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Processo nº 118/2016
Data do Acórdão: 19ABR2018


Assuntos:

Nulidade do acto administrativo
Anulabilidade do acto administrativo
Revogação da autorização de permanência
Interdição de entrada
Direitos fundamentais
Falta de fundamentação de facto
Fortes indícios da prática de um crime
Factos materiais e concretos


SUMÁRIO

1. O direito de um não residente de permanecer e o de entrar na RAEM, não têm a dignidade de serem qualificados como direitos fundamentais dos não residentes, dado que não são reconhecidos ope legis a todos independentemente do seu estatuto de residente, nem advenientes da própria natureza humana e portanto universal.

2. O dever de fundamentar não se mostra cumprido com a simples existência dos factos relatados, descritos ou até afirmados em actos integrantes do procedimento que culmina na prolação da decisão.

3. É preciso sim que a base fáctica relevante à decisão seja dada por assente pelo decisor e feita integrar no teor do acto administrativo em si, ou pelo menos mediante a remissão expressa para os factos, devidamente identificados, constantes de anteriores pareceres, informações ou propostas nos termos autorizados pelo artº 115º/1 do CPA, que acolheu para servir da base fática de decisão.

4. Dado que, de outro modo, o particular, quando notificado do acto administrativo, ficaria sem saber as razões factuais que sustentam a decisão de direito e impossibilitado de optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, nem o Tribunal estaria em condições, quando chamado a exercer o efectivo controle da legalidade do acto, de aferir o acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.

5. Se se não fundar nos factos materiais e concretos, mas sim apenas no mero juízo conclusivo sem apoio em quaisquer factos materiais e concretos, o acto administrativo padece da falta absoluta de fundamentação, geradora da anulabilidade.

6. Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 118/2016

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer da decisão do Secretário para a Segurança que, em sede de recurso hierárquico necessário, manteve a decisão do Chefe substituto do Departamento de Migração da PSP que lhe revogou a autorização de permanência e a decisão do Comandante da PSP que lhe determinou a interdição da entrada na RAEM por cinco anos, concluindo e pedindo:
1.ª O presente recurso contencioso é apresentado contra o despacho de 19 de Novembro de 2015 da entidade recorrida, que indeferiu conjuntamente os recursos hierárquicos apresentados contra as medidas de revogação de autorização de permanência e de interdição de entrada decretadas ao recorrente.
2.ª Tal despacho foi notificado por carta registada n.º RR170546705MO. recebida no escritório do seu mandatário a 4 de Dezembro de 2015.
3.ª A interposição do presente recurso contencioso é tempestiva, nos termos do art. 25.°, n.º 1 e n.º 2, al. b) e do art. 26.°, n.º 2, al. a) do CPAC, visto que o residente reside no exterior de Macau.
4.ª A entidade recorrida é competente, nos termos dos arts. 11.º, n.º 1 e 12.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 6/2004, em conjugação com a Ordem Executiva n.º 111/2014 e o art. 4.° da Lei n.º 6/1999.
5.ª O recorrente tem legitimidade para interpor recurso contencioso, nos termos do art. 33.°, al. a) do CPAC, sendo a pessoa directamente afectada pelos actos recorridos.
6.ª O Tribunal de Segunda Instância é competente para conhecer do presente recurso contencioso, nos termos do art.º 36.°, n.º 8.2) da Lei n.º 9/1999.
7.ª O despacho recorrido contém em si dois actos administrativos, quais sejam o da confirmação da revogação de autorização de residência e o da confirmação da fixação de um período de interdição de entrada.
8.ª O despacho recorrido não tem natureza meramente confirmativa para os efeitos processuais, nos termos do art. 31.°, n.º 2 do CPAC.
9.ª A cumulação de impugnações dos actos administrativos é admissível, nos termos do art. 44.°, n.º 1 do CPAC.
10.ª Ambos os actos derivam do mesmo facto determinante, a alegada prática de crimes, que os relaciona geneticamente.
11.ª Não teria sido o segundo acto de interdição possível sem a efectivação do primeiro, pelo que existe uma relação de dependência entre ambos.
12.ª Ambos os actos fazem parte de uma única reacção ao facto de ter sido instaurado contra o requerente um processo-crime.
13.ª A decisão conjunta sobre os mesmos actos é reveladora da conexão entre ambos.
14.ª A revogação da autorização de permanência do recorrente carece de legalidade, padecendo do vício previsto no art. 21.º, n.º 1, al. d) do CPAC.
15.ª A entidade recorrida sancionou o acto que revogara a autorização de residência com base no art.º 11.°, n.º 1.3) da Lei n.º 6/2004 .
16.a O legislador não conferiu poderes à administração para expulsar um não-residente do território da RAEM (e.g. turistas, trabalhadores não-residentes ou estudantes) com bases em meras suspeitas da prática de um crime.
17.a A medida de revogação da autorização de permanência é ilegal; desde o primeiro momento não restam dúvidas que apenas existem suspeitas da prática de crime.
18.ª Faltou a comprovação necessária das suspeitas, designadamente uma condenação em processo penal transitada em julgado.
19.ª O acto que revogou a autorização de permanência padece pois do vício de erro sobre os pressupostos de facto, o que gera a sua anulabilidade.
20.ª Nos moldes em que foi justificada e executada, o acto praticado pela entidade recorrida aponta para uma violação do princípio da legalidade e denuncia a falta de um pressuposto abstracto para a sua actuação, o que gera uma forma de invalidade mais grave - a nulidade.
21.ª Por ofender ainda o conteúdo essencial de um direito fundamental dos não residentes, tal acto é também nulo por via do art. 122.°, n.º 2, al. d) do CPA. 22.ª O direito a permanecer livremente na RAEM dentro das situações permitidas por lei é um dos direitos fundamentais gozados pelos não-residentes. 23.ª O direito à sua permanência em Macau apenas pode ser restringido nas situações excepcionais previstas no art. 11.° da Lei n.º 6/2004, não havendo qualquer outro preceito no direito administrativo, civil ou criminal que permita a sua restrição.
24.ª A medida de interdição de entrada padece de um erro sobre os pressupostos de facto, pois pressupõe a existência de uma recusa de entrada que nunca existiu.
25.ª Carece a medida de interdição, pois, de um pressuposto de facto, pois nunca foi recusada a entrada do recorrente nos termos do art. 4.°, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003, pelo que nunca se poderia aplicar a concomitante interdição de entrada prevista na Lei n.º 6/2004.
26.ª Nunca foi recusada a entrada na RAEM ao recorrente, pois ele já se encontrava no território, resultando manifestamente dos autos que tal medida foi antes aplicada na sequência da sua revogação de entrada.
