Processo n.º 11/2018 Data do acórdão: 2018-3-9
(Autos em recurso penal)
Assuntos:
– tráfico de estupefaciente
– tráfico de menor gravidade
– art.o 11.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009
– art.o 18.o da Lei n.o 17/2009
– atenuação especial da pena
S U M Á R I O
1. Improcede liminarmente a tese do arguido de convolação, com base na consideração do quíntuplo da alegada quantidade de consumo diário de metanfetamina dele próprio, do crime de tráfico de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 para o crime de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o da mesma Lei, visto que é o n.o 2 do art.o 11.o desta lei que manda atender especialmente ao critério de a droga encontrada na disponibilidade do agente não exceder “cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário” anexo a esta Lei, daí que não se pode defender outro critério que não seja esse critério legal.
2. Não se pode atenuar especialmente a pena do crime de tráfico de estupefacientes do arguido, porquanto a sua ajuda na identificação concreta do indivíduo fornecedor da droga não dá para activar o mecanismo de atenuação especial da pena previsto no art.o 18.o da Lei n.o 17/2009, porque atenta a letra desta norma a cláusula especial, aí plasmada, de atenuação especial da pena tem por escopo estimular o desmantelamento de grupos, de organizações ou de associações dedicadores ao tráfico de droga.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 11/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: 1.o arguido A
2.o arguido B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão final proferido a fls. 915 a 939 (e com rectificação a fl. 1128 a 1128v, de alguns seus lapsos de escrita) do Processo Comum Colectivo n.° CR4-17-0155-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.o arguido A ficou condenado pela co-autoria material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na sua redacção anterior à dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de quatro anos e seis meses de prisão, pela autoria material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na pena de dois meses de prisão, pela autoria material de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, na pena de dois meses de prisão, e pela autoria material de um crime consumado de permissão de consumo ilícito de estupefacientes em lugar de reunião, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 2, da Lei n.o 17/2009, na pena de um ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas quatro penas com a pena de dois meses de prisão imposta no Processo n.o CR2-16-0506-PCC, finalmente na pena única de cinco anos e oito meses de prisão, e o 2.o arguido B condenado pela co-autoria material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção anterior à dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de quatro anos e seis meses de prisão, e pela autoria material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na pena de dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de quatro anos e sete meses de prisão.
Inconformados, veiram esses dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Imputou o 1.o arguido A ao acórdão recorrido o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), para rogar a revogação da decisão condenatória do crime de tráfico de estupefacientes por que vinha condenado, com todas as consequências legais daí advenientes em sede da medida da nova pena única, porquanto, segundo alegou ele na motivação do recurso, a circunstância referida na fundamentação do acórdão recorrido de que uma parte pequena das drogas encontradas no seu domicílio é destinada a consumo pessoal e a grande parte é destinada a consumo alheio nunca foi mencionada na acusação nem foi provada na audiência, e nos autos também não existe nenhuma prova a poder sustentar a hipótese de as drogas encontradas no seu domicílio pertencerem a ele próprio (cfr. a motivação de fls. 965 a 968 dos autos).
Enquanto o 2.o arguido B colocou concreta e materialmente as seguintes questões e pretensões como objecto do seu recurso (cfr. essas questões já delimitadas nas conclusões da sua motivação, apresentada a fls. 1042 a 1077):
– o regime de aplicação única a ele pelos factos delituosos praticados só pode ser a Lei n.o 17/2009, e nunca a sua versão alterada pela Lei n.o 10/2016;
– nunca poderia ele ter sido condenado se não pelo art.o 11.o da Lei n.o 17/2009, pois a sua quantidade de consumo para cinco dias era no total de cinco gramas, só podendo ser considerada para efeitos de tráfico ilícito de estupefacientes a quantidade de 0,807 grama de metanfetamina;
– não obstante ter aplicado com base na lei indevida uma pena menor do que a moldura mínima de cinco anos, o certo é que quatro anos e seis meses de prisão é incorrecto, ilegal e excessivo;
– o Tribunal não elencou as atenuantes, muitas no caso (tais como a confissão integral e sem reservas, a cooperação demonstrada, o seu comprovado estado de toxicodependência, a comprovada quantidade de consumo de um grama por dia, a sua conformação com o resultado da sua conduta mas em estado de consciência alterado, o seu desconhecimento da quantidade (suspeitava ser “ice”) e da quantidade (não fazia a menor ideia), o acto delinquente único de transporte, a idade dele, a sua integração social à data da detenção, a boa ausência de quaisquer elementos policiais relativamente a si, a sua necessidade de tratamento e acompanhamento, e o ser primário e não ter cometido crimes);
– a pena de prisão do crime de tráfico nunca poderia ser superior a dois anos e nove meses de prisão;
– desconhece-se o iter por que mediu o Tribunal a pena do próprio arguido;
– aliás, merece ele pena não privativa de liberdade;
– sempre se diria que deveria, fosse como fosse, ser suspensa a execução da pena de prisão.
