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Proc. nº 311/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 08 de Março de 2018
Descritores:
- Livre convicção da prova
- Facto extintivo
- Pagamento

SUMÁRIO:

I - Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova.

II - A decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC” e o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.

III - A prova do pagamento incumbe ao réu, na medida em que ele constitui um facto extintivo do direito do autor (art. 335º, nº2 e 752º do CC).

Proc. nº 311/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instancia da RAEM

I - A, do sexo feminino, solteira, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM n.º ..., com residência em Macau, na …, adiante designada por “autora”, instaurou no TJB (Proc. nº Cv1-14-0081-CAO)----
acção declarativa ordinária contra o seu irmão---
B, do sexo masculino, casado, com residência em Macau, Taipa, na…, adiante designado por “réu”---
Pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de HKD$1.129.400,00 (MOP$1.162.282,00) e juros respectivos, em resultado de partilhas da herança do seu pai.
*
Na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente provada e procedente.
*
É contra essa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional pelo réu, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1) Com base nos supra referidos factos provados, o Tribunal a quo julgou parcialmente procedente a acção intentada pela recorrida contra o recorrente, condenando este a devolver à primeira a quantia de MOP$287.782,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde o dia de citação até integral pagamento.
2) Salvo o devido respeito, o recorrente não está de acordo com a sentença a quo, tendo por fundamento o seguinte:
I Violação do disposto no artigo 436.º do CPC
3) Conforme os factos h) e i) dados por provados pelo Tribunal a quo, parece ao recorrente que ainda que o processo n.º CV1-11-0047-CAO somente prove que ele pagou a dívida de HKD$250.000,00 relativamente aos dois bens imoveis deixados pelo seu pai C quando faleceu,
4) o efeito da decisão transitada em julgado ou do caso julgado não obsta a que o recorrente invoca e comprova nos autos em causa que a supra indicada dívida realmente excedeu HKD$250.000,00.
5) De facto, várias provas documentais nos autos acima referidos mostram que a dívida deixada pelo falecido não foi somente HKD$250.000,00. Esses documentos são, designadamente: 1) o inventário do processo n.º CV1-11-0047-CAO, que descreve a dívida de MOP$779.334,09 deixada pelo autor da herança C no momento de falecimento; 2) a declaração assinada pela recorrida que confirma a existência duma dívida de MOP$779.334,09 de C no Banco X; 3) o guia de pagamento de dívida de HKD$500.000,00 pelo recorrente ao Banco X
6) Na audiência de julgamento, a testemunha D (segundo filho de C) oferecida pela recorrida e a testemunha E oferecida pelo recorrente indicaram expressamente que a dívida deixada pelo falecido superou HKD$250.000,00. Acresce que, segundo E, o bem imóvel 1 ainda tem uma dívida bancária de mais de 700 mil, empréstimo pedido pelo pai do recorrente, C, em nome da Fábrica de Linhas XX e através de hipoteca; o pagamento da respectiva dívida é assumido só pelo recorrente, que já calculou com a recorrida as verbas entre eles e já lhe efectuou o pagamento.
7) Todavia, o Tribunal a quo na audiência de julgamento apenas afirmou que, já que o processo n.º CV1-11-0047-CAO tinha tratado a dívida deixada pelo falecido C, tal dívida não foi o ponto-chave do conhecimento dos autos em causa.
8) Logo, os factos constantes dos quesitos 14º e 15º da base instrutória foram dados como não provados pelo Tribunal a quo.
9) Contudo, segundo o recorrente, o âmbito da decisão transitada em julgado ou do caso julgado não deve abranger a parte relativa à dívida de mais de HKD$250.000,00 deixada pelo seu pai falecido.
10) E nos termos do artigo 436.º do CPC, o tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova.
