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Processo n.º 1092/2017
(Recurso em matéria cível)

Data: 15 de Março de 2018

ASSUNTOS:

- Simulação arguida pela filha do alegado simulador
- Não impugnação da matéria de facto e consequência

SUMÁRIO:

I – A figura da simulação, prevista no artigo 232°/1 do CC de Macau (CCM), estabelece os seus requisitos:
- A existência de um pacto simulatório entre o declarante e o declaratário;
- A divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado; e
- O intuito de enganar terceiros.

II - O artigo 234º/2 do CC confere aos herdeiros legitimários a legitimidade de arguir a nulidade do negócio simulado, desde que seja provado o intuito de prejudicar tais herdeiros.
II - O Tribunal a quo, a fim de tentar apurar os factos necessários à aplicação do artigo 234º/2 do CC, formulou um quesito com determinado conteúdo, mas este acabou por ficar não provado e, por outro lado, em sede do recurso, a Recorrente/Autora não veio a impugnar a matéria de facto nos termos do disposto no artigo 599º do CPC, Tribunal ad quem fica impedido de alterar a decisão da primeira instância, não obstante esta merecer algum reparo em termos de justiça material.



O Relator,

________________
 Fong Man Chong













Processo n.º 1092/2017
(Recurso Civil)
Data : 15/Março/2018

Recorrente : A (Autora)

Recorridos : B (1º Réu)
C (2ª Ré)
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