Aos recursos respondeu o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal recorrido no sentido de procedência do recurso do 1.o arguido (cfr. a resposta de fls. 1129 a 1135) e de improcedência do recurso do 2.o arguido (cfr. a resposta de fls. 1121 a 1127).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 1199 a 1201), pugnando materialmente pelo provimento do recurso do 1.o arguido e pelo não provimento do recurso do 2.o arguido.
Feito subsequentemente o exame preliminar, corridos os vistos legais e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontra-se proferido a fls. 915 a 939 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Ante a matéria de facto dada por provada nesse acórdão, sabe-se, nomeadamente, o seguinte:
– por volta de Julho de 2016, o 1.o arguido A tomou de arrendamento um quarto da fracção autónoma dos autos, quarto esse perto da cozinha da mesma fracção, para fim da sua habitação e também para fazer festa de droga (cfr. o facto provado 1);
– o 1.o arguido A colocou a metanfetamina previamente embalada na cama desse quarto, para facilitar o consumo de droga (cfr. o facto provado 2);
– por volta de Julho de 2016, o 4.o arguido C começou a tomar de arrendamento um espaço de cama na sala da fracção autónoma acima referida; e durante o período da sua habitação nessa morada, o 1.o arguido A chegou a fornecer metanfetamina ao arguido C para este a consumir na mesma fracção autónoma (cfr. o facto provado 4);
– em 3 de Agosto de 2016, o 1.o arguido A comprou ao indivíduo chamado D cerca de um grama de metanfetamina (cfr. o facto provado 5);
– em 4 de Agosto de 2016, o 1.o arguido e outros cinco arguidos (a saber: a 3.a arguida E, o 5.o arguido F, o 6.o arguido G, o 7.o arguido H e o 4.o arguido C) e uma pessoa chamada “X” consumiram em conjunto a referida metanfetamina de cerca de um grama de peso, tendo, para o efeito, os arguidos A e H usado os utensílios dentro da dita fracção para consumir a droga (cfr. o facto provado 8);
– aquando do acto de consumo, o 1.o arguido A exigiu a esses cinco arguidos para juntarem MOP1.250,00 para comprarem mais três gramas de metanfetamina, e todos concordaram (cfr. o facto provado 9);
– depois, o 1.o arguido A decidiu comprar mais dois gramas de metanfetamina, e contactou então D, para comprar um total de cinco gramas de metanfetamina, e avisou o 2.o arguido B para este ir buscar, numa pensão, a tal pessoa chamada D, tal droga para a levar para a fracção autónoma acima referida (cfr. o facto provado 10);
– o 2.o arguido B acatou de imediato a indicação do 1.o arguido A, e foi buscar a tal D, numa pensão, cinco gramas de metanfetamina, e no acto desse negócio, o próprio arguido B comprou a D três gramas de metanfetamina (cfr. o facto provado 11);
– em 4 de Agosto de 2016, à tarde, o pessoal da Polícia Judiciária entrou na fracção autónoma em causa, e descobriu aí o 1.o arguido A, a 3.a arguida E, o 5.o arguido F, o 6.o arguido G e o 7.o arguido H, tendo descoberto também, entre outras coisas, um saco de cor azul contendo três saquinhos contendo cristais de cor branca, saco esse guardado na cama do quarto perto da cozinha da mesma fracção autónoma (cfr. o facto provado 13), sendo certo que feito o ulterior exame laboratorial, se sabe que esses cristais são metanfetamina com peso líquido (no estado puro da sua quantidade), ao total, de 1,02 gramas (cfr. o facto provado 20);
– no decurso da investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária, o 2.o arguido B chegou à fracção autónoma referida, e o pessoal dessa Polícia descobriu que esse arguido trouxe na altura consigo diversos saquinhos de cristais de cor branca (cfr. o facto provado 15), sendo certo que feito o ulterior exame laboratorial, se sabe que esses cristais são metanfetamina com peso líquido (no estado puro da sua quantidade), ao total, de 5,807 gramas (cfr. o facto provado 22);
– os dois arguidos A e B adquiriram, detiveram, e forneceram a outrem, de modo livre, voluntário e consciente, e sem autorização, a droga controlada por lei (cfr. o facto provado 25), sabendo bem a natureza e as características da droga referida, e sabendo claramente a punibilidade legal da conduta deles (cfr. o facto provado 29);
– o 2.o arguido é delinquente primário.