27.ª Padece pois de um vício de violação de lei, na modalidade de erro nos pressupostos de facto da sua aplicação, a aplicação da medida de interdição, o que gera a sua anulabilidade.
28.ª Entendendo-se que a alusão feita foi à norma ínsita no art. 12.°, n.º 2, al. 2 da Lei n.º 6/2004, sempre deve a ilegalidade da revogação de residência se alastrar à medida de interdição.
29.ª A entidade recorrida não identifica a existência de qualquer perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM, pelo que desrespeita o preceituado no art. 12.º, n.º 3 da Lei n.º 6/2004.
30.ª A lei diz claramente que a medida de interdição nos moldes preceituados deve ter por fundamento a existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM, o que obriga a que, no mínimo, se o identifique.
31.ª A entidade recorrida, no despacho de que se recorre parece confundir um e outro conceito como se do mesmo se tratasse, tornando a letra da lei redundante.
32.ª O acto que decretou a interdição de entrada na RAEM ofende, nestes moldes, o princípio da legalidade da actividade administrativa.
33.ª O acto que decretou a interdição de entrada na RAEM carece de fundamentação, o que origina um vício de forma sindicável por este Venerando Tribunal nos termos do art. 2l.º, n.º 1, al. c) do CPAC.
34.ª Uma interpretação sistemática do preceito normativo obriga a ter em conta a densificação do conceito legal de perigo para a segurança ou ordem pública ínsita no art. 11.°, n.° 1.3) da Lei n.° 6/2004, onde se identifica "a prática de crimes, ou sua preparação, na RAEM" e não a mera suspeita da prática de crimes.
35.ª Efectivamente existe também neste campo um erro sobre os pressupostos de facto, pois inexiste de todo o perigo efectivo que a lei prevê.
36.ª Esta falha determina uma violação de lei, sindicável nos termos do art. 21.°, n.º 1, al. d) do CPAC.
37.ª Não se verificou o pressuposto da existência de fortes indícios da prática ou da preparação para a prática de crimes na RAEM, que poderia ter eventualmente justificado a aplicação de uma eventual medida de recusa de entrada (que nunca se aplicou).
38.ª O recorrente compromete-se a oferecer uma pronúncia mais fundamentada acerca da prova constante do processo instrutor quando a ele tiver integral acesso.
39.a O recorrente nunca praticou qualquer crime de abuso de confiança, muito menos o terá confessado.
40.ª O recorrente nunca se apropriou de qualquer quantia pecuniária que não lhe pertencesse.
41.ª O recorrente tampouco auxiliou qualquer terceiro a defraudar a expectativa ou património de qualquer ofendido no processo-crime correspondente.
42.ª O recorrente quanto muito prestou-se a auxiliar as vítimas a reaverem o que alegavam ter-lhes sido defraudado.
43.ª De resto, a existência de fortes indícios é contrariada pelo facto de até ao momento não ter sido deduzida qualquer acusação contra o mesmo.
44.ª Resulta claramente dos autos que a entidade recorrida pretendeu circundar a proibição que lhe era imposta por lei de afastar o recorrente da RAEM e que se ateve a esta estratégia para tentar justificar e efectivar no tempo o afastamento ilegal do território.
45.ª Sendo-lhe vedada a colocação do recorrente fora do RAEM, por carecer de pressuposto legal (ou pressuposto fáctico), mais ainda devia estar vedado à entidade recorrida posteriormente proibi-lo de entrar.
46.ª Sendo a medida de interdição uma consequência de uma medida ilegal anteriormente aplicada, nunca deveria ser sancionada pela ordem jurídica, sob pena de incentivarmos a administração a perpetuar no tempo a sua prática ilegal.
47.ª Esta medida consubstancia uma violação frontal dos interesses legalmente protegidos dos residentes, consagrado no art. 4.° do CPA, na medida em que se deve considerar estendível também aos interesses fundamentais dos não residentes.
48.a O Tribunal não deverá sancionar esta prática da administração, que resulta, em última análise, numa ofensa a um direito fundamental, qual seja o de um não-residente não poder ser obrigado a sair de Macau fora das situações excepcionalmente consagradas no art. 11.° da Lei n.º 6/2004 .
49.ª Este Venerando Tribunal não deverá sancionar o que é rigorosamente uma fraude à lei por parte da administração.
50.ª Deve ser, pois, decretada a nulidade deste conjunto dos actos administrativos, nos termos do art. 122.°, n.º 2, al. d) do CPA, na medida em que é ofendido o conteúdo essencial de um direito fundamental.
  TERMOS EM QUE, contando com a sapiência e suprimento de Vossas Excelências, devem os actos administrativos identificados ser revogados, devido às invalidades devidamente identificadas, devendo ser decretada a sua nulidade e/ou anulados os actos administrativos de revogação de autorização de permanência e de decretamento de um período de interdição de entrada.

