa fundamentação de que vem alegada).

Com efeito, e como – bem – se nota no Parecer que se deixou transcrito, a matéria de facto faz uma mera referência a uma “seringa” sem demonstrar que o arguido a deteve (efectivamente).

E, perante isto, outra solução não se vislumbra a não ser a absolvição do arguido pelo crime em questão.

–– Quanto à “suspensão da execução da pena”; (pelo crime de consumo).

Nos termos do art. 48° do C.P.M.:

“1. O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão”.

Sobre a matéria já teve este T.S.I. oportunidade de dizer que:

“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 20.04.2017, Proc. n.° 303/2017, de 26.10.2017, Proc. n.° 762/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1157/2017).

E, como temos também entendido, o instituto da suspensão da execução da pena baseia-se numa relação de confiança entre o Tribunal e o condenado. Aquele convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo, posto perante a censura do facto e a ameaça da pena, é capaz de se afastar da criminalidade; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 22.06.2017, Proc. n.° 399/2017, de 09.11.2017, Proc. n.° 853/2017 e de 18.01.2018, Proc. n.° 1/2018).

Perante o que se deixou consignado, ponderando na factualidade dada como provada, e face à “personalidade” pelo ora recorrente revelada, inviável é uma decisão favorável à sua pretensão.

De facto, o arguido ora recorrente não é primário, (cfr., fls. 81 a 107), tendo já sofrido várias condenações em penas de prisão suspensa na sua execução, tendo já cumprido pena de prisão em virtude da revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, evidentes sendo assim as fortes necessidades de prevenção especial (e geral) e que afastam, in totum, a possibilidade de dar por verificados os pressupostos do art. 48° do C.P.M. para efeitos da pretendida suspensão da execução da pena.

Na verdade, com o (novo) crime destes autos, revela o arguido uma total ausência de vontade de aproveitar as várias oportunidades que lhe foram dadas e de se corrigir, levando uma vida em conformidade com as normas de convivência social, tornando, desta forma, evidentes as fortes razões de prevenção criminal que comprometem, de todo, a pretendida suspensão da execução da pena, (de 5 meses de prisão em que foi condenado pelo crime de “consumo ilícito de estupefacientes”).

Como igualmente temos vindo a considerar, devem-se “evitar penas de prisão de curta duração”.

Porém, não é de suspender a execução da pena de prisão ainda que de curta duração, se o arguido, pelo seu passado criminal recente, revela total insensibilidade e indiferença perante o valor protegido pela incriminação em causa, continuando numa atitude de desresponsabilização e de incapacidade para tomar outra conduta; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 26.01.2017, Proc. n.° 840/2016, de 15.06.2017, Proc. n.° 462/2017 e de 01.11.2017, Proc. n.° 948/2017).

Como também considerava Jescheck: “o tribunal deve dispor-se a correr um risco aceitável, porém se houver sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para aproveitar a oportunidade ressocializadora que se lhe oferece, deve resolver-se negativamente a questão do prognóstico”; (in, “Tratado de Derecho Penal”– Parte General – Granada 1993, pág. 760, e, no mesmo sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa de 05.05.2015, Proc. n.° 242/13, e, mais recentemente, da Rel. de Coimbra de 27.09.2017, Proc. n.° 147/15, onde se consignou que “Na formulação deste juízo [de prognose] o tribunal deve correr um risco prudente pois a prognose é uma previsão, uma conjectura, e não uma certeza. Quando existam dúvidas sérias e fundadas sobre a capacidade do agente para entender a oportunidade de ressocialização que a suspensão significa, a prognose deve ser negativa e a suspensão negada”, in “www.dgsi.pt”).

Com efeito, perante a (repetida) insistência na prática de ilícitos criminais por parte de um arguido, (como é o caso), revelando, claramente, não ser merecedor de um “juízo de prognose favorável”, outra solução não existe que não seja uma “medida detentiva”, sob pena de manifestação de falência do sistema penal para a protecção de bens jurídicos, (adequada se mostrando uma mais intensa reafirmação social da validade das normas jurídicas violadas), e autêntico “convite” à reincidência; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Guimarães de 13.04.2015, Proc. n.° 1/12 e da Rel. do Porto de 10.01.2018, Proc. n.° 417/15).

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando o arguido absolvido do crime de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, mantendo-se, no restante, o decidido pelo T.J.B..

Pelo seu decaimento pagará o arguido a taxa de justiça de 3 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 22 de Março de 2018

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeira Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa

(Segundo Juiz-Adjunto)
Choi Mou Pan
Proc. 119/2018 Pág. 16

Proc. 119/2018 Pág. 1