11) Portanto, salvo o devido respeito pela posição tomada pelo Tribunal a quo, parece ao recorrente que o Tribunal a quo, no conhecimento dos factos constantes dos quesitos 14º e 15º da base instrutória, violou manifestamente o disposto no artigo 436.º do CPC, nomeadamente por não ter considerado suficientemente as provas documentais e testemunhais, proferindo, em consequência, sentença desfavorável ao recorrente.
II Violação do disposto no artigo 335.º do Código Civil
12) De acordo com os factos o) e p) dados como provados pelo Tribunal a quo, o recorrente disse à recorrida que já tinha falado com a sua tia mais velha, a quem venderia o bem imóvel 1 pelo preço de HKD$1.100.000,00; e o recorrente recebeu o preço de HKD$1.100.000,00 pago pela compradora.
13) Segundo o recorrente, entretanto, o Tribunal a quo ao dar como provados esses factos não considerou suficientemente as provas documentais e testemunhais, como por exemplo, o facto de a recorrida não conseguir provar a existência, entre ela e o recorrente, do acordo referido: “após a venda do bem imóvel 1, todo o dinheiro proveniente da venda seria recebida pelo recorrente só, com vista à dedução de importâncias em dívida e de outras despesas adiantadas por este.”
14) Segundo mostra a escritura, todavia, o recorrente e a recorrida venderam o bem imóvel 1 pelo preço de MOP$1.100.000,00, mas não HKD$1.100.000,00.
15) Além disso, o recorrente e a recorrida, ao assinarem a respectiva escritura como primeiros outorgantes, declararam ter recebido o preço em supra referido:
Declaram os primeiros outorgantes:
Que, pelo preço já recebido, de MOP$1.100.000,00, vendem aos segundos outorgantes, o seguinte: Fracção autónoma designada por “F-8” (...)
16) Como se refere no despacho saneador do Tribunal a quo: o que a recorrida invoca é a falta de cumprimento total, por parte do recorrente, do acordo tido entre os dois relativamente à restituição do preço recebido da venda em causa (segundo a petição inicial, o preço foi totalmente recebido pelo recorrente).
17) No entanto, o Tribunal a quo não deu por provado o facto relativo ao acordo, nem o de o recorrente ainda não ter devolvido à recorrida o dinheiro proveniente da venda do imóvel.
18) Acresce que, a testemunha D oferecida pela recorrida nunca participou na transacção do bem imóvel 1, nem conhecia as situações em relação à venda, nem sequer sabia se o recorrente já tinha pago à recorrida ou não, ou se já tinha efectuado ou não a restituição mediante o depósito de dinheiro na conta de dólares de Hong Kong aberta pelo filho da recorrida, F, no Banco X, sucursal de Macau, para não falar se ou não o recorrente recebeu, por si só, todo o preço da venda do bem imóvel 1.
19) De facto, refere a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto: “(...) a testemunha D irmão da Autora e Réu e que também se queixa de nada ter recebido do Réu, sendo que, esta testemunha para além de que o pai deixou duas fracções e o valor pelo qual foi vendida a fracção F8 cada mais é capaz de explicar (...)”
20) De acordo com o disposto no artigo 335.º, n.º 1 do CC, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Isto quer dizer que a recorrida deve fazer a prova da falta de cumprimento completo, por parte do recorrente, do acordo alcançado entre os dois, não bastando apenas expor na petição inicial que tal preço foi totalmente recebido pelo recorrente.
21) Não se pode deixar de mencionar que, in casu, a recorrida não conseguiu prestar qualquer prova do que invocou, para não falar que a testemunha D por ela oferecida forneceu prova no sentido contrário, indicando que o recorrente já tinha pago a respectiva verba à recorrida.
22) E como entende o Venerando TSI no acórdão do processo n.º 761/2009: Para que o Tribunal conheça do enriquecimento sem causa, é necessário que o autor alegue e prove os factos que constituem os requisitos do enriquecimento.