Citado, veio o Secretário para a Segurança contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 39 a 48 dos presentes autos.

Não havendo lugar à produção de provas, foram o recorrente e a entidade recorrida notificados para apresentar alegações facultativas.

Apenas o recorrente apresentou as alegações facultativas, reiterando grosso modo as razões de facto e de direito já invocadas na petição de recurso.

Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso - vide as fls. 78 a 80 dos presentes autos.

Colhidos os vistos, cumpre conhecer.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio e inexistem nulidades e questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.

Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

De acordo com os elementos existentes nos autos, é tida por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:

* O recorrente A é residente do China interior;

* Na sequência de uma queixa-crime contra o recorrente apresentada por um residente da China interior, foi aberto o inquérito no âmbito do qual o recorrente foi detido e constituído como arguido;

* No âmbito do inquérito e após o interrogatório judicial, a Exmª Juiz da Instrução Criminal determinou, com base no juízo da existência dos fortes indícios da prática pelo ora recorrente dos factos susceptíveis de integrar o tipo do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artº 199º do CP, que o mesmo ficasse sujeito ao termo de identidade e residência, à prestação de caução carcerária no valor MOP$100.000,00 e à medida de proibição de entrada nos casinos;

* Após o que, o recorrente foi entregue à PSP onde, por despacho datado de 20MAIO2015 do Chefe substituto do Departamento de Migração, foi-lhe revogada a autorização de permanência e foi aberto o procedimento com vista à aplicação da medida de interdição de entrada na RAEM;

* Na mesma data o recorrente foi notificado do despacho que lhe revogou a autorização de permanência e ordenou o abandono imediato da RAEM, através da notificação, ora constante das fls. 13 dos p. autos e das fls. 11 do 2º vol. dos autos de procedimento administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

* No procedimento aberto para o efeito, cumprido o contraditório, foi determinada a interdição do recorrente de entrada na RAEM por cinco anos por despacho datado de 21JUL2015 do Comandante da PSP, lançado sobre a informação ora constante das fls. 20 do 1º vol. dos autos de procedimento administrativo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

* Inconformado com ambos os despachos, o recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Segurança;

* Em sede do recurso hierárquico necessário, foram julgados improcedentes os recursos hierárquicos necessários e mantidas a revogação da autorização de permanência e a interdição de entrada, por despacho datado de 19NOV2015 do Secretário para a Segurança, lançado sobre o parecer que tem o seguinte teor:
PARECER
  
  Assunto : Recurso hierárquico necessário
       Revogação da autorização de permanência
Interdição de entrada
  Recorrente: A
  
  Considerando o teor do despacho do Cmdt. Do CPSP de 21/07/2015, e da petição de recurso hierárquico, que aqui se dão por reproduzidos;
  Questão prévia,
  ……
  Questão de mérito
  O recorrente não apresenta razões de molde a fazer ponderar a revogação da decisão impugnada, pois, contrariamente ao que alega:
  As medidas aplicadas não possuem qualquer carácter sancionatório se bem que, mas tão somente, se revistam de uma natureza ablatória;
  O princípio penal da presunção de inocência não tem aplicabilidade no processo administrativo que é de natureza preventiva-securitária (não punitiva) cuja decisão, nos moldes em que vem proferida no presente processo, é expressa e claramente abrigada nas disposições conjugadas dos art.os 12.º, da Lei n.º 6/2004, e 4.º, n.º 2, 3), da Lei n.º 4/2003 (Existirem fortes indícios de terem praticado... quaisquer crimes), conquanto a interdição se sustente, como sucede in casu, na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM, sendo que a tal não se opõem quaisquer normas ou princípios de direito interno ou internacional a que a RAEM se encontre vinculada;
  São visíveis, e fortes, nos autos, os indícios da prática, pelo recorrente, do crime (abuso de confiança) que lhe vem imputado;
  Indícios esses consubstanciados nas imagens de vídeo (cópias fotográficas juntas ao p.i.), que mostram claramente a apropriação ilegítima do dinheiro que ao recorrente fora confiado, conjugadamente com a atitude do mesmo (de fuga, ou pelo menos de injustificada falta, ao cumprimento dos seus deveres/obrigações);
  Pelo que os actos impugnados, tendo em vista a sua natureza preventiva-securitária, se mostram legítimos, adequados e proporcionais (em qualquer das vertentes deste princípio), e por isso não feridos de qualquer vício susceptível de abalar a sua legalidade.
  Razões pelas quais, sufragando V. Ex.a, Senhor Secretário para a Segurança, este nosso parecer, sugerimos que ao abrigo do art.º 161.º, n.º 1, do Código do procedimento Administrativo, se determine por confirmar o acto impugnado, negando provimento ao presente recurso.

* Notificado do despacho por carta registada expedida em 12DEZ2015 e inconformado com o mesmo, o recorrente interpôs o presente recurso contencioso mediante o requerimento que deu entrada na Secretaria do TSI em 04FEV2016.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Tendo em conta o teor das conclusões do recurso e das alegações facultativas, são as seguintes questões a decidir.

