Processo nº 61/2018 Data: 08.03.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “abuso de confiança”.
Crime de “burla”.
Pena.
Atenuação especial.
Restituição ou reparação do prejuízo.
Cúmulo jurídico.
SUMÁRIO
1. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
2. A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
Em relação ao estatuído no art. 201° do C.P.M., a “atenuante” em questão só se verifica quando o arguido restitui ou repara o prejuízo causado «por sua iniciativa, livre e espontaneamente».
3. O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada.
4. Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 61/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como autor material e em concurso real de:
- 2 crimes de “abuso de confiança”, (um deles, na forma continuada e com a pena especialmente atenuada), p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b) e 196°, al. b) do C.P.M., nas penas parcelares de 2 anos e 9 meses e 3 anos e 3 meses de prisão; e,
- 2 crimes de “burla”, (um deles, também na forma continuada), p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., nas penas parcelares de 9 e 7 meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, e no pagamento da quantia total de HKD$130.000,00 ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 394 a 405-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu para, afirmando que excessivas eram as penas aplicadas, e invocando o art. 66°, n.° 1 do C.P.M., pedir a sua “atenuação especial” ou “redução”; (cfr., fls. 412 a 422).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 437 a 439-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando no sentido da improcedência do recurso e sugerindo uma correcção à decisão recorrida; (cfr., fls. 512 a 513-v).
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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 397-v a 400, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor material e em concurso real da prática de 2 crimes de “abuso de confiança”, (um deles, na forma continuada e com a pena especialmente atenuada), p. e p. pelo art. 199°, n.° 4, al. b) e 196°, al. b) do C.P.M., nas penas parcelares de 2 anos e 9 meses e 3 anos e 3 meses de prisão, e 2 outros de “burla”, (um deles, também na forma continuada), p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., nas penas parcelares de 9 e 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, e no pagamento da quantia total de HKD$130.000,00 ao ofendido dos autos.
Entende que excessivas são as penas aplicadas, pedindo a sua “atenuação especial” ou “redução”.
Cremos que nenhuma razão tem o recorrente, patente sendo a improcedência do seu recurso.
Vejamos.
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.11.2017, Proc. n.° 722/2017, de 07.12.2017, Proc. n.° 998/2017 e de 08.02.2018, Proc. n.° 30/2018).
Prescreve também o art. 66° do C.P.M.:
“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.
Tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
Como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.09.2017, Proc. n.° 812/2017, de 16.11.2017, Proc. n.° 751/2017 e de 30.01.2018, Proc. n.° 344/2017-I).
Por sua vez, e em relação ao estatuído no art. 201° do C.P.M., também já tivemos oportunidade de afirmar que “A “atenuante” em questão só se verifica quando o arguido restitui ou repara o prejuízo causado «por sua iniciativa, livre e espontaneamente»”; (cfr., Ac. de 20.04.2017, Proc. n.° 303/2017).
Com efeito, a ratio essendi do crime privilegiado a que a restituição e reparação dão lugar funda-se numa “mitigação da culpa”, consubstanciando a norma um “incentivo à restituição”, premiando-a por via de uma iniciativa por parte do agente de sinal contrário à que o levou a delinquir, traduzindo este acto um menor grau de culpa pelo reconhecimento do “mal” praticado, o que não ocorre quando o mesmo vem a ser surpreendido pelos agentes de autoridade na posse dos objectos subtraídos, sendo estes em consequência apreendidos e restituídos ao seu dono; (neste sentido, cfr., v.g., Ac. do S.T.J. de 05.01.1994, C.J. II, tomo 1, pág. 183; de 07.05.1997, B.M.J. 467°-268, e da Rel. de Coimbra de 13.07.2016, Proc. n.° 1215/14, in “www.dgsi.pt”).
No caso, diz o arguido que devia beneficiar de uma “atenuação especial”, alegando ter “confessado os factos” e que houve restituição dos bens desviados.
Todavia, ponderando na “factualidade provada”, – notando-se que só esta releva – sem prejuízo do respeito por outro entendimento, (e tal como igualmente considerou o T.J.B.), não nos parece que possa haver lugar a uma outra “atenuação especial”, visto que não se vislumbra a “excepcionalidade” da situação nem tão pouco se mostra de dar por verificadas as circunstâncias que poderiam levar a tal (“atenuação”).
A “confissão” em questão, pouco – ou nenhum – relevo teve para o apuramento da verdade dos factos, reduzido valor atenuativo se lhe podendo atribuir.
E, em relação à “restituição dos bens”, já o arguido beneficiou da respectiva atenuação especial nos termos do art. 201° do C.P.M., notando-se que a restituição dos outros bens apoderados apenas ocorreu após a sua apreensão pela polícia, não se tratando de uma “devolução espontânea e voluntária”, sendo assim irrelevante para os efeitos pretendidos, (quanto ao 2° crime de “abuso de confiança”).
Por sua vez, (atenta a factualidade dada como provada), constata-se que a “imagem global do facto” não se apresenta de forma a “diminuir, de forma acentuada, a ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena”, não se vislumbrando – como se referiu – nenhum motivo para qualquer “atenuação especial”, o mesmo sucedendo como a peticionada “redução”, pois que na fixação das penas parcelares (e única), respeitou, integralmente, o Tribunal a quo, todos os comandos legais que regulavam esta matéria, a saber, os art°s 40°, 64°, 65° e 71° do C.P.M..
Por sua vez, como decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 13.07.2017, Proc. n.° 522/2017, de 26.10.2017, Proc. n.° 829/2017 e de 30.01.2018, Proc. n.° 35/2018).
No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
E, como recentemente se tem igualmente decidido:
“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).
“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).
Dito isto, não se olvidando não ser o arguido “primário”, e não nos parecendo haver erro evidente ou manifesta desproporção, à vista está a solução quanto à questão da(s) “medida(s) da(s) pena(s)” parcelares.
–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico” das parcelares, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).
Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:
“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 03.04.2014, Proc. n.° 178/2014, de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1133/2017).
Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 3 anos e 3 meses” e um “limite máximo de 7 anos e 4 meses de prisão”, cremos que nenhuma censura merece a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão fixada que, em nossa opinião, reflecte (correctamente) a necessidade de prevenção criminal especial e geral que, no caso, se impõe, (e que, mesmo assim, se encontra próxima do seu mínimo legal).
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Por fim, uma nota.
No douto Parecer do Ministério Público sugere-se uma correcção à decisão recorrida.
Constata-se porém que a pretendida correcção tem a sua razão de ser num “lapso” da tradução da decisão recorrida, e que não ocorre na versão original do Acórdão prolatado pelo Colectivo do T.J.B. e objecto do presente recurso.
Assim, e feita a nota que antecede, nada mais se mostra de consignar.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 08 de Março de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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