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Proc. nº 252/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 08 de Março de 2018
Descritores:
- Poderes discricionários
- Limites internos
- Erro notório e manifesto
- Princípio do inquisitivo
- Deficit instrutório

SUMÁRIO:

I - A discricionariedade administrativa está sujeita aos limites intrínsecos e internos caracterizados pelos princípios gerais de direito administrativo (cfr. art. 13º a 14º do CPA).

II - Contudo, a sindicância aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, quando lhes é imputada a violação daqueles princípios, só pode ser feita com êxito quando a Administração os tiver praticado em erro notório, manifesto e grosseiro.

III – A Administração dispõe do poder inquisitivo (cit. art. 59º do CPA), que lhe permite, por exemplo, averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para uma justa e rápida decisão, e recorrer, para o efeito, a todos os meios de prova admitidos em direito (art. 86º, nº1, do CPA). Poder este que, não só lhe consente obter por si mesma a indagação dos factos, como através de solicitação dirigida aos próprios interessados (art. 88º, do CPA).

IV – Quando existe “deficit instrutório”, ele não vale autonomamente como vício do acto. Ou seja, não se diz que o acto é inválido porque houve “deficit instrutório”, embora se possa dizer que o acto pode vir a ser julgado inválido por não ter considerado todos os factos possíveis, precisamente por instrução deficiente. Quer dizer, a carência de elementos instrutórios o que pode é fazer resvalar o caso para a existência de um quadro factual imperfeito ou incompleto da realidade, apto, portanto, a preencher o vício do erro sobre os pressupostos de facto.

Proc. nº 252/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, do sexo feminino, casada, portador do BIRPM n.º …, residente em Macau, Coloane, na …, da Habitação Social de Seac Pai Van, recorreu para o Tribunal Administrativo (Proc. nº 1267/16-ADM) do despacho proferido pelo Presidente do Instituto de Habitação, que rejeitou o recurso hierárquico e manteve a decisão de rescisão do contrato de arrendamento celebrado com o Instituto de Habitação.
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Foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso contencioso.
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Contra essa sentença vem agora interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“18.º Segundo a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo da RAEM no processo de recurso contencioso n.º 1267/16-ADM, que julgou improcedente o recurso interposto pela recorrente contra a decisão proferida em 5/11/2015 pelo presidente do Instituto de Habitação na Proposta n.º 0488/DAJ/2015, que rejeitou o seu recurso hierárquico necessário mantendo a decisão de rescisão do contrato de arrendamento celebrado entre a recorrente e o Instituto de Habitação,
19.º Vem a recorrente interpor o presente recurso por não se conformar com a sentença recorrida que considerou que, no exercício do poder discricionário, o acto administrativo ora recorrido não incorreu em erro notório que conduzisse à violação dos princípios jurídicos fundamentais, nem a Administração careceu de averiguação suficiente.
20.º Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com a sentença recorrida com os fundamentos seguintes:
Falta de averiguações suficientes que conduzissem ao erro notório no exercício do poder discricionário.
21.º Em primeiro lugar, a Administração, ao prestar auxílio habitacional aos indivíduos ou famílias que mostram a necessidade, tem que considerar a finalidade do auxílio.
22.º O Código do Procedimento Administrativo dispõe no seu art.º 86.º, n.º 1 que: “O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito.”
23.º Esta sub-fase da fase preparatória tem um papel muito importante, visando apresentar ao agente responsável os diversos interesses envolvidos na decisão que vai tomar (os quais, no seu conjunto, formam a situação de interesse público que o acto deve sempre servir), de forma a permitir a avaliação do seu peso e importância relativos. Na prática, a instrução permite criar as condições para que o agente possa determinar o conteúdo do acto principal do procedimento do melhor modo, em ordem á prossecução do interesse público concreto. De forma mais resumida, pode dizer-se que ela fornece os elementos que determinarão a formação da vontade da administração.