23) Ressalvado o devido respeito pela posição tomada pelo Tribunal a quo, afigura-se ao recorrente que não há qualquer prova, quer documental quer testemunhal, de ele ter recebido, por si só, o preço da venda do imóvel no valor de HKD$1.100.000,00, e não ter pago à recorrida a verba em causa.
24) Pelo exposto, o Tribunal a quo, ao dar por provado o facto constante do quesito 8º da base instrutória, violou manifestamente o disposto no artigo 335.º do CC, proferindo, em consequência, sentença desfavorável ao recorrente, no sentido de julgar parcialmente procedente a acção intentada pela recorrida contra o recorrente, e condenar este a devolver à primeira a quantia de MOP$287.782,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde o dia de citação até integral pagamento.
Face ao exposto, peço aos Exm.os Juízes que concedam provimento ao presente recurso e, decidindo:
i. Anular a sentença de 6 de Dezembro de 2016 do Tribunal a quo pela violação do artigo 436.º do CPC; ou
ii. Anular a sentença em causa pela violação do artigo 335.º do CC.
Assim se fazendo a costumeira justiça!».
*
A autora da acção respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«1. O recurso interposto pelo Réu, ora Recorrente, da sentença proferida em 06.12.2016, deverá ser julgado improcedente por manifesta falta de fundamento;
2. Porquanto o Recorrente pretendeu-se pôr em causa uma decisão de legalidade inquestionável, bem estruturada e ainda melhor fundamentada, que fez uma correcta aplicação do direito à questão submetida a julgamento;
3. O Réu, ora Recorrente, alega que a sentença recorrida viola o disposto no artigo 436.º do CPC, por considerar que o douto Tribunal não tomou em consideração todas as provas realizadas no processo;
4. Salvo o devido respeito, tal entendimento é completamente descabido e desprovido de fundamento;
5. Na verdade, as quantias alegadamente em dívida no montante de HKD$900.000,00 que o Recorrente pretender fazer valer são quantias que já foram objecto de acerto de contas entre o Recorrente e a Recorrida e com a madrasta de ambos (Sra. G), e foi muito antes da instauração da presente acção e até antes da acção já finda e que correu termos sob o n.º CV1-11-0047-CAO;
6. Aliás, foi por essa razão que os mesmos celebraram o citado acordo de partilha de direitos da herança e dos imóveis;
7. Tendo nele estabelecido que caso a referida Sra. G não cumprisse com as suas obrigações, esta estaria obrigada a pagar ao Recorrente e à Recorrida a quantia de HKD$250.000,00, montante esse que já tinha sido abatido no valor de HKD$700.000,00 que a referida Sra. G concordou em receber, de uma só vez, em contrapartida da adjudicação ao Recorrente e à Recorrida dos dois imóveis que compõem a herança do de cujus (Sr. C);
8. Pelo que, não há dúvidas que a diferença do valor da dívida da herança do pai falecido do Recorrente e da Recorrida é apenas de HKD$250.000,00;
9. Esse montante ficou já provado no âmbito do processo que correu termos no 1.º Juízo Cível sob o n.º CV1-11-0047-CAO, e que corresponde ao valor da dívida envolvida nos dois únicos imóveis e que, naquela altura, ainda não foi acertada entre o Recorrente e a Recorrida;
10. Caso contrário, o Recorrido já tinha reclamado naquele processo, para além de HKD$250.000,00, mais a quantia adicional de HKD$900.000,00, o que não o fez nem na fase dos articulados nem em sede de recurso;
