Processo nº 151/2018 Data: 04.04.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. O vício de “erro notório na apreciação da prova” existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
De facto, é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 151/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, (1ª) arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como co-autora material da prática de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos; (cfr., fls. 265 a 271-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, veio a arguida recorrer, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição; (cfr., fls. 282 a 289).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 293 a 295).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.283 a 289 dos autos, a recorrente solicitou a absolvição da acusação, assacando ao douto Acórdão in questio o erro notório na apreciação de prova previsto na alínea c) do n.°2 do art.400° do CPP, com argumento de não existir prova para apoiar a condenação.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.293 a295 dos autos), no sentido do não provimento do presente recurso.
No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é consolidada no actual ordenamento jurídico de Macau a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, arestos do Venerando TUI nos Processos n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
De outro lado, não se pode olvidar que a recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador (Ac. do TUI no Proc. n.°13/2001). Pois, «sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada a recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.» (Acórdão no Processo n.°470/2010)
No aresto recorrido, o douto Tribunal a quo fundamentou prudentemente que «本院認為,根據第一嫌犯聲明,第二嫌犯及第三嫌犯的訊問筆錄、涉案證人及證人的證言筆錄、各證人的證言,以及在庭審聽證中所審查的扣押品、錄影資料、書證,以及其他證據後形成心證。雖然第一嫌犯否認有參與有關事實,且第二嫌犯表示第一嫌犯並無牽涉是次事件當中,但第二嫌犯無法解釋為何於案發期間其多次與第一嫌犯聯絡的原因。然而,涉案證人清楚解釋了透過涉嫌女子A的介紹下借錢賭博,在涉嫌女子A和第二嫌犯的在場下,和第三嫌犯講出借貸條件及將賭碼交給其賭博,將其中國護照交給第三嫌犯作抵押,並由第三嫌犯抽取利息,第二嫌犯及涉嫌女子A在場監視。另外,根據第三嫌犯的陳述,其表示目睹肥婆帶同第二嫌犯及X到賭場,著第三嫌犯幫忙兌碼,在到達有關貴賓會後,目睹肥婆從貴賓會帳房取出港幣15萬賭廳籌碼交給涉案證人賭百家樂。第一嫌犯確認其是涉嫌女子、肥姐及第62頁的相片是其本人,可見第一嫌犯便是涉嫌女子A或“肥婆”。而錄影資料所錄得之情況與涉案證人所述之相關情況基本吻合。因此,本院認為足以認定第一嫌犯有份參與高利貸行為。»
Por outra banda, o raciocínio argumentativo da recorrente mostra inequivocamente que a invocação do erro notório na apreciação de prova prende apenas com a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo avaliou e ponderou a prova produzida e, deste modo, tentou a pôr em causa a livre convicção do julgador.
Tudo isto leva-nos a entender tranquilamente que o Acórdão em escrutínio não enferma do assacado erro notório na apreciação de prova, e por isso, o presente recurso tem de ser insubsistente.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 307 a 308).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 266-v a 267-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem a arguida recorrer do referido Acórdão que a condenou pela prática como co-autora material de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos.
Considera que o dito Acórdão padece de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição.
Vejamos.
Sobre o vício de “erro notório” tem este T.S.I. consignado que:
“O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017, de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017 e de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias, (in “Lições de Direito Processual Penal”, pág. 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal que é livre, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 15.06.2017, Proc. n.° 249/2017, de 21.09.2017, Proc. n.° 837/2017 e de 07.12.2017, Proc. n.° 877/2017).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no recente Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
E, sendo de se manter o que se expôs sobre o “vício” pela recorrente imputado à decisão recorrida, patente é que o mesmo não existe, pois que o Tribunal a quo apreciou a prova em conformidade com o “princípio da livre apreciação” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., decidindo com clareza, lógica e de a acordo com a normalidade das coisas, não se vislumbrando onde, como, ou em que termos tenha violado, (muito menos, “grosseiramente”), qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regra de experiência ou legis artis.
Com efeito, e como – bem – se nota no douto Parecer do Ministério Público, o Colectivo a quo demonstrou cabalmente os motivos da sua convicção, nenhuma censura merecendo a sua decisão, sendo de salientar que, para aquela, contribuíram, nomeadamente, os “registos dos contactos” entre a ora recorrente e a 2ª arguida dos autos sobre o empréstimo concedido ao ofendido, o “momento” dos mesmos, e as “fotos” juntas que colocam a ora recorrente no “local dos factos” e no preciso “momento” em que se desenrolaram.
E, perante isto, e as regras de experiência e da normalidade das coisas, motivos não existem para se considerar que incorreu o Tribunal a quo no imputado “erro”.
Aqui chegados, nenhum outro motivo havendo para censurar o decidido, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará a arguida a taxa de justiça de 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 04 de Abril de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 151/2018 Pág. 16
Proc. 151/2018 Pág. 17