    I - RELATÓRIO
A, Recorrente nos presentes autos (Autora na primeira instância), propôs em 20/05/2014 e junto do TJB uma acção declarativa sob forma ordinária (CV2-14-0034-CAO), em que pediu que fosse declarado nula, por simulação, a compra e venda realizada entre os Réus por escritura pública de 19/08/2013, exarada a fls…. do Livro… do Cartório Notarial das Ilhas, relativa à fracção C7, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e consequente cancelado o registo de aquisição da quota de 1/2 da referida fracção a favor da 2ª Ré.
Por sentença de 23 de Maio de 2017, foi julgada improcedente o pedido e, em consequência, absolvidos os Réus dos pedidos formulados pela Autora.
Não se conformando com o decidido, veio a Autora interpor o competente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     1. Nos presentes autos foi julgado improcedente o pedido de declaração de nulidade, por simulação, do negócio de transmissão de uma quota correspondente a 1/2 da fracção objecto dos autos celebrado entre os Réus por escritura outorgada em 19.08.2013.
     2. Pese embora tenha considerado provado que houve divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o Tribunal a quo entendeu ter ficado por provar o conluio entre as partes (Réus) e o intuito de enganar terceiros, além de não ter sido provado o intuito de prejudicar a Autora.
     3. A venda de 1/2 da fracção, a fixação de um preço bastante abaixo do valor de mercado (MOP870.000, correspondente a 16% do valor de mercado - cf. fls. 35- 40), o pagamento faseado do preço, sendo pagas MOP200.000 no acto da escritura e os remanescentes MOP670.000 através da amortização do empréstimo hipotecário contraído pelo 1.° Réu quando este mesmo Réu alegou que a venda fora feita porque estava em dificuladades financeiras, bem como o facto de a compra e venda ter sido celebrada quando os Réus eram já pais de um filho nascido há nove meses, foram os factos que conduziram o Tribunal a quo a julgar verificada a divergência entre a vontade declarada e a vontade real.
     4. Porém, tais circunstâncias deveriam também ter levado o Tribunal a afirmar o conluio entre os Réus e a intenção de enganar terceiros, nomeadamente a ora Recorrente, a sua irmã D e a ex-mulher E.
     5. Se não foi para enganar terceiros, por que razão haveriam as partes de celebrar um negócio com semelhantes contornos?
     6. A propósito de outras possibilidades avançadas pelo Tribunal, se a Autora se limitou a arguir a nulidade do negócio por simulação absoluta, não tendo as partes suscitado a questão da existência de um negócio dissimulado, não compete ao Tribunal a quo especular sobre matéria não carreada pelas partes.
     7. Provados que ficam os três requisitos exigidos pelo n.º 1 do artigo 232.° do Código Civil, nulo é o negócio celebrado entre os Réus.
     8. Saber se foi intuito do 1.º Réu prejudicar a Recorrente é matéria diversa da verificação dos requisitos da simulação, importando apenas para o efeito da legitimidade substantiva.
     9. O Tribunal a quo não deu como provado que o 1.º Réu tenha tido a intenção de prejudicar a ora Recorrente, fundando a sua posição na ideia de que os documentos juntos a fls. 31 a 33 demonstram que a má relação entre a Recorrente e o 1.º Réu, datados de 29 de Outubro de 2013, são posteriores à compra e venda da fracção e precedente contrato promessa, pelo que não seriam aptos a demonstrar que à data da venda a relação já não era boa.
     10. A declaração de fls. 31 na qual o Réu manifesta a sua vontade de deserdar a Autora ora Recorrente e de cortar definitivamente as relações com ela é a afirmação pública do conflito preexistente entre eles por causa do destino a dar à fracção de que o Autor, de resto, também dá conta no seu articulado (cfr. artigo 22.º da contestação).
     11. Do teor dos artigos 14.º a 26.º da contestação é possível verificar que a animosidade do 1.º Réu para com a Recorrente é bem anterior à data da celebração da escritura de compra e venda e do precedente contrato promessa, remontando pelo menos a meados de 2012.
     12. E as declarações da testemunha F, que o Tribunal deu por provado ter decidido em conjunto com o 1.º Réu adquirir em 2005 a fracção (resposta ao quesito 1.º) e pago parte do preço (resposta ao quesito 3.º), não deixam qualquer dúvida de que a fracção estaria destinada ao uso da família, e após saber-se da gravidez da ora Recorrente, a esta em particular.
     13. Foi para evitar que a Recorrente fosse viver para a fracção em causa que o 1.° Réu se conluiou com a 2.ª Ré para celebrar o negócio aparente.
     14. Provada que fica a intenção do 1.° Réu em prejudicar a Recorrente, salvaguardada fica a legitimidade substantiva desta.
     15. Vão assim impugnadas as respostas aos quesitos 6.° e 7.°, devendo V. Exas. alterar o teor das mesmas no sentido de considerar provada a intenção dos Réus em prejudicar a ora Recorrente (quesito 6.°) e dar como provado que os Réus intentaram apenas passar a titularidade formal de metade do imóvel para o nome da 2.ª Ré (quesito 7.°), estando verificada a nulidade do negócio por simulação.
* * *
B , 1º Réu referenciado nos autos, veio, nos termos e para os efetios do artigos 613º, n.º 2, in fine, do CPC, apresentar as contra-alegações (fls. 272 a 274), tendo formulado as seguintes conclusões:
     1. Os Réus foram absolvidos dos pedidos formulados pela Autora, esta não logrou demonstrar todos os elementos integradores da simulação;
     2. A Recorrente limitou-se tão-somente alegar que o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação das provas documentais junto aos autos,
     3. O entendimento da Recorrente não pode proceder, porquanto o Tribunal a quo fez a conveniente e devida apreciação da matéria de facto, assim como, na douta decisão proferida, fez o adequado e justo enquadramento jurídico-civil, aplicando ao caso sub judice os preceitos legais que se impunham.
* * *
Foram colhidos os vistos legais.
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    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

    III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:

Livremente Da Matéria de Facto Assente:
1. A Autora é filha do 1º Réu, e de E (alínea A) dos factos assentes).
2. O 1º Réu casou com E em 27 de Janeiro de 1987, sem convenção antenupcial, tendo ambos, porteriormente, celebrado em 30 de Maio de 2001 convenção pós-nupcial, através da qual alteraram o regime de bens do casamento para o regime da separação (alínea B) dos factos assentes).
3. O 1º Réu tinha registada a seu favor a aquisição da fracção autónoma designada por “C7”, para habitação, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., sito em Macau, na … (alínea C) dos factos assentes).
4. Esta registada na CRP afavor da 2ª Ré, pela inscrição n.º …, a aquisição de metade indivisa da fracção autónoma referida em C) (alínea D) dos factos assentes).