24.º A entidade recorrida, na fase de averiguação, já tinha perfeito conhecimento da situação e alterações da recorrente e dos elementos do seu agregado familiar.
25.º A política habitacional tem por finalidade prestar auxílio aos indivíduos e famílias com situação económica precária para resolver a necessidade habitacional em Macau que nomeadamente são idosos, deficientes.
26.º Pelo que, deve a entidade recorrida, ao tomar a decisão administrativa, considerar conjuntamente as situações e alterações da recorrente na altura, procedendo a averiguações adequadas de modo a concretizar a finalidade da política da habitação social.
27.º Pelo que, o respectivo acto administrativo violou o princípio de averiguação, causando a que, no exercício do poder discricionário, incorresse em erro notório contra a finalidade fundamental da política habitacional, devendo o acto ser anulado nos termos do art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
IV. Pedido
Pelo acima exposto e contando com o douto entendimento de V. Ex.as, pede-se que seja julgado procedente o recurso em causa e anulada a sentença recorrida, bem como seja anulada a decisão de rescisão do contrato de arrendamento tomada pela entidade recorrida.”
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Alegou, igualmente, a entidade recorrida pugnando pelo improvimento do recurso em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“Impugna-se, no presente recurso jurisdicional, a sentença de 22 de Novembro de 2016, do Tribunal Administrativo, que julgou improcedente o recurso contencioso interposto por A contra o acto de 5 de Novembro de 2015, do Presidente do Instituto da Habitação, através do qual, em via de recurso hierárquico, fora mantida a rescisão do contrato de arrendamento que a recorrente celebrara em 2014 com o Instituto da Habitação.
A questão que vem equacionada no recurso jurisdicional, em que se aponta à sentença recorrida uma errada interpretação do artigo 86.º n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, resume-se a saber se, instaurado um determinado procedimento administrativo, com uma concreta finalidade, deve a Administração, no decurso da instrução, averiguar factos sem interesse directo imediato para a decisão.
Estava em causa averiguar e decidir se havia fundamento para rescisão do contrato de arrendamento por falta de residência permanente do arrendatário no locado. O Instituto da Habitação averiguou que a recorrente e seu agregado não residiam em permanência na habitação, pois aí não haviam pernoitado, pelo menos, durante dois terços do ano. Daí que tenha sido rescindido o contrato de arrendamento com esse fundamento, o que foi considerado legal pela sentença recorrida, tendo-se a recorrente aparentemente conformado com a decisão nesta parte.
O que a recorrente já contesta é que a sentença não haja considerado ter havido défice instrutório motivador de erro notório no exercício de poderes discricionários. E porquê? Porque o procedimento não teria averiguado suficientemente a situação superveniente em matéria de ocupação do arrendado, onde passou a residir um filho, uma nora e um neto da recorrente. Daí que, ao manter a rescisão do contrato de arrendamento sem a averiguação e ponderação destes elementos supervenientes, tenha o acto recorrido feito um uso desrazoável do exercício de poderes discricionários.
Crê-se que a recorrente não tem razão.
O procedimento administrativo, enquanto conjunto concatenado de actos e operações dirigido à produção de uma decisão administrativa, visa um tema ou objectivo concreto. Isso está especialmente previsto para os procedimentos impulsionados pelos particulares, onde cada requerimento só pode conter um pedido - artigo 76.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo ― mas é igualmente válido para os procedimentos oficiosamente instaurados pela Administração, impondo-se até pela própria noção de acto administrativo.
No caso, como se viu, estava em causa averiguar e decidir se havia ou não lugar à rescisão do contrato. E isso foi suficientemente averiguado, não havendo dúvidas a esse propósito, constituindo a decisão de rescisão a aplicação da lei à factualidade inequivocamente apurada. Ou seja, ante o objecto do procedimento, a Administração investigou oficiosamente quanto se mostrou necessário à produção de uma decisão adequadamente fundada. O mais que a recorrente acha que devia ter sido objecto de averiguação, e que nada tem a ver com causas de justificação da ausência do locado como residência permanente, extravasa as necessidades da instrução do procedimento, podendo, nessa medida, ser considerado inútil à luz das respectivas finalidades.