11. Por isso, não tem qualquer cabimento acreditar que o Recorrente aguardou até agora para vir reclamar junto da Recorrida a alegada quantia de HKD$900.000,00, no pressuposto de o Recorrente já ter podido prever, de antemão, que a Recorrida iria lançar mão da presente acção judicial e, em consequência, poder aguardar esta oportunidade de fazer abater nas quantias reclamadas pela Recorrida;
12. Com isto, salvo melhor opinião, o que o Recorrente pretende agora é servir-se, novamente, das mesmas quantias para, na eventualidade de tal pedido ser atendido poder abater as mesmas ao montante em que venha ou viesse a ser condenado a pagar à Recorrida;
13. Tal conduta é demonstrativa de uma pura e manifesta má-fé do Recorrente;
14. Pois, do depoimento da testemunha, Sr. D, evidenciou que o Recorrente recebeu a quantia resultante da venda da fracção “F8” no montante de HKD1.100.000,00,e metade desse montante (HKD550.000,00) deveria ser entregue à Recorrida e que até agora apenas lhe entregou HKD270.600,00;
15. Como também ficou confirmado que todas as outras dívidas existentes entre o Recorrente e a Recorrida já estão integralmente liquidadas, incluindo a quantia de 770.000,00 devida ao Banco X;
16. Portanto, o Tribunal a quo formou, e bem, a sua convicção, ao decidir como não provados os quesitos n.ºs 14.º e 15.º da Base Instrutória e, em consequência, condenar o Recorrente a pagar à Recorrida, a quantia de MOP287,782.00, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
17. Pelo que, salvo melhor opinião, não há qualquer violação do princípio da aquisição processual, nem tão pouco do artigo 436.º do CPC;
18. Assim, o argumento trazido à colação pelo Recorrente só pode ter-se por totalmente improcedente;
19. O Recorrente alega também que a Douta Sentença viola o artigo 335.º do CC, o que não pode, de todo, ter-se por procedente, por, mais uma vez, não lhe assistir qualquer razão;
20. Pois, o Tribunal a quo decidiu, e bem, “que foi o Réu quem recebeu a quantia resultante da venda da fracção “F8” no montante de HKD1.100.000,00 equivalente a MOP1.133.000,00”, e “do valor que o Réu havia de pagar à Autora no montante de MOP566.500,00 (equivalente a HKD550.000,00) apenas lhe entregou MOP278.718,00 (equivalente a HKD270.600,00)”;
21. Tais factos foram claramente confirmados pela testemunha (Sr. D) arrolada pela Recorrida, quem os invocou e sobre a qual recai o ónus da prova, nos termos do art.º 335.º, n.º 1, do CC;
22. Ora, pretendendo o Recorrente fazer contra-prova deste direito invocado pela Recorrida, é sobre aquele que recai o ónus de fazer prova de factos extintivos desse mesmo direito, nos termos do art.º 335.º, n.º 2, do CC;
23. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte passagem do Código Civil Anotado de ABÍLIO NETO, 14.ª Edição Actualizada 2004, pág. 320, que refere de forma muito clara o seguinte: “77.1 - O pagamento, como facto extintivo do direito do autor, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do Cód. Civil, haverá de ser provado pelo réu (... )”;
24. Sucede porém que o Recorrente não foi capaz de provar qualquer pagamento feito à Recorrida;
25. Pelo contrário, a testemunha Sr. D confirmou que ainda se encontra por pagar, por parte do Recorrente, parte do preço da fracção “F8” à Recorrida;
26. Com isto, é evidente que não houve qualquer vício na repartição do ónus de prova que recaiu sobre os factos aqui em causa, e muito menos a alegada violação do artigo 335.º do CC;
27. Assim, não pode, de modo algum, ter-se por boa a argumentação do Recorrente, devendo a mesma ser totalmente indeferida.
JUSTIÇA!»
*
Cumpre decidir.