3. Na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida, o Tribunal sentenciador afirmou que:
– a prova mostra que a droga consumida pelos 3.o a 7.o arguidos foi fornecida pelo 1.o arguido (cfr. as linhas 7 a 8 do 2.o parágrafo da página 30 do texto do aresto recorrido, a fl. 929v dos autos);
– o 1.o arguido negou a prática dos factos acusados e o 2.o arguido confessou parte dos factos acusados (cfr. a última linha da página 23 do texto do aresto recorrido, a fl. 926 dos autos, e o segundo parágrafo da página 24 do mesmo texto, a fl. 926v).
4. Na fundamentação jurídica da decisão condenatória recorrida, o Tribunal sentenciador afirmou considerar que a droga apreendida no quarto do 1.o arguido, no peso total líquido de 1,02 gramas, se destina, em pequena parte, ao consumo próprio desse arguido, e em grande parte ao fornecimento a outrem (cfr. o penúltimo parágrafo da página 33 do aresto recorrido, a fl. 931 dos autos), consideração essa que não consta da factualidade descrita no libelo acusatório de fls. 403 a 409 (cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido), nem da matéria de facto descrita como provada no próprio acórdão recorrido.
5. Na fundamentação jurídica do acórdão recorrido, o Tribunal seu autor afirmou (na página 38 desse texto decisório, a fl. 933v dos autos) que, depois de feita a comparação, era de aplicar ainda a Lei n.o 17/2009 na sua redacção anterior à dada pela Lei n.o 10/2016 (Lei esta que introduziu alteração às normas dos art.os 8.o, 14.o e 15.o daquela Lei), por entender ser a redacção anterior mais favorável aos arguidos.
6. Do teor da acta da audiência de julgamento em primeira instância (na parte lavrada a fls. 823 e seguintes dos autos), não consta que o 2.o arguido tenha confessado integralmente e sem reserva os factos. E do teor da acta da audiência (a fls. 826 a 826v e 852v), resulta que o indivíduo preso D foi ouvido como testemunha, cujo depoimento prestado também ficou resumido na fundamentação probatória do acórdão recorrido (cfr. o último parágrafo da página 27 e o primeiro parágrafo da página 28 do texto do acórdão recorrido, a fls. 928 a 928v).
7. Os 1.o e 2.o arguidos ora recorrentes, na pessoa dos seus Ex.mos Defensores, foram notificados, por carta de notificação de 18 de Dezembro de 2017 (cfr. o processado de fls. 1154 a 1155v), da decisão, exarada a fl. 1128 a 1128v, de rectificação de alguns lapsos de escrita do texto do acórdão final da Primeira Instância (no sentido de suprimir a menção da Lei n.o 10/2016 em algumas passagens desse texto, por o Tribunal sentenciador entender, tal como já resultava do teor da fundamentação do próprio acórdão em causa, ser de aplicar ainda a Lei 17/2009 na redacção anterior à Lei n.o 10/2016).
8. Do teor de fl. 343, 345 a 346v, 380 e 381, sabe-se que o 1.o arguido A e o 2.o arguido B ajudaram a Polícia Judiciária a identificar concretamente o indivíduo D referido na fundamentação fáctica do acórdão recorrido. Do teor de fl. 343, sabe-se que o 2.o arguido disse, em 13 de Outubro de 2016, também à Polícia Judiciária que uma senhora vinda da Indonésia chamada X e um outro senhor filipino chamado X também se dedicavam à actividade relativa ao tráfico de droga em Macau. No despacho exarado em 23 de Fevereiro de 2017 a fl. 402, o Digno Delegado do Procurador afirmou que até essa data não se conseguiu apurar o paradeiro de D. E nesse mesmo dia, deduziu o mesmo Digno Magistrado do Ministério Público a acusação pública de fls. 403 a 409 contra inclusivamente os 1.o e 2.o arguidos.