Relativamente à revogação da autorização de permanência na RAEM:

1. Do erro nos pressupostos de facto; e

2. Da nulidade do acto por violação de um direito fundamental.

E quanto à interdição da entrada na RAEM:

1. Da falta de pressupostos de facto;

2. Da falta de fundamentação; e

3. Da nulidade por ofensa a um direito fundamental.

Subsidiariamente aos pedidos de anulação do acto recorrido, o recorrente pede a declaração da nulidade da revogação da autorização de permanência e da interdição de entrada na RAEM.

Para sustentar o pedido da declaração da nulidade da revogação da autorização de permanência, o recorrente defende que o direito a permanecer livremente na RAEM dentro das situações permitidas por lei é um dos direitos fundamentais gozados pelos não-residentes e apenas pode ser restringido nas situações excepcionais previstas no artº 11º da Lei nº 6/2004, não existindo qualquer outro preceito no direito administrativo, civil ou criminal que permita a sua limitação.

Em relação à interdição de entrada, o recorrente defende que não podendo um não-residente ser obrigado a sair de Macau fora das situações excepcionalmente consagradas no artº 11º da Lei nº 6/2004, a medida consubstancia uma violação frontal dos interesses legalmente protegidos dos residentes.

Nos termos do artº 122º/1-d) do CPA, são nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.

In casu, estão em causa os invocados direitos de um não residente permanecer na RAEM e de entrar na RAEM.

Ora, se é certo que a nossa Lei Básica da RAEM determina que a RAEM assegura, nos termos da lei, a protecção dos direitos e liberdades aos residentes e aos não residentes na RAEM – artº 4º da Lei Básica da RAEM, não é menos verdade que há de distinguir bem os direitos advenientes do estatuto de residente, que são apenas reconhecidos por lei aos residentes, daqueles outros direitos que são reconhecidos a todos, independentemente do seu estatuto de ser ou não residente.

Na esteira desse entendimento, um direito fundamental pode ser reconhecido a um individuo em razão do seu estatuto de residente.

É o que sucede com o direito conferido aos residentes permanentes, de residir, permanecer, sair e reentrar livremente na RAEM.

Além desses direitos reconhecidos em virtude do estatuto de residente, há direitos fundamentais que são reconhecidos a todos independentemente do seu estatuto de residente, mas sim advenientes da própria natureza humana, portanto universais e invioláveis, relativa (restringíveis ou sacrificáveis só nas situações excepcionais expressamente previstas e autorizadas pela lei para a salvaguarda de outros bens jurídicos mais importantes) ou absolutamente (em caso algum restringíveis ou sacrificáveis).

É o que sucede com todos os direitos reconhecidos aos indivíduos enquanto seres humanos, tais como o direito à vida, o direito à integridade física e mental, o direito a não ser submetido a tortura ou a tratos desumanos.

In casu, estão em causa direitos de um não residente permanecer e entrar na RAEM.

Tratam-se de direitos que são por lei concedidos aos não residentes, não por mero efeito ope legis, mas sim através de uma decisão casuística, verificados que sejam determinados requisitos legalmente exigidos para o efeito.

Estes direitos são reconhecidos aos não residentes não por estes serem seres humanos, nem advém de um estatuto de residente que não têm – vide nomeadamente os artºs 3º, 4º, 7º, 8º, 9º e 10º da Lei nº 4/2003, assim como os artºs 2º, 4º, 11º e 12º da Lei nº 6/2004.

Não sendo reconhecidos ope legis a todos independentemente do seu estatuto de residente, nem advenientes da própria natureza humana, os direitos de permanecer e entrar na RAEM, ora invocado pelo recorrente, enquanto não residente, carecem da dignidade de serem qualificados como direitos fundamentais.

Não estando em causa direitos fundamentais, cessa logo a necessidade de averiguar se as medidas decretadas, a serem ilegais, ofendem ou não o conteúdo essencial de um direito fundamental do recorrente.

Improcede assim o recurso na parte em que assaca a nulidade ao acto ora recorrido.