*
II – Os Factos
A sentença deu por prova a seguinte factualidade:
«a) A Autora, A, é a irmã mais velha do Réu, B, e o pai deles, C, faleceu em 20 de Março de 2002;
b) A Autora, o Réu e a madrasta, G, já chegaram a um acordo em relação à distribuição da herança de C, após G receber a compensação de HKD700.000,00 de uma só vez, concordaram em que o “imóvel 1” (isto é, a fracção autónoma “F8”) e o “imóvel 2” (isto é, a fracção autónoma “BI15”) fossem adjudicadas à Autora e ao Réu na proporção de metade para cada um, e, a “divida 1” é assumida pela Autora e pelo Réu em comum;
c) Relativamente às despesas para o funeral do pai, C, a Autora e o Réu também combinaram que o Réu pagava primeiramente o montante de RMB50.000,00 (aproximadamente MOP61.000,00);
d) Mediante a escritura pública celebrada em 27 de Fevereiro de 2008 no cartório privado de Diamantino Ferreira, a Autora e o Réu venderam o imóvel 1 a H e sua mulher, I (isto é, cunhada do Réu), esta escritura consta nos autos a fls. 41 a 63, cujo conteúdo dá-se por integralmente reproduzido;
e) A seguir, em 7 de Dezembro de 2009 no notário privado de Fong Kin Ip, o Réu, em nome da Autora, vendeu à compradora, J, ou seja, a sogra do Réu, metade da propriedade do imóvel 2 que pertenceu à Autora, no valor de MOP705.000,00;
f) No acto de compra e venda indicado na alínea e), o Réu, em representação da Autora, recebeu o montante de MOP705.000,00 da compradora, J;
g) A Autora já tinha instaurado uma acção ordinária contra o Réu através do Tribunal de Macau, no sentido de pedir ao Réu a restituição do montante de HKD705.000,00 que não pertence ao Réu mas a Autora devia obter;
h) A acção judicial referida na alínea g) correu termos neste tribunal sob o nº CV1-11-0047-CAO, tendo sido proferida a decisão em 13 de Março de 2013, na qual o Réu foi condenado a “dever restituir à Autora um montante de MOP169.372,00, acrescidos os juros de mora à taxa dos juros legais de 9,75% desde a citação até à liquidação integral da dívida.”;
i) De acordo com o conteúdo da sentença, a decisão acima referida é proferida com base no seguinte facto que já se deu por provado:
“Em 7 de Dezembro de 2009, o Réu, em nome da Autora, vendeu metade do imóvel, assim, o Réu recebeu o montante de MOP705.000,00 do(s) comprador(es), até ao presente momento, o Réu, porém, ainda não restituiu o preço à Autora.
Contudo, o facto mostrou que o Réu, em substituição da Autora, tinha pago várias vezes, as despesas que deviam ser assumidas conjuntamente pela Autora e pelo Réu, incluindo as seguintes despesas: as dívidas envolvidas nos dois imóveis deixados pelo pai deles na quantia de HKD250.000,00, as tornas pagas à madrasta, G, na quantia de HKD700.000,00, as despesas para o funeral do pai deles na quantia de MOP61.000,00, a despesa de condomínio dos respectivos imóveis na quantia de MOP14.102,00, as contribuições prediais na quantia de MOP16.229,00, perfazendo a totalidade de MOP1.071.256,00. (...)
(…) As respectivas despesas de MOP1.071.256,00 devem ser assumidas pela Autora e pelo Réu em partes iguais e conjuntamente, porém, o facto comprova que o Réu assumiu exclusivamente todas as despesas, pelo que a Autora é obrigada a restituir ao Réu metade das despesas, isto é, MOP535.628,00.
Por outro lado, quando o Réu, em substituição da Autora, vendeu metade de propriedade do imóvel que pertenceu à Autora, mas até ao presente momento, ainda não restituiu à Autora o preço (isto é, MOP705.000,00), sendo assim, após ter efectuado a respectiva compensação, o Réu ainda deve à Autora uma quantia de MOP169.372,00.”