Da Base Instrutória:
5. Em Agosto de 2005, E e o primeiro réu decidiram adquirir a fracção autónoma referida em C) (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
6. O 1º Réu outorgou a escritura de compra e venda de tal fracção, na qualidade de comprador (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
7. Parte do preço da aquisição da fracção foi paga pela E (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
8. Por escritura de 19 de Agosto de 2013, exarada a fls. … do livro… do Cartório Notarial das Ilhas, o 1º Réu declarou vender à 2ª Ré uma quota de 1/2 da referida fracção “C7” (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
9. O primeiro réu e a segunda ré não pretenderam realizar o negócio de compra e venda relativo a metade da referida fracção “C7” que declararam celebrar entre eles (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
10. Nunca foi intenção do 1º Réu vender, nem da 2ª Ré compra, a fracção autónoma referida em C) dos factos assentes (resposta ao quesito 6º da base instrutória).

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    IV - FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, importa ver o que o tribunal a quo decidiu:
“Da acção Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pede a Autora que fosse declarado nulo o contrato de compra e venda celebrado entre o 1º Réu, como vendedor, e a 2ª Ré, como compradora, em 19 de Agosto de 2013, através do qual o 1º Réu declarou vender à 2ª Ré uma quota de 1/2 da fracção autónoma a que se referem os presentes autos e que o registo feito com base na compra e venda fosse cancelado.
Para o efeito, alega que é filha do Réu; que o Réu lhe prometeu que a fracção autónoma passaria a ser casa de morada de família da Autora quando esta decidisse constituir família; que, entretanto, o Réu celebrou uma escritura de compra e venda com a Ré declarando vender a esta metade indivisa do imóvel e esta comprar-lhe o bem; que os contraentes não quiseram realizar a compra e venda tendo outorgado a escritura pública apenas com o intuito de prejudicar a legítima da Autora.
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Flui da exposição acima feita que a sua pretensão se funda na simulação da compra e venda feita entre os Réus bem como na relação paterno filial existente entre a mesma e o Réu.
Nos termos do artigo 232º do CC “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.”
Segundo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pg 471 a 472 “O conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no nº 1, do artigo 240º (o correspondente ao artigo 232 do CC de Macau). Em correspondência com a orientação da doutrina tradicional, os elementos integradores do conceito, referidos naquela disposição, são: a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) Acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório), o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; c) Intuito de enganar terceiros. ”
Segundo Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, revista e actualizada, Universidade Católica Editora, pg 281, “A análise desta noção (noção da simulação) revela que, para haver simulação, devem ocorrer simultaneamente os seguintes elementos: a) divergência entre a vontade real e a declarada; b) acordo ou conluio (pactum simulationis) entre as partes; c) intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).”
Para Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2015, 8ª edição, Almedina, pg 598 a 599, “São três os elementos estruturais da simulação: acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio (pactum simulationis); a divergência entre a vontade declarada e a vontade real, isto é, entre a aparência criada (negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realmente celebrado); intuito de enganar terceiros.”
A provar-se que a compra e venda impugnada corresponde apenas a uma aparência deliberadamente criada pelos Réus, sem qualquer correspondência com a vontade real dos mesmos, destinada a enganar terceiros, a mesma é simulada.
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Por outra banda, por a impugnação em questão ter sido feita pela Autora, na qualidade de filha do Réu, um dos alegados simuladores, ainda em vida deste, a procedência do pedido depende também da verificação do intuito de a prejudicar por parte deste simulador por forma a garantir legitimidade substantiva à Autora para questionar a validade do negócio jurídico.
É o que dispõe o artigo 234º, nº 2, do CC nos termos do qual “A nulidade pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.”
Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pg 609, deu conta da razão de ser de idêntica norma vigente no ordenamento português. Segundo o mesmo “Era porém problemático o estatuto dos herdeiros dos simuladores em matéria de legitimidade para arguir a simulação. Enquanto sucessores, os herdeiros dos simuladores são investidos na sua posição jurídica. Assim sendo, a simples lógica jurídica exigia que sofressem da mesma restrição de legitimidade que os simuladores a quem sucediam. Aos sucessores dos simuladores deveria estar também vedada a invocação da simulação (destaque nosso). Todavia, um regime como este acarretaria injustiças insuportáveis quando a simulação tivesse sido feita para prejudicar na sucessão esses mesmos herdeiros. A justiça impunha que fosse permitida a arguição da simulação pelos herdeiros legitimários «que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar», e o nº 2 do artigo 242º do Código Civil veio a consagrar essa solução.”
Ao debruçar-se sobre a mesma provisão legal, Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 2ª edição, Lex, Lisboa, 1996, pg 247, acrescenta o seguinte: “A adequada interpretação do preceito – o entendimento da sua ratio – leva-nos a afirmar que os herdeiros legitimários podem invocar a nulidade desde que o negócio simulado os prejudique, ainda que não se demonstre aquela intenção. Só assim o n.º 2 do artº 242º ganha o alcance prático, visado pelo legislador, de pôr os herdeiros legitimários a coberto de actos falsamente praticados pelo autor da sucessão em prejuízo de sua legítima, pois nem sempre se torna fácil a prova dessa intenção do autor da sucessão.” (destaque nosso)
Assim, é de aquilatar também se o Réu, ao celebrar a compra e venda, tinha intenção de prejudicar a Autora ou a compra e venda a prejudicará.
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Simulação
Posto isto, é de se debruçar sobre a verificação ou não dos requisitos acima elencados, começando com os pressupostos gerais da simulação: (1) divergência entre a vontade real e a declarada, (2) acordo ou conluio entre as partes e (3) intuito de enganar terceiros
Não se vislumbra qualquer dúvida de que o que foi declarado na escritura pública não correspondia ao que era pretendido pelos Réus. Pois, está provado que os mesmos não pretenderam realizar o negócio de compra e venda relativo a metade da referida fracção autónoma que declararam celebrar entre eles e nunca tiveram intenção de vender ou comprar o bem em questão.
Há, pois, divergência entre a vontade real e a vontade declarada na respectiva escritura pública.
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No que diz respeito à intenção de enganar terceiros, a Autora não logrou demonstrar parte da matéria constante do quesito 6º da base instrutória: os Réus outorgaram a escritura pública de compra e venda para prejudicar a sua legítima.
Ora, afastada a intenção de prejudicar a Autora e nada mais estando provado que pudesse demonstrar a pretensão de enganar a Autora ou qualquer outro terceiro, é deveras difícil concluir que houve intuito de enganar terceiros.
De facto, não se pode olvidar que, amiúdes vezes, o disponente outorga uma escritura de compra e venda um bem para formalizar um outro tipo de negócio jurídico, mormente uma doação ou uma dação em cumprimento em vez de declarar expressamente o acto que pretende praticar, pelas mais variadas razões: evitar as formalidades e despesas, tornar mais expedito o negócio jurídico, impedir o exercício de eventuais direitos de preferência, etc.
Trata-se de uma prática corrente, muitas vezes fraudulenta, de que o tribunal não pode ignorar.
Ora, se nalguns desses casos se consegue facilmente identificar tal intuito e até o terceiro visado, noutros o mesmo já não acontece. No caso de se pretender apenas evitar o trabalho da formalização ou tornar mais expedita a transacção, julga-se que é inadequado considerar, sem mais, que as partes queriam enganar terceiros. É que, haver intenção de iludir alguém não é a mesma coisa de haver alguém iludido o qual, na situação dos autos, podiam ter sido as autoridades fiscais.
No caso dos presentes autos, o que se depara é o seguinte: o proprietário de um imóvel (o Réu) declara falsamente vender metade indivisa deste bem a uma senhora (a Ré) com quem tem um filho, à data do negócio jurídico, com 9 meses de idade. Nada indica o que efectivamente os Réus pretendiam ao outorgar a escritura pública de compra e venda.