Passemos então a apreciar os pedidos de anulação.

Tal como vimos, o recorrente suscitou várias questões em relação a ambas as medidas decretadas, numa relação da subsidiariedade.

E para além dessas questões todas, ainda a título subsidiário, o recorrente questiona a final o juízo formulado pela Administração sobre a existência in casu dos fortes indícios da prática pelo recorrente dos factos susceptíveis de integrar o tipo do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artº 199º do Código Penal, no qual a Administração fundamentou tanto a revogação da autorização de permanência e como a interdição de entrada.

Ora, apesar de o recorrente vir impugnar, só a título subsidiário e em último lugar a existência dos tais fortes indícios, entendemos que esta questão é a mais essencial em relação a todas as restantes questões suscitadas pelo recorrente, e portanto merece o tratamento prioritário em sede deste Acórdão, uma vez que a solução a ser dada por nós à impugnação do tal juízo conclusivo, invocado pela Administração, como fundamento de facto e até de direito quer no procedimento de 1º grau quer no de 2º grau, em que foram ambas as medidas decretadas, é condicionante da necessidade de conhecer dos restantes pedidos de anulação do acto recorrido, ou pelo menos resolve alguns aspectos desses pedidos.

Então vejamos primeiro os fortes indícios.

Da matéria tida por assente resulta que, na mesma data em que foram aplicadas ao recorrente as várias medidas de coacção no âmbito do inquérito-crime, o recorrente foi entregue à PSP, onde o recorrente foi, por escrito, notificado de que por despacho do Chefe Substituto do Departamento da Migração, datado de 20MAIO2015, lhe foi revogada a autorização de permanência e ordenado o abandono imediato da RAEM.

Infelizmente não encontrámos esse despacho no processo instrutor que com a contestação a Administração se remeteu a este TSI e corre por apenso aos presentes autos de recurso contencioso, portanto não sabemos o teor desse despacho.

E só através da leitura da notificação escrita, ora constante das fls. 11 do processo instrutor, vimos a saber que são dois “factos” que constituem fundamentos do despacho:

Quais são:

1) o juízo da existência dos fortes indícios da prática pelo recorrente de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artº 199º do Código Penal, formulado de acordo com os elementos fornecidos pela Polícia Judiciária; e
2) o facto de o recorrente ter sido já constituído arguido e nessa qualidade, ter sido já conduzido ao M. P. para os efeitos do inquérito.

Bom, o simples facto de alguém ter sido constituído arguido e ter sido chamado para estar presente ou intervir em actos processuais no âmbito de um inquérito-crime não quer dizer nada, pois a aquisição da mera notícia de crime contra alguém em si já é suficiente para determinar a abertura do inquérito e conferir a este alguém o estatuto de arguido – artºs 47º/1-a) e 245º/2 do CPP.

Urge saber quê factos imputados ao recorrente existem para permitir a Administração a concluir pela existência dos fortes indícios de que o recorrente praticou um crime.

De acordo com a doutrina autorizada na matéria de medidas de coacção no âmbito do processo penal, existem fortes indícios da prática de um crime quando de acordo os factos dados por indiciariamente provados com as provas já adquiridas numa determinada fase processual, nomeadamente no momento da decisão sobre a aplicação de uma medida de coacção, se puder formular o juízo de prognose de que a condenação futura do arguido pela prática do crime é mais provável do que a absolvição.

Trata-se portanto de um juízo de prognose, que tem de se apoiar em factos materiais e concretos, embora só indiciariamente provados.

Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…… Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207, e 209.

In casu, o recorrente só ficou a saber foi com base no mero juízo da existência de fortes indícios é que lhe foi revogada a autorização de permanência e determinado o abandono imediato da RAEM.

Mas quê factos materiais e concretos foram-lhe imputados? Quê factos materiais e concretos tem nas mãos a Administração para decidir como decidiu?

Não sabe o recorrente.

Nem nós sabemos.

É verdade que, de acordo com um documento que o recorrente juntou aos presentes autos de contencioso, no âmbito do inquérito, ao aplicar ao ali arguido, ora recorrente, as várias medidas de coacção, a Exmª Colega JIC emitiu o juízo da existência de fortes indícios da prática pelo recorrente de um crime de abuso de confiança.