j) Em 26 de Junho de 2014, o T.S.I. decidiu negar provimento ao recurso, homologando a decisão acima referida do Tribunal a quo;
k) A referida decisão já foi transitada em julgado em 14 de Julho de 2014;
l) A Autora também recebeu a quantia de MOP169.372,00 que o Réu foi condenado a pagar;
m) A Autora já assinou a declaração constante nos autos a fls. 133, na qual o conteúdo se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte conteúdo parcial: Eu, A e o irmão mais novo, D, B, depois de Abril de 2006, discutiram por várias vezes como tratar a herança depois de o pai, C, falecer. As três pessoas concordaram em que a quantia global de HKD4,5 milhões (...) obtida através da venda da herança do pai, C, ia ser utilizada para pagar a dívida do pai, C, no Banco X, na quantia de MOP779.334,09 + HKD700.000,00 à madrasta, G = MOP722.050,00, a seguir, a restante quantia podia ser divida em partes iguais pelas três pessoas, cada um podia obter um milhão dólares de Hong Kong (...). Uma vez que o irmão mais novo, D, permaneceu em Taiwan para receber o tratamento médico, não conseguiu voltar a Macau para tratar do assunto do pai, pelo que o entregou a mim, A, e o irmão mais novo no sentido de tratá-lo. Eu, A, tenho a vontade de dar a D a parte que devia obter, na quantia de HKD500.000,00 = MOP515.000,00. Confessando também que o acordo da partilha entre as três partes é verdadeiro, sem erro;
n) Quando  C  faleceu, deixou os seguintes bens:
1) Fracção autónoma designada por “F8”, situada em Macau, na …, 8º andar-F, servindo para habitação, do prédio descrito na CRP sob o número ... (“imóvel 1”);
2) Fracção autónoma designada por “BI15”, situada em Macau, na …, 15º andar-BI, servindo para indústria, do prédio descrito na CRP sob o número ... (“imóvel 2”);
o) A seguir, o Réu expressou à Autora que já negociava com a cunhada mais velha e ia vender o “imóvel 1” à cunhada mais velha com o preço de HKD1.100.000,00;
p) O Réu recebeu o valor referido na alínea o) dos compradores do imóvel;
q) O Réu, em 27 de Fevereiro de 2008, restituiu à Autora a quantia de HKD270.600,00 através de depósito na conta em dólares de Hong Kong nº ..., aberta no Sucursal de Macau, Banco X, a favor de F, filho da Autora;
r) A Autora interpelou várias vezes o Réu para lhe pagar;
s) As despesas do mandatário judicial do Réu são de MOP25.000,00.
***
III – O Direito
1 – Está em causa neste recurso a sentença que julgou a acção parcialmente provada e procedente, na sequência do que foi o réu condenado a pagar à sua irmã, a autora aqui recorrida, a quantia de MOP$ 287.782,00 e juros contados desde a citação até integral pagamento.
Este resultado pecuniário foi obtido através do seguinte iter demonstrativo:
- Se o réu recebeu da venda do prédio nº1 da herança do pai (“F8”) a quantia de HK$ 1.100.000,00 (equivalente a MOP$ 1.133.000,00), deveria restituir metade desta importância, ou seja, HK$ 550.000,00, equivalente a MOP$ 566.500,00) -----
- Mas se apenas restituiu à autora a quantia de HK$ 270.600,00 (equivalente a MOP$ 278.718,00), ----
- Então, ainda deve à irmã a importância de MOP$ 287.782,00 (566.500,00-278.718,00).
Quanto ao imóvel nº2 (“B15”) a sentença considerou que nada mais havia a decidir, por estar definitivamente julgada a causa onde a dívida estava em discussão (Proc. nº CV1-11-0047-CAO). Nessa acção, com decisão transitada após recurso para este TSI, fora o réu condenado a pagar à autora a quantia de MOP$169.372,00, o que fez.
*
2 – Vem agora o réu/recorrente alegar que a sentença proferida nos autos deveria ter levado em conta que a dívida do seu progenitor relativa aos dois imóveis não foi de HK 250.000,00, como nela foi decidido, mas sim de MOP$ 779.334,00, tal como resulta de documentos juntos nos autos e das declarações de testemunhas que identifica nas alegações do recurso, mas que o tribunal “a quo” não teria considerado, em alegada violação do art. 436º e 574º, nº1, do CPC.