A alteração fáctica superveniente do agregado, em nada muda a situação apurada de violação da obrigação, legal e contratual, de ocupação do locado como residência. Por isso, cremos que não se impunha indagação sobre tal matéria. Tanto mais que um hipotético interesse na modificação da relação de arrendamento, por alteração dos elementos integrantes do agregado, teria que ser tratado noutro procedimento, dado o princípio do pedido único a que aludimos e atendendo às especificidades a que estão subordinadas as candidaturas.
Em suma, tal como bem ponderou a sentença recorrida, à luz duma correcta interpretação do artigo 86.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, não ocorreu défice instrutório nem foi violado o princípio da averiguação oficiosa, pelo que improcedem os fundamentos do recurso jurisdicional, devendo ser-lhe negado provimento.”
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
“- No dia 15 de Abril de 2014, a recorrente celebrou com o Instituto de Habitação o contrato de arrendamento da habitação social, tomando de arrendamento a habitação social de Seac Pai Van - Edifício …, sito em Coloane, na Avenida de Lok Koi, com o número de agregado familiar … e os elementos do agregado familiar são a recorrente e os seus três filhos B, C e D. (vd. fls. 9 e 10 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 14 de Agosto de 2014, através do ofício n.º 1408140061/DFHP, o Instituto de Habitação notificou a recorrente para ter uma entrevista naquele instituto na data e hora designada, bem como levar os documentos designados (vd. fls. 6 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 21 de Agosto de 2014, através do ofício n.º 1408200047/DFHP, o Instituto de Habitação, junto do CPSP, procurou saber os registos de movimentos fronteiriços da recorrente e dos seus três filhos no período entre 1 de Abril e 15 de Agosto de 2014. (vd. fls. 19 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 29 de Agosto de 2014, através do ofício n.º 1408290015/DFHP, o Instituto de Habitação notificou a recorrente para ter uma entrevista naquele instituto na data e hora designada, bem como levar os documentos designados (vd. fls. 7 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 5 de Setembro de 2014, através do ofício n.º MIG.12199/14/SE, o CPSP deu resposta ao Instituto de Habitação em relação aos registos de movimentos fronteiriços da recorrente e dos seus três filhos no supracitado período (vd. fls. 20 a 21, 25 a 26, 30 a 31, 35, 40 e 44 a 46 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 12 de Setembro de 2014, o pessoal do Instituto de Habitação teve uma entrevista com a recorrente, tendo esta referido que, desde a celebração do contrato de arrendamento da habitação social, ficava em Hong Kong de 2.ª a 5.ª feira e só voltou a Macau na 6.ª feira, Sábado e Domingo para viver na habitação social arrendada, o seu marido e o filho mais velho trabalhavam em Hong Kong, a filha mais nova estudava em Hong Kong e a segunda filha vivia em Hong Kong com o pai e só de vez em quando voltou a Macau para viver na habitação social. Mais referiu que os três filhos não se adaptavam à vida de Macau, pelo que não queriam viver em Macau (vd. fls. 8 e 8v do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 15 de Setembro de 2014, a recorrente apresentou ao Instituto de Habitação uma declaração complementar para justificar a causa de não permanência do seu agregado familiar na habitação social, bem como juntou os respectivos documentos (vd. fls. 13 a 18 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 29 de Dezembro de 2014, através do ofício n.º 1412160031/DFHP, o Instituto de Habitação procurou saber junto do CPSP os registos de movimentos fronteiriços da recorrente e dos seus três filhos no período entre 1 de Agosto e 15 de Dezembro de 2014. (vd. fls. 22 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 22 de Janeiro de 2015, através do oficio n.