Todavia, sendo precário e sempre susceptível de reexames com a evolução dos próprios termos do processo penal, este juízo não pode ter a força do caso julgado ou a virtualidade de consolidar uma conclusão no ordenamento jurídico.

No caso sub judice, através do acto de notificação da revogação de autorização de permanência, sabemos que o Chefe Substituto do Departamento da Migração, autor da decisão no procedimento de 1º grau, revogou a autorização de permanência com base apenas no mero juízo da existência dos fortes indícios da prática de um crime de abuso de confiança.

Juízo esse que foi formulado por ele ou por alguém que lho transmitiu? Não sabemos!

E com base em que factos? Também não sabemos!

O que nós sabemos é que o juízo se não mostrou fundado em quaisquer factos concretos e materiais tidos pela Administração por assentes e descritos na notificação escrita, a que teve acesso o recorrente.

A mesma situação da carência dos factos mantém-se na decisão tomada no procedimento de 2º grau, ou seja em sede de recurso hierárquico necessário interposto para o Secretário para a Segurança.

Ai o Secretário para a Segurança acolheu o parecer preparado pelo seu assessor, e no qual lançou o seu despacho da simples concordância, ora recorrido.

Do teor do parecer resulta que a Administração reafirmou o mesmo juízo de prognose e disse algo mais nos termos seguintes:

“São visíveis, e fortes, nos autos, os indícios da prática, pelo recorrente, do crime (abuso de confiança) que lhe vem imputado.
Indícios esses consubstanciados nas imagens de vídeo (cópia fotográficas juntas ao p. i.), que mostram claramente a apropriação ilegítima do dinheiro que ao recorrente fora confiado, conjugadamente com a atitude do mesmo (de fuga, ou pelo menos de injustificada falta, ao cumprimento dos seus deveres/obrigações);”

Compulsados os autos do processo instrutor, nomeadamente as cópias de fotografias para as quais o acto remeteu, verificamos que as tais cópias de fotografias foram juntas pela entidade administrativa em sede de recurso hierárquico.

Parece que a entidade recorrida está a fundamentar a sua decisão nas provas.

Todavia, um juízo conclusivo ou valorativo não se pode basear directamente nas provas, mas terá de se apoiar nos factos demonstrados pelas provas.

Ou seja, as provas só demonstram factos, mas não juízo conclusivo ou valorativo.

Mesmo com muita imaginação, se olharmos para as cópias das várias fotografias, ora constantes das fls.71 a 74 do processo do 2º volume dos autos de procedimento administrativo, não estamos em mínimas condições para extrair delas a mensagem capaz de demonstrar os factos praticados pelo recorrente, susceptíveis de preencher o tipo do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artº 199º do Código Penal, muito menos os facto conclusivos “a apropriação ilegítima do dinheiro que ao recorrente fora confiado” que a entidade recorrida reputa como claramente mostrados pelas fotocópias.

Faltando assim de todo em todo factos materiais e concretos para sustentar o juízo sobre a existência dos fortes indícios da prática de um crime de abuso de confiança, este juízo não pode permanecer válido por carecer de qualquer substrato factual.

Contra este entendimento não se pode argumentar que já existem nos procedimentos administrativos (o de revogação de autorização de permanência e o de interdição de entrada) factos capazes de sustentar o juízo de fortes indícios.

Na verdade, existem no processo instrutor vários documentos, (v. g. a informação nº 542/2015-Pº.229.04, ora constante das fls. 44 e s.s. do p. i. de interdição; a informação assinada pelo Comandante da PSP, ora constante das fls. 34 e s.s. do p. i. de interdição; a informação nº 322/2015-Pº.229.04, ora constante das fls. 20 e s.s. do p. i. de interdição; a informação nº 799/2015-Pº.222.18, ora constante das fls. 2 e s.s. do p. i. de interdição; eo ofício nº 10091/5/2015 da PJ ora constante das fls. 7 e s.s. do p. i. de revogação), em que foram descritos, relatados ou até afirmados factos concretos imputados ou imputáveis ao ora recorrente, susceptíveis de preencher o tipo do crime de abuso de confiança.