9. Consta de fl. 367 a 367v um documento datado de 15 de Dezembro de 2016, alusivo ao exame médico-legal do 2.o arguido B. Nesse documento, consta escrita a seguinte conclusão exarada pelo Senhor Médico Consultor de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde de São Januário de Macau:
– “O examinado apresenta uma história de abuso e dependência de substâncias psicotrópicas, cannabis e “ice” (substância psicotrópica estimulante do grupo das anfetaminas), iniciada aos 18-19 anos de idade. Nunca efectuou tratamentos para esta situação.
Antes de ser detido e enviado para a prisão onde se encontra, o examinado consumia habitualmente mais do que uma grama de “ice” por dia. Não foi possível apurar com exactidão qual a quantidade de “ice” que, então, consumia diariamente. Porém, o padrão de consumo que referiu ter antes de ser detido afigura-se plausível. De facto, mencionou uma história de dependência a esta substância com um ano e meio de evolução, sintomas relevantes, incluindo curtos períodos de ideias de desconfiança e experiências alucinatórias auditivo-verbais, e existência de indícios indicadores de apresentar aumento de tolerância e privação relativos a esta substância.” (cfr. o teor do documento em questão).
Nesse documento, foi escrito ainda o seguinte:
– “Metodologia para o Exame Médico-Legal
Exame directo: Observação do examinando em 18-11-2016 no Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ)”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, o 1.o arguido A anda a esgrimir o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada à decisão condenatória do seu crime de tráfico ilícito de estupefacientes.
Para suportar a existência desse vício nominado no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, alega que nos autos não existe nenhuma prova a poder sustentar a hipótese de as drogas encontradas no seu domicílio pertencerem a ele próprio.
Vê-se, assim, que este recorrente confunde o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada com a questão de insuficiência ou até inexistência de prova, do foro próprio do vício de erro notório na apreciação da prova nominado no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
Aborda-se, assim, se há erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal sentenciador:
Vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra que o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal sentenciador tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova ou quaisquer leges artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, pelo que não se pode sindicar a factualidade já julgada como provada pelo Tribunal recorrido.
Segundo essa factualidade provada: o 1.o arguido colocou a metanfetamina previamente embalada na cama do quarto da fracção autónoma dos autos tomado de arrendamento por ele próprio para sua habitação e foi na cama desse quarto que foram encontrados saquinhos de cristais de cor branca contendo, no interior dos mesmos, um total de 1,02 gramas da quantidade líquida (no estado puro) de metanfetamina, detidos por ele próprio sem autorização (cfr. os factos provados 1, 2, 13, 20 e 25, conjugados).
Ante isso, é indubitável que essa quantidade de metanfetamina encontrada no quarto de habitação dele era da sua pertença.
Para pedir a revogação da decisão condenatória do seu crime de tráfico de estupefaciente, o mesmo arguido alega que a circunstância referida na fundamentação do acórdão recorrido de que uma parte pequena dessa droga encontrada é destinada a consumo pessoal e a sua grande parte é destinada a consumo alheio nunca foi mencionada na acusação nem foi provada na audiência de julgamento. É correcta essa observação, porquanto de facto, essa circunstância não chegou a ser referida na matéria fáctica descrita no libelo acusatório nem referida no acervo dos factos dados por provados e descritos na fundamentação fáctica do aresto recorrido. O Tribunal autor desse acórdão limitou-se a tecer tal consideração na fundamentação jurídica do acórdão, pelo que tal consideração não pode relevar para efeitos de incriminação do tráfico de estupefacientes.