º MIG.101262/SESM/2015P, o CPSP deu resposta ao Instituto de Habitação em relação aos registos de movimentos fronteiriços da recorrente e dos seus três filhos no supracitado período (vd. fls. 23, 27 a 29, 32 a 33, 36 a 37, 39, 41, 43 e 47 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 13 de Maio de 2015, o pessoal teve uma entrevista com a recorrente, tendo esta referido que o seu filho mais velho começou a trabalhar em Macau e já vivia na fracção da habitação social arrendada, pelo que nesse momento não considerou restituir tal fracção da habitação social (vd. fls. 48 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 15 de Maio de 2015, a recorrente apresentou ao Instituto de habitação uma declaração complementar (vd. fls. 49 a 51 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 12 de Junho de 2015, o pessoal do Instituto de habitação elaborou a proposta n.º 0357/DHP/DFHP/2015, tendo nela indicado que, após ter feito visitas domiciliárias, entrevistas e verificado os registos de movimentos fronteiriços da recorrente e dos seus três filhos, desde a celebração do contrato de arrendamento da habitação social no dia 15 de Abril de 2014 até 15 de Dezembro de 2014 num total de 244 dias, a recorrente não pernoitou em Macau num total de 209 dias, e os três filhos não pernoitaram num total de 209, 160 e 218 dias, respectivamente, o número dos dias de não permanência em Macau da recorrente e dos seus filhos ultrapassa o número previsto na lei da habitação social, tal situação já violou o disposto nos art.ºs 19.º, n.º2, al. 2) e 20.º, n.º l do Regulamento Administrativo n.º 25/2009, pelo que promoveu que o caso fosse transferido à Divisão de Assuntos Jurídicos para ser instruído o processo de rescisão do contrato de arrendamento da habitação social celebrado com a recorrente (vd. fls. 4 a 5 e 5v do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 15 de Junho de 2015, a supracitada proposta foi autorizada pelo chefe do Departamento de Habitação Pública do Instituto de Habitação (vd. fls. 4 do processo apenso).
- No dia 6 de Julho de 2015, o pessoal do Instituto de Habitação indicou que a recorrente presumivelmente não tinha residência permanente na supracitada fracção da habitação social, e desde a celebração do contrato de arrendamento da habitação social em 15 de Abril de 2014 até 31 de Dezembro de 2014 altura em que não permaneceu em Macau num total de 209 dias, e os elementos do seu agregado familiar também não permaneciam em Macau por longo prazo, violando isso o disposto nos art.ºs 19.º, n.º2, al. 2) e 20.º, n.º l do Regulamento Administrativo n.º 25/2009, pelo que propôs que a recorrente, no prazo de 10 dias, apresentasse justificação escrita sobre a matéria acima indicada, tendo sido a proposta autorizada pelo superior hierárquico (vd. fls. 57 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 8 de Julho de 2015, através do ofício n.º 1507060143/DAJ, o Instituto de Habitação notificou a recorrente para que fosse justificada, por escrito, no prazo de 10 dias, após a recepção da notificação, a “causa de falta de residência permanente naquela habitação, após a celebração do contrato de arrendamento da habitação social”, bem como podia a mesma apresentar todas as provas testemunhais, materiais e documentais ou outras provas (vd. fls. 21 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 31 de Julho de 2015, a recorrente apresentou ao Instituto de Habitação a justificação escrita e juntou os respectivos documentos (vd. fls. 59 a 65 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 24 de Setembro de 2015, o vice-presidente do Instituto de Habitação proferiu despacho concordando com o teor da proposta n.º 0427/DAJ/2015 que indicou que a recorrente não tinha residência permanente na fracção da habitação social arrendada, embora a recorrente tenha apresentada a justificação escrita, tendo a qual sido considerada como improcedente, e nos termos do art.º 22.º, n.º2 do Regulamento Administrativo n.º 25/2009, determinou rescindir o contrato de arrendamento da habitação social celebrado entre o Instituto de Habitação e a recorrente (vd. fis. 66 a 68 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 30 de Setembro de 2015, através do ofício n.