Tendo em conta esse contexto, pode-se equacionar se o que verdadeiramente pretendia o Réu era doar o bem à Ré ou ao seu filho por causa do nascimento deste. Trata-se de uma hipótese já aventada da fundamentação da matéria de facto de fls 232v a 234. Contudo, nada dos factos assentes apontam inequivocamente nesse sentido e à míngua de factos que demonstram claramente qual era a intenção dos Réus quando o negócio foi celebrado (se pretendia celebrar um outro negócio ou, pura e simplesmente, não pretendiam celebrar nenhum negócio, dados importantes para se aquilatar a partir do contexto do litígio se os Réus pretendiam enganar alguém) não se afigura possível concluir que houve intuito de enganar terceiros.
Pelo que, da mera divergência entre da vontade real e a vontade declarada não se pode retirar qualquer conclusão quanto à existência da intenção de enganar.
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O acordo simulatório é o elemento que, em conjugação com o intuito de enganar terceiros, demarca a simulação das outras figuras de divergência entre a vontade real e a vontade declarada (reserva mental, declarações não sérias, erro, etc).
É já doutrina assente que “A simulação é uma divergência bilateral entre a vontade e a declaração que é pactuada entre as partes com a intenção de enganar terceiros” e na simulação “… as partes fingem praticar negócios que efectivamente não querem …” . (sublinhado nosso)
Daí que a simulação pressupõe sempre um acordo entre os simuladores a fim de dar uma aparência a algo que ou não existe ou não corresponde a esta aparência e, neste segundo caso, para encobrir o verdadeiro negócio que está por detrás desta aparência.
A isso acresce que “O acordo simulatório visa a montagem da operação e dá corpo à intenção de enganar terceiros.” António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, Livraria Almedina, pg. 625. (sublinhado nosso)
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., pg 598 a 599, “Na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso, e a sua regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real.”
Da exposição acima feita, três conclusões podem ser tiradas:
1. O acordo simulatório é o elo que liga a divergência entre a vontade e a declaração e a intenção de enganar terceiros;
2. Dirigindo-se o acordo simulatório finalisticamente a produzir uma aparência para enganar terceiros, na falta de acordo não pode haver intenção de enganar terceiros;
3. Não se provando a intenção de enganar terceiros é impossível concluir pela existência de qualquer acordo simulatório.
Como nada aponta para a existência de qualquer acordo simulatório entre os Réus e como a Autora não logrou demonstrar o intuito de enganar terceiros, por via da intenção do Réu de a prejudicar, não se pode afirmar que houve acordo simulatório.
Pelo que, não sendo a compra e venda um negócio simulado nos termos previstos no artigo 233º do CC, apesar de não corresponder à vontade dos Réus, o negócio jurídico impugnado não pode ser considerado nulo.
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Legitimidade substantiva da Autora
Mesmo que assim não se entende, a pretensão da Autora também não pode proceder porque não está demonstrado o requisito para que a mesma possa, ainda em vida do Réu, arguir a simulação.
Flui do acima exposto que isso pressupõe que a intenção do Réu de prejudicar a Autora ou a compra e venda a prejudicará.
No que à intenção de prejudicar se refere, como foi já referido, a respectiva matéria consta do quesito 6º da base instrutória não tendo, contudo, a Autora logrado demonstrar que o Réu pretendia prejudica-la com as declarações de venda feitas com a outorga da escritura pública de compra e venda. (destaque nosso)
Quanto à possibilidade de a Autora vir a ser prejudicada pelo negócio impugnado, nada nos autos o demonstra.
É que, não obstante o negócio impugnado representar a saída de um bem da esfera jurídica do Réu, daí não se retira que a Autora ficará necessariamente prejudicada. Mesmo admitindo que o Réu nunca recebeu qualquer quantia, o prejuízo só existe se se provar que a saída do imóvel afectou o património do Réu a tal ponto de a legítima da Autora ficará certamente reduzida. Isto é, há que estar comprovado que o valor perdido com a saída do bem fará com que a legítima da Autora passe a ter um valor inferior. Ora, isso pressupõe demonstrado o valor do património do Réu à data da alienação bem como as perspectivas de ganho e acumulação de riqueza do Réu e bem assim o número de herdeiros legitimários para se poder, de certa forma, fazer uma prognose credível. Como nada consta dos factos assentes disso, nada resta senão afastar essa eventualidade.