Esta alegação tem por objectivo demonstrar que, tendo ele pago aquela dívida (e não apenas a de 250.000,00 considerada no aludido processo), nada mais tinha ele que pagar à sua irmã.
Pois bem. Quanto a esta matéria, teve a sentença recorrida a oportunidade de esclarecer que todas as despesas (dívidas da herança) invocadas na referida acção (CV1-11-0047-CAO) haviam sido definitivamente consideradas e tidas na devida conta. E como as partes eram as mesmas, acabou por concluir estar perante a excepção de caso julgado.
Realmente, tudo foi já questionado e resolvido naqueles autos em relação às dívidas da herança. A decisão ali tomada resolveu a questão do montante da dívida da herança e da consequente parte nela a que a autora tinha direito a receber do ora recorrente. O recorrente, no fundo, discorda da sentença ali proferida, e agora quer voltar à discussão do mesmo assunto (saber qual a dívida do “de cujos” perante os bancos). Contudo já não o pode fazer.
Mesmo que a acção entre as mesmas partes não tenha a mesma causa de pedir, a verdade é que essa matéria, mesmo que não traduza um “caso julgado” na perspectiva negativa da excepção de caso julgado, pelo menos representa-o na perspectiva positiva da autoridade de caso julgado (Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 553 e sgs.).
Isto significa que esta matéria não pode voltar a ser considerada, sob pena de se atentar contra o mínimo de certeza e de segurança jurídica resultante da prolação da decisão judicial. Qualquer alteração à força da sentença transitada apenas pode vir a ser considerada através do recurso extraordinário de revisão, o que ora não é o caso.
Em suma, não importa o que algumas testemunhas afirmaram, porque a sentença transitada ficou tendo força probatória dentro do processo, mas também fora dele nos limites fixados pelo art. 416º e sgs. do CPC (cfr. art. 574º, nº1, do CPC).
Improcede, pois, esta parte do recurso.
*
3 – Também o recorrente invoca a violação do art. 335º do Código Civil.
Nesta parte da impugnação é questionada a matéria dada como provada nas alíneas o) e p) dos factos assentes na sentença (respectivamente, decorrentes dos factos constantes dos quesitos dos artigos 6º e 8º da base instrutória). Em sua opinião, o tribunal não teve em consideração suficiente as provas documentais e testemunhais sobre a matéria em causa e que levariam a diferente resultado.
Acha o recorrente que inexiste nos autos qualquer prova, testemunhal ou documental, de que tenha recebido o preço da venda do imóvel (em patacas e não em dólares de Hong kong) e de não ter pago a verba em causa à irmã, autora.
Não procede, porém, a impugnação.
Quanto à discrepância da moeda na venda, o próprio réu/recorrente confessou que foi feita em dólares de Hong kong (cfr. arts. 17º e 18º da contestação), pese embora a menção na escritura de que fora em patacas (confirmar doc. 3 junto com a p.i).
Quanto ao resto, somos a dizer o seguinte:
Em primeiro lugar, a prova do pagamento incumbiria ao réu/recorrente, na medida em que este constitui um facto extintivo do direito do autor (art. 335º, nº2 e 752º do CC). O réu/recorrente não fez essa prova positiva do pagamento, nem sequer conseguiu abalar a prova efectuada pela autora sobre o assunto.
Em segundo lugar, os autos não dispõem de elementos fortes que justifiquem uma alteração do julgamento feito pela 1ª Instância acerca da matéria em causa. Com efeito, “Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. A decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC” e o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.” (Ac. do TSI, de 16/02/2017, Proc. nº 670/2016).
Posto isto, não merece censura a sentença recorrida.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
T.S.I., 08 de Março de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
311/2017 20