º 1509160029/DAJ, o Instituto de Habitação notificou a recorrente da supracitada decisão, bem como indicou na notificação que deve a recorrente retirar-se da habitação social em causa, sob pena de ser executado o despejo coercivo, e ao mesmo tempo indicou que pode a recorrente, dentro do prazo designado, interpor o recurso hierárquico necessário (vd. fis. 22 a 23 dos autos e fls. 70 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 7 de Outubro de 2015, a recorrente interpôs o recurso hierárquico necessário junto da entidade recorrida (vd. fls. 72 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 5 de Novembro de 2015, a entidade recorrida proferiu despacho concordando com o teor da proposta n.º 0488/DAJ/2015 que indicou que o teor da justificação apresentada pela recorrente era mais ou menos igual ao qual anteriormente apresentado, não havia qualquer prova nova para suportar a sua justificação razoável da falta de residência permanente na habitação social arrendadas por longo prazo, não era capaz de refutar a decisão de rescisão do contrato de arrendamento, pelo que determinou rejeitar o recurso hierárquico necessário interposto pela recorrente, mantendo o despacho proferido em 24/9/2015 pelo vice-presidente na proposta n.º 0427/DAJ/2015, que determinou rescindir o contrato de arrendamento da habitação social celebrado entre o Instituto de Habitação e a recorrente (vd. fls. 75 a 77 e 77v do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 11 de Novembro de 2015, através do ofício n.º 1511060005/DAJ, o Instituto de Habitação notificou a recorrente da supracitada decisão, bem como indicou na notificação que deve a recorrente no prazo de 30 dias, contado a partir da recepção da notificação, retirar-se da habitação social em causa, sob pena de ser executado o despejo coercivo, e ao mesmo tempo indicou que pode a recorrente no prazo designado interpor o recurso contencioso para o Tribunal Administrativo (vd. fls. 24 a 29 dos autos e fls. 81 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 3 de Dezembro de 2015, a recorrente apresentou pedido de apoio judiciário junto da Comissão de Apoio Judiciário (vd. fls. 91 do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- O pedido de apoio judiciário da recorrente foi autorizado e em 12 de Fevereiro de 2016 se tomou in impugnável (vd. fls. 30 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
- No dia 14 de Março de 2016, o mandatário judicial da recorrente interpôs o presente recurso contencioso.”.
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III – O Direito
1 – O acto administrativo sindicado no Tribunal Administrativo foi o de rescisão do contrato de arrendamento da habitação social celebrado entre a recorrente e o Instituto de Habitação, por alegadamente ter sido violado o disposto nos art.ºs 19.º, n.º2, al. 2) e 20.º, n.º l do Regulamento Administrativo n.º 25/2009.
A recorrente defendeu no TA que a Administração não procurou saber a verdadeira razão para as ausências dos membros do agregado do locado, e que cometeu erro notório no exercício do poder discricionário, violando ainda o princípio da justiça.
A sentença em crise entendeu que o acto em apreço respeitou os parâmetros legais, não violou o princípio da justiça, nem cometeu erro notório no exercício dos poderes discricionários.
Agora, contra a referida sentença, a recorrente insiste que a entidade administrativa incorreu em erro notório no exercício do poder discricionário conducente à violação dos princípios fundamentais, além de não ter procedido à suficiente averiguação da matéria de facto (art. 86º do CPA).
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2 – Antes de mais, importa destacar as normas com base nas quais o acto foi produzido e que a sentença considerou não violadas.
Artigo 19.º
Rescisão pelo IH
1. O incumprimento do contrato ou a violação de alguma das obrigações estabelecidas nas alíneas 1) a 6) e 8) do n.º 1 do artigo 11.º, conferem ao IH o direito de rescindir o contrato.