Entretanto, embora não se possa atender a tal consideração tecida na fundamentação jurídica do acórdão recorrido para a considerar como um facto acusado pelo Ministério Público (e posteriormente dado por provado na audiência de julgamento realizada perante o Tribunal recorrido), do acervo dos factos descritos como provados na fundamentação fáctica do mesmo acórdão já constam, desde já, os seguintes factos provados para efeitos de condenação do 1.o arguido pela prática, em co-autoria material (com o 2.o arguido), do crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes:
– o 1.o arguido avisou o 2.o arguido B para este ir buscar, numa pensão, ao indivíduo chamado D cinco gramas de metanfetamina, três gramas dos quais para os 3.a, 5.o, 6.o, 7.o e 4.o arguidos (e os outros dois gramas para o próprio 1.o arguido), tendo o 2.o arguido acatado de imediato a indicação do 1.o arguido e ido buscar a tal indivíduo D, numa pensão, cinco gramas de metanfetamina (cfr. o facto provado 8, 9, 10, 11, );
– e no acto do negócio feito com D, o 2.o arguido comprou para si a esse indivíduo três gramas de metanfetamina (cfr. o facto provado 11);
– depois, o 2.o arguido trouxe consigo diversos saquinhos de cristais de cor branca e à chegada da fracção autónoma dos autos, foi como tal descoberto pela Polícia Judiciária (cfr. o facto provado 15), sendo certo que feito o ulterior exame laboratorial, se sabe que esses cristais são metanfetamina com peso líquido (no seu estado puro), ao total, de 5,807 gramas (cfr. o facto provado 22);
– os 1.o e 2.o arguidos adquiriram, em esforço comum, metanfetamina para ser fornecida aos 3.a, 5.o, 6.o, 7.o e 4.o arguidos (circunstância fáctica essa que é extraída da análise dos factos provados acabados de serem referidos acima e de acordo com o sentido e alcance também do facto provado 25).
E a quantidade de metanfetamina concretamente em causa na acima comprovada conduta de tráfico de estupefaciente praticada em co-autoria pelo 1.o arguido é de 2,177625 gramas líquidos de metanfetamina no seu estado puro (o que corresponde a 3/8 dos 5,807 gramas líquidos da quantidade pura de metanfetamina contidos nos cristais de cor branca encontrados pela Polícia na posse do 2.o arguido à chegada da fracção autónoma dos autos, posto que 3/8 desses cristais de cor branca foram adquiridos em comum esforço pelos 1.o e 2.o arguidos para os outros cinco arguidos), ultrapassando essa mesma quantidade líquida de 2,177625 gramas de metanfetamina o quíntuplo de 0,2 grama como quantidade de referência de uso diário desta mesma substância, como tal prevista no mapa respectivo em anexo à Lei n.o 17/2009.
Deste modo, fica cabalmente demonstrada a co-autoria material, por parte do 1.o arguido, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, dessa Lei, na redacção anterior à alteração introduzida pela Lei n.o 10/2016, posto que, repita-se, já ficou provado que os 1.o e 2.o arguidos, em comum esforço, compraram a D cristais de cor branca de metanfetamina (com 2,177625 gramas de metanfetamina no estado puro) para os outros cinco arguidos.
Improcede, pois, o recurso do 1.o arguido.
E agora do recurso do 2.o arguido:
Antes do mais, é de observar que não lhe assiste razão quando alega materialmente na sua motivação que não foi aplicada a Lei n.o 17/2009 na sua versão antes da alteração introduzida pela Lei n.o 10/2016.
É que foi concretamente já aplicada a Lei n.o 17/2009, na versão vigente à data dos factos, sem, pois, alteração introduzida pela Lei n.o 10/2016 (cfr. a fundamentação jurídica do próprio acórdão recorido, que explica bem a decisão de aplicação, em concreto, da Lei n.o 17/2009 na redacção anterior à introduzida pela Lei n.o 10/2016, mormente quanto ao crime de tráfico de estupefaciente).
Outrossim, improcede liminarmente (isto é, sem mais indagação por ociosa) a tese de convolação do crime de tráfico de estupefaciente (do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009) para o crime de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o da mesma Lei, porquanto é o n.o 2 do próprio art.o 11.o da mesma Lei que manda atender especialmente ao critério de a droga encontrada na disponibilidade do agente não exceder “cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário” anexo a esta Lei, daí que não se pode defender outro critério que não seja esse critério legal.
Ao contrário do que pretende fazer insinuar o 2.o arguido na motivação do recurso, não se realiza que há falta de fundamentação no acórdão recorrido no tocante à medida concreta da pena do tráfico de estupefaciente.