Todavia, uma coisa é factos referenciados em documentos integrantes do procedimento administrativo que culminou com a prática do acto, outra coisa é factos dados por assentes pelo órgão decisor para servir de base fáctica da decisão de direito do acto administrativo.

Não se podem confundir uma com a outra.

Como se sabe, ao órgão administrativo decisor, quer no procedimento de 1º grau quer no de 2º grau, cabe o dever de fundamentar de facto a sua decisão de direito – artºs 113º/1-e), 114º e 115º do CPA.

O dever de fundamentar não se mostra cumprido com a simples existência de factos relatados, descritos ou até afirmados apenas em actos integrantes do procedimento que culmina na prolação da decisão.

É preciso sim que a base fáctica relevante à decisão seja dada por assente pelo decisor e feita integrar no teor do acto administrativo em si, ou pelo menos mediante a remissão expressa para os factos, devidamente identificados, constantes de anteriores pareceres, informações ou propostas nos termos autorizados pelo artº 115º/1 do CPA, que acolheu para servir da base fática de decisão.

Dado que, de outro modo, o particular, quando notificado do acto administrativo, ficaria sem saber as razões factuais que sustentam a decisão de direito e impossibilitado de optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, nem o Tribunal, quando chamado a exercer o efectivo controle da legalidade do acto, estaria em condições de aferir o acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.

Regressando ao caso dos autos, estes elementos (as informações internas e ofício da PJ), como qual existentes no procedimento podem funcionar, quanto muito, como meros elementos probatórios, a ser valorados pelo órgão decisor, segundo as regras sobre apreciação da prova no direito administrativo, no desenvolvimento da actividade probatória, com vista à fixação da base fáctica, em função da decisão a tomar.

Portanto, in casu, a simples existência destes elementos no procedimento, tal e qual como estão no procedimento, nunca pode dispensar a entidade administrativa do dever de fundamentar de facto o acto administrativo que praticou.

O que leva necessariamente o acto recorrido à falta absoluta de fundamentação de facto.

E portanto gerador da anulabilidade do mesmo.

Mutatis mutandis as mesmas considerações supra servem para invalidar a interdição de entrada, uma vez que é com base no mesmo juízo (da existência dos fortes indícios da prática de um crime de abuso de confiança) que a Administração aplicou ao recorrente a medida da interdição de entrada na RAEM por cinco anos.

É de anular igualmente a interdição de entrada na RAEM por falta absoluta da fundamentação de facto e de direito.

Fica por isso prejudicado o conhecimento das restantes questões.


Em conclusão:

7. O direito de um não residente de permanecer e o de entrar na RAEM, não têm a dignidade de serem qualificados como direitos fundamentais dos não residentes, dado que não são reconhecidos ope legis a todos independentemente do seu estatuto de residente, nem advenientes da própria natureza humana e portanto universal.

8. O dever de fundamentar não se mostra cumprido com a simples existência dos factos relatados, descritos ou até afirmados em actos integrantes do procedimento que culmina na prolação da decisão.

9. É preciso sim que a base fáctica relevante à decisão seja dada por assente pelo decisor e feita integrar no teor do acto administrativo em si, ou pelo menos mediante a remissão expressa para os factos, devidamente identificados, constantes de anteriores pareceres, informações ou propostas nos termos autorizados pelo artº 115º/1 do CPA, que acolheu para servir da base fática de decisão.

10. Dado que, de outro modo, o particular, quando notificado do acto administrativo, ficaria sem saber as razões factuais que sustentam a decisão de direito e impossibilitado de optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, nem o Tribunal estaria em condições, quando chamado a exercer o efectivo controle da legalidade do acto, de aferir o acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.

11. Se se não fundar nos factos materiais e concretos, mas sim apenas no mero juízo conclusivo sem apoio em quaisquer factos materiais e concretos, o acto administrativo padece da falta absoluta de fundamentação, geradora da anulabilidade.

12. Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens.



Resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar procedente o recurso, anulando o acto recorrido.

Sem custas.

Registe e notifique.

RAEM, 19ABR2018

Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
118/2016-25