2. O contrato pode ainda ser rescindido:
1) Se as declarações prestadas pelo arrendatário no acto da candidatura ou na comunicação a que se refere o n.º 2 do artigo 15.º não corresponderem aos pressupostos do arrendamento regulado no presente regulamento administrativo;
2) Se o arrendatário conservar o fogo desabitado por mais de quarenta e cinco dias ou não tiver nele residência permanente, habite ou não outra habitação; (destaque nosso)
3) Se algum dos elementos do agregado familiar abandonar a habitação antes de decorrido um ano a contar da data da celebração do contrato;
4) Se o arrendatário não apresentar os elementos depois de ser sancionado pelo atraso ou por não ter enviado os elementos a que se refere o n.º 2 do artigo 15.º;
5) Se a dimensão do agregado familiar não estiver de acordo com o disposto no Anexo I ao presente regulamento administrativo e o IH disponibilizar ao arrendatário uma habitação adequada à dimensão do seu agregado familiar e este recusar, sem motivo justificativo;
6) Se o IH pretender demolir ou modificar o prédio disponibilizando ao arrendatário uma habitação adequada à dimensão do seu agregado familiar e este recusar, sem motivo justificativo.
3. Não se aplica o disposto na alínea 1) do número anterior:
1) Se a irregularidade teve em vista a obtenção de renda mais baixa e o arrendatário pagar em dobro as rendas em falta nos dois anos antecedentes;
2) Se, reportando-se a irregularidade aos requisitos de candidatura, eles se verificarem à data da rescisão.
Artigo 20.º
Residência permanente
1. Para efeitos do disposto no presente regulamento administrativo, considera-se que o arrendatário tem residência permanente na habitação se nela pernoitar, pelo menos, durante dois terços de cada ano. (destaque nosso)
2. Havendo fundadas dúvidas sobre a situação referida no número anterior, pode o IH exigir que o arrendatário se apresente nos seus serviços ou perante funcionário para o efeito designado, a horas e em dias fixados.
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3 – Procura a recorrente no recurso centrar a sua atenção, na circunstância de a Administração ter incorrido em erro notório no exercício dos poderes discricionários.
Ao fazer esta simples afirmação, está a recorrente, e com razão, a admitir que a decisão de rescindir teve por base a circunstância de o fogo ficar desabitado por mais de quarenta e cinco dias ou não ter nele o arrendatário fixado residência permanente. Isso é o que, aliás, resulta do nº2, do art. 19º citado, ao não estabelecer um exercício vinculado de rescisão, mas ao permitir (“pode”) a rescisão com fundamento nos factores constantes nas suas alíneas 1) a 6).
Ora, como é sabido, a discricionariedade administrativa está sujeita aos imites intrínsecos e internos caracterizados pelos princípios gerais de direito administrativo plasmados nos arts. 3º a 14º do CPA. Contudo, a sindicância aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, quando lhes é imputada a violação desses princípios, só pode ser feita com êxito quando a Administração os tiver praticado em erro notório, manifesto e grosseiro, tal como é jurisprudência firme dos tribunais da RAEM: v.g., Ac. do TUI, de 30/07/2015, Proc. nº 46/2015, ou de 12/07/2017, Proc. nº 22/2017; Ac. do TSI, de 26/05/2016, Proc. nº 325/2015; de 28/04/2016, Proc. nº 580/2014.
Ora, sinceramente, não encontramos nesta actuação administrativa concreta nenhum exercício eivado de tais vicissitudes e maleitas invalidantes. Na verdade, a própria recorrente acaba por reconhecer que os seus três filhos ou estudavam ou trabalhavam em Hong Kong, e que, segundo diz, só recentemente o mais velho, B, regressou a Macau para aqui trabalhar.