Tendo praticado o 2.o arguido, em co-autoria material com o 1.o arguido (nos termos já acima vistos e concluídos aquando da análise do recurso do 1.o arguido), um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, punível, no caso, com pena de prisão de três a quinze anos de prisão, a pena de prisão do 2.o arguido por este crime nunca poderia ser não superior a dois anos e nove meses.
Nota-se, e em hipótese falando, que não se pode atenuar especialmente a pena deste seu crime de tráfico de estupefacientes, porquanto a sua ajuda na identificação concreta daquele indivíduo fornecedor da droga chamado D não dá para activar o mecanismo de atenuação especial da pena previsto no art.o 18.o da Lei n.o 17/2009, porque, no entender do presente Tribunal de recurso, atenta a letra desta norma jurídica, a cláusula especial, aí plasmada, de atenuação especial da pena tem por escopo estimular o desmantelamento de grupos, de organizações ou de associações dedicadores ao tráfico de droga (e se a ajuda na identificação concreta de um fornecedor de droga já não dá para se atenuar especialmente a pena, muito menos será o fornecimento de, apenas, referências não suficientemente identificadoras de outros dois indivíduos ditos pelo 2.o arguido como traficantes de droga em Macau e conhecidos por ele como sendo X e X).
E na medida concreta da pena, há que ponderar todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância.
Assim, embora seja de manter, nos termos já acima analisados, a condenação do 2.o arguido pela co-autoria material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, por causa, na opinião do presente Tribunal de recurso, daquela quantidade (de 2,177625 gramas de metanfetamina no estado puro) concretamente “traficada” (rectius, comprada) por ele em comum esforço com o 1.o arguido para os outros cinco arguidos, a também já comprovada conduta do próprio 2.o arguido de comprar “dois gramas” de metanfetamina (necessariamente ilíquidos, pois da matéria de facto dada por provada no acórdão recorrido, se vê que o negócio entre o vendedor e o comprador de droga não se faz com quantidade líquida desta substância no seu estado puro) (aos quais corresponde a quantidade líquida, no seu estado puro, de 1,45175 gramas de metanfetamina) para uso do 1.o arguido deve relevar como uma circunstância agravante na medida da pena, nos termos do art.o 65.o, n.o 2, do Código Penal (CP), do tal crime de tráfico praticado pelo próprio 2.o arguido em co-autoria material com o 1.o arguido.
Ponderando esta circunstância e também outras demais circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal sentenciador, com pertinência à medida concreta da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena de quatro anos e seis meses de prisão já aplicada pelo Tribunal recorrido ao crime de tráfico ilícito de estupefacientes do 2.o arguido já não admite mais redução, embora ele seja um delinquente primário, sendo de salientar que diversamente do dito por ele na motivação do recurso, ele não chegou a confessar integralmente e sem reserva os factos, mas sim apenas parte dos mesmos (para constatar isto, basta atender, inclusiva e nomeadamente, a que na motivação do recurso alega ele que agiu “em estado de consciência alterado”, tendo suspeitado se era “ice”, ao passo que ele vinha acusado como tendo agido de modo consciente sabendo a natureza e características da droga em causa (cfr. também os factos provados 25 e 29, ao que acresce que, como já acima se analisou e concluiu, não houve erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal sentenciador).
Sendo de manter, pois, essa pena de quatro anos e seis meses de prisão do crime de tráfico de estupefacientes do 2.o arguido (e também, por não haver injustiça notória, a pena de prisão do seu crime de consumo, e a sua pena única de prisão, já impostas no acórdão recorrido, a qual é já superior a três anos de prisão), é inviável liminarmente, em sede do art.o 48.o, n.o 1, do CP, a pretensão do 2.o arguido de suspensão da execução da pena de prisão.
Nota-se que não faz sentido suspender a execução da pena de prisão do crime de consumo, quando esta pena tem que entrar na operação de cúmulo jurídico com a dita pena de prisão do crime de tráfico, em si já superior a três anos de prisão.
Naufraga o recurso do 2.o arguido, sem mais indagação por ociosa ou já prejudicada pela análise feita.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento aos recursos.
Custas dos recursos pelos respectivos arguidos recorrentes, pagando o 1.o arguido duas UC de taxa de justiça e duas mil patacas de honorários do seu Ex.mo Defensor Oficioso, e o 2.o arguido oito UC de taxa de justiça.
Macau, 9 de Março de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 11/2018 Pág. 19/21