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Flui do acima expendido que a Autora não logrou demonstrar todos os elementos integradores da simulação nem o requisito legal que lhe permita invocar o alegado vício, ainda em vida do Réu.
Uma vez que a procedência do pedidos passa pela verificação de todos esses requisitos, a pretensão da Autora não pode deixar de improceder.”
Ora, como é do entendimento uniforme que a simulação negocial constitui uma divergência intencional entre o sentido da declaração das partes e os efeitos que elas visam prosseguir com a celebração do negócio jurídico.
Tal como se decidiu:
“I – Por via de regra, pelo menos, identifica-se o intuito de enganar terceiros com a intenção de criar uma aparência.
II – É no fingimento, na intenção de criar a aparência de uma realidade “fazendo crer que”, como é próprio da simulação, que há o desígnio de provocar uma ilusão normalmente destinada a enganar terceiros” ( Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.5.1995, CJSTJ, 1995, II, 118).”
A divergência entre a vontade real e a manifestada pode ser intencional ou não intencional. A simulação é sempre uma divergência intencional.
O artigo 232°/1 do CC estabelece os seus requisitos:
- A existência de um pacto simulatório entre o declarante e o declaratário;
- A divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado; e
- O intuito de enganar terceiros.
Segundo Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora – Maio 2005 – 413:
“A vontade negocial, vontade do conteúdo da declaração ou intenção do resultado (Geschäftswille) — consiste na vontade de celebrar um negócio jurídico de conteúdo coincidente com o significado exterior da declaração.
É uma vontade efectiva correspondente ao negócio concreto que apareceu exteriormente declarado”.
“A simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar” – Henrich Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português” – 1992, pág.536.
Sendo a simulação um fingimento que visa criar a aparência de um negócio que não foi querido pelas partes (simulação absoluta), ou que foi celebrado para esconder um outro, esse sim querido pelas partes (negócio dissimulado), a prova do requisito “intuito de enganar terceiros” pode ser feita de forma diríamos expressa – quando, por exemplo, existe um quesito a indagar sobre a intenção que é matéria de facto – ou de forma menos ostensiva, quando as instâncias recorrem a presunções.
Dito isto, entendemos que as considerações da sentença recorrida e que acima transcrevemos, exclui os requisitos da simulação do negócio celebrado em 19/08/2013– escritura de fls. 29, documento nº5.
O caso dos autos é um caso particularizado, pois a impugnante do negócio é a filha do vendedor (sendo este último qualificado como simulador), sobre esta situação especial o artigo 234º/2 do CC dispõe:
“1. (…)
     2. A nulidade pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendem agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.”
Ora, quando é que pode afirmar-se que a Recorrente/Autora tem direito sobre o património do 1º Réu, enquanto pai da Recorrente? Só quando haverá lugar à abertura da sucessão, o que ainda não aconteceu, e, em conjugação com os factos assentes, não ficou provado que tal negócio visou prejudicar o interesse da Recorrente/Autora.
O Tribunal a quo tentou apurar os factos necessários à aplicação do artigo 234º/2 do CC acima citado, razão pela qual foi formulado o quesito 6º, mas este acabou por ficar não provado. Por outro lado, em sede do recurso, a Recorrente/Autora também não chegou a impugnar a matéria de facto nos termos do disposto no artigo 599º do CPC, consequentemente não temos matéria fáctica para alterar a decisão da primeira instância, não obstante entendermos que tal decisão merece algum reparo em termos de justiça material.
Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.
Tudo visto, resta decidir
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    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão da primeira instância.
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Custas pela Recorrente (Autora).
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Registe e Notifique.
                 RAEM, 15 de Março de 2018.
                 Fong Man Chong
                 Ho Wai Neng
                 José Cândido de Pinho
2017-1092-venda-simulada-filha-pai 21