A verdade é que a declaração de responsabilidade assinada pela recorrente é clara no sentido de que a interessada recorrente e o seu agregado deviam pernoitar no arrendado pelo menos durante dois terços em cada ano. Sabia a recorrente também que, conforme a “declaração de arrendatário” (cfr. doc. fls. 53 e vº do p.a. nº 1267/16-ADM), teria que comunicar o facto de algum elemento não residir no locado por um período superior a 45 dias, mas isso não o fez.
Portanto, a recorrente estava ciente desde o início das condições que sobre si impendiam a respeito da utilização do locado. Ora, se a Administração teve conhecimento de que tais condições não se verificavam (entre 15/04/2014 e 15/12/2014, a recorrente não pernoitou no apartamento; o filho B não pernoitou durante 209 dias; C não pernoitou em Macau num total de 160 dias e D não pernoitou em Macau durante 218 dias), podia fazer uso dos seus poderes discricionários ao abrigo da norma acima transcrita.
Deste modo, não cremos que se verifique a violação de nenhum princípio de direito administrativo, nomeadamente aquele que a recorrente tinha arguido na 1ª instância, ou seja, o princípio da justiça.
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4 – A recorrente sustenta, por outro lado, que a Administração não procurou mais saber da situação da recorrente e do seu agregado. Sem ser muito clara, parece estar a arguir aquilo a que podemos dar o nome de “déficit instrutório”, em violação do dever de agir inquisitório tendente à descoberta da verdade material . Na verdade, a Administração dispõe do poder inquisitivo (cit. art. 59º do CPA), que lhe permite, por exemplo, averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para uma justa e rápida decisão, e recorrer, para o efeito, a todos os meios de prova admitidos em direito (art. 86º, nº1, do CPA). Poder este que, não só lhe consente obter por si mesma a indagação dos factos, como através de solicitação dirigida aos próprios interessados (art. 88º, do CPA).
De qualquer modo, sempre nos apraz referir que, mesmo que existisse “déficit instrutório”, ele não valeria autonomamente como vício do acto. Ou seja, “não se diz que o acto é inválido porque houve “deficit instrutório”, embora se possa dizer que o acto possa vir a ser inválido por não ter considerado todos os factos possíveis, precisamente por instrução deficiente. Quer dizer, a carência de elementos instrutórios o que pode é fazer resvalar o caso para a existência de um quadro factual imperfeito ou incompleto da realidade, apto, portanto, a preencher o vício do erro sobre os pressupostos de facto” (Ac. do TSI, de 24/07/2014, Proc. nº 558/2013).
Mesmo assim, somos a reconhecer que a entidade administrativa competente teve o cuidado de notificar por várias vezes a recorrente para esclarecer e juntar a documentação necessária para apuramento da real situação do seu agregado em termos de permanência no locado.
Que poderia a Administração mais fazer adequadamente em ordem ao apuramento da situação de facto que se verificava? Deveria a Administração esperar mais tempo até que a situação se regularizasse por si mesma? Isto é, deveria esperar um, dois, três anos (ou mais) até que cada um dos filhos regressasse a Macau para aqui trabalhar, ou estudar e, assim, passar a viver permanentemente no locado? Deveria esperar que a própria recorrente passasse a residir com carácter permanente nos termos em que o define o art. 20º acima transcrito?
Pensamos que não. Para resolver a situação detectada, actuou a Administração no momento próprio e de acordo com os poderes que a lei lhe conferia.
E porque, tendo em atenção as diligências que empreendeu, as “entrevistas” que realizou com a recorrente e os documentos que esta apresentou, mão podemos concordar com o alegado “deficit instrutório”, nem com eventual erro nos pressupostos a ele associado e que a recorrente tenha implicitamente invocado.
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5 – Razão pela qual, não havendo outras causas invalidantes que tivessem sido invocadas e conhecidas na primeira instância, e não sendo caso de conhecimento oficioso de qualquer outro vício, somos a confirmar a sentença recorrida.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 7 UC, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
           T.S.I., 08 de Março de 2018
           José Cândido de Pinho
           Tong Hio Fong
           Